O
aumento do consumo de cocaína no mundo que está dando mais poder a facções
brasileiras
O
consumo de cocaína nunca foi tão grande no mundo — e esse aumento na demanda pela droga está
fortalecendo as facções criminosas por trás do negócio em países como o Brasil,
segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e relatórios produzidos por
grupos especializados.
No
Brasil, o tráfico de cocaína está entre as principais atividades de grupos
criminosos como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
Este
último foi alvo de uma megaoperação das Polícias Civil e
Militar do Rio de Janeiro no complexo do Alemão, na capital
fluminense, que resultou em dezenas de mortes e
prisões.
Segundo
a ONU, o tráfico de drogas "continua impulsionando o crime organizado e
gerando lucros aos criminosos", e a violência associada a essa atividade
aumentou drasticamente nos países de origem, trânsito e destino dos tóxicos.
Um dos
grandes propulsores nos últimos anos tem sido o aumento na demanda por cocaína
em todo o mundo — sobretudo na Europa.
Nos dez
anos de 2013 a 2023, houve aumento de 47% no número de usuários globais de
cocaína.
Segundo
a ONU, quase todos os indicadores relacionados à cocaína apresentaram aumento —
seja de produção, apreensões ou consumo.
Os
dados mais recentes são de 2023 e estão presentes no Relatório Mundial sobre
Drogas 2025, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC), a agência especializada da ONU, com sede em Viena.
"O
número de usuários de cocaína em todo o mundo também continuou a crescer:
estima-se que 25 milhões de pessoas usaram a droga em 2023, contra 17 milhões
em 2013. Isso representa um aumento na prevalência do uso de cocaína entre
pessoas com idades entre 15 e 64 anos, de 0,36% para 0,47% no mesmo
período", afirma o relatório da ONU.
"A
América do Norte, a Europa Ocidental e Central e a América do Sul continuam a
constituir os maiores mercados de cocaína, com base no número de pessoas que
usaram drogas no último ano e em dados derivados da análise de águas
residuais."
A ONU
destaca que os principais fluxos de tráfico de cocaína continuam a ser dos
países andinos para a América do Norte e para a Europa, seja diretamente ou, em
menor escala, através da África Ocidental e Central.
"As
apreensões de cocaína relatadas na Europa Ocidental e Central em 2023 excederam
as relatadas na América do Norte pelo quinto ano consecutivo."
Mas o
Brasil serviria como uma importante ponte entre os países produtores e os
grandes mercados consumidores.
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PCC e Comando Vermelho
Existe
uma relação direta entre o aumento do consumo mundial e a violência e poder das
organizações criminosas como as que operam na América Latina, segundo a ONU.
"O
tráfico de drogas continua a impulsionar o crime organizado e a gerar lucros
criminosos, e a violência associada aumentou rapidamente em alguns casos,
inclusive em países de origem, trânsito e destino", diz o relatório da
ONU.
"A
violência relacionada ao tráfico de cocaína tem sido particularmente visível
entre grupos criminosos que operam nas Américas."
Um
capítulo especial do relatório da ONU cita as duas principais facções
criminosas brasileiras: o PCC e o CV.
Enquanto
grandes grupos criminosos costumam ter uma hierarquia de poder mais rígida, os
dois seriam exemplos de estruturas diferentes de gestão.
"Outros
estudos indicam que grupos de narcotráfico como o PCC e o CV no Brasil exibem
um certo grau de hierarquia vertical em toda a organização, com filiais locais
operando com estruturas variadas e independência limitada, que alguns
consideram semelhante a um modelo de franquia", afirma o relatório.
Outro
relatório mostra a importância do Brasil no suprimento de drogas para a Europa.
O
Brasil serve hoje como uma espécie de ponte entre países andinos que produzem
cocaína e a Europa, onde está grande parte do mercado consumidor, segundo o
relatório "A rota do tráfico de cocaína para a Europa", produzido
pela publicação especializada InSight Crime e pela Global Initiative Against
Transnational Organized Crime, uma ONG com sede na Suíça.
"As
conexões diretas do Brasil com zonas de produção na Colômbia, Peru e Bolívia,
os numerosos portos de contêineres no litoral atlântico e um cenário de crime
organizado poderoso e em rápida evolução tornaram o país uma perspectiva
atraente para traficantes em busca de novas rotas para a Europa", diz o
relatório.
"O
porto de Santos tornou-se um ponto crítico, seguido por outros como Paranaguá e
Itajaí. As apreensões, segundo dados da alfândega brasileira, dispararam de 4,5
toneladas em 2010 para 66 toneladas em 2019."
O
estudo de 2021 afirma que "hoje, a principal ponte de tráfico para a
Europa não é mais a Venezuela, mas o Brasil".
"O
dinheiro da cocaína transformou o submundo", afirma o relatório, que
destaca o papel do PCC no tráfico internacional da droga.
"Os
lucros do tráfico para a Europa permitiram que o PCC concluísse sua transição
de uma facção carcerária para um ator transnacional com influência no Brasil,
Bolívia e Paraguai."
"O
PCC já era poderoso, administrando não apenas prisões, mas controlando enclaves
criminosos e gerenciando economias criminosas (incluindo a venda de drogas) em
vastas áreas do Brasil, especialmente em muitas das favelas."
Segundo
o relatório, o recente crescimento explosivo do PCC aconteceu, em grande parte,
ao controle de vários corredores de cocaína, como o da Bolívia, passando pelo
Paraguai, até o porto de Santos, "abrindo o que se tornou uma das artérias
de tráfico mais importantes para a Europa, segundo a Europol".
Os
pesquisadores também dizem que máfias italianas, como a 'Ndrangheta, são o
principal ponto de conexão com grupos organizados latino-americanos, como o
PCC.
A
cocaína é traficada para a Europa a partir dos países produtores da América do
Sul pelas vias aérea e marítima, utilizando diversos métodos e rotas, segundo
dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), agência
da União Europeia.
As
apreensões de drogas vindas da América do Sul vêm batendo recordes consecutivos
a cada ano.
Bélgica,
Holanda e Espanha representam aproximadamente 73% do total de apreensões
feitas.
Segundo
a OEDT, as maiores quantidades de cocaína encontradas em apreensões são
contrabandeadas para a Europa escondidas em navios de carga, principalmente em
contêineres marítimos. Esses navios geralmente partem de Brasil, Colômbia e
Equador, e têm como destino grandes portos europeus, especialmente Antuérpia e
Roterdã.
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Facções mais globalizadas e poderosas
"O
consumo aumentou e isso, é claro, também fortaleceu as diferentes
organizações", afirmou à BBC News Brasil Annette Idler, da Blavatnik
School of Government, a faculdade de política pública da Universidade de
Oxford, e diretora da Programa de Segurança Global do Pembroke College, também
ligado à Oxford. Ele é autora de livros e artigos sobre a guerra às drogas na
América Latina.
"As
facções se tornaram mais globais. O Comando Vermelho, por exemplo, que esteve
envolvido nas ações que aconteceram no Rio de Janeiro, fazem parte de uma rede
maior. Eles obtêm a cocaína principalmente da Bolívia, mas também fazem
parcerias com organizações na África e na Europa. Portanto, eles são mais
poderosos em termos de alcance. Isso, é claro, também tem a ver com o aumento
do consumo."
Ela
destaca que o Brasil já não é apenas um mero ponto de trânsito de drogas — uma
passagem entre países produtores e consumidores — mas também já desenvolveu um
mercado consumidor robusto.
"É
aqui que vemos a violência. E as ações do Estado também produzem uma espiral de
violência."
Ela
escreveu artigos que dizem que a chamada guerra às drogas fracassou. Em parte,
segundo ele, porque a estrutura internacionalizada de rede faz com que novos
grupos criminosos surjam sempre que um é combatido.
"O
que realmente precisa ser feito é transformar a guerra às drogas em algo focado
em questão de saúde pública. Porque no final o problema maior é a demanda. A
oferta também aumentou, com a produção. Precisamos pensar no que fazer na
Europa e nos EUA para reduzir a demanda — e isso está muito ligado à educação.
É preciso aumentar a conscientização sobre como o consumo de drogas está ligado
à violência nesses outros países."
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Cocaína e território
Para
Roberto Uchôa — ex-policial federal, pesquisador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública —
as facções brasileiras estão lucrando mais com a maior demanda por cocaína na
Europa, mas as organizações já diversificaram bastante suas fontes de renda, ao
ponto que a cocaína já não é mais a principal atividade dos grupos.
"O
consumo de cocaína aumentou muito na Europa e a produção de cocaína aumentou
muito na Colômbia. A cocaína hoje está mais barata e numa pureza maior. E a
demanda também tem crescido", disse Uchôa em entrevista à BBC News Brasil.
Segundo
ele, o PCC tem hoje uma presença maior do que o CV no fornecimento de cocaína
para África, Europa e Oceania — e se tornou a facção que mais se beneficiou com
o aumento da demanda por cocaína.
"Hoje
o tráfico de drogas em si não é a parte majoritária dos lucros dessas
organizações criminosas. Já tem estudos dizendo que o tráfico de cocaína, por
exemplo, seria 30 a 40% do rendimento", diz o pesquisador.
"O
Comando Vermelho hoje, por exemplo, também, ganha muito dinheiro no controle de
territórios. Não é só tráfico de cocaína. É comércio de gás, gatos de luz,
internet clandestina, transporte coletivo — que o Comando Vermelho aprendeu com
as milícias."
"Mas
mesmo assim há uma disputa pelo controle dessas rotas de fornecimento de
cocaína para a Europa. Tanto que você vê essas brigas no Norte e Nordeste,
principalmente pelas rotas de escoamento do Solimões que vem da Amazônia e tudo
mais."
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Como fuzis importados chegam às mãos do crime organizado
no Brasil
Uma
megaoperação policial feita no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28/10),
resultou em ao menos 81 prisões e 64 mortes. Outras 54 mortes estão sendo
investigadas, de acordo com o governador do Estado, Claudio Castro.
A ação,
que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, tinha como alvo a facção Comando
Vermelho, nos complexos do Alemão e da Penha, na capital.
Um dos
destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de ao menos dezenas de fuzis
— o número oficial é de 93, mas o governador falou em mais de 100.
Castro
comemorou os resultados com uma imagem publicada em suas redes sociais, que
mostra algumas dessas armas apreendidas, e divulgou um número ainda maior do
que o informado pela polícia.
"O
Rio de Janeiro termina o dia com uma imagem que fala por si: mais de 100 fuzis
apreendidos pelas Polícias Civil e Militar."
Mas
como esses fuzis chegam em grandes quantidades às mãos do crime organizado?
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O aumento da apreensão de fuzis
Fuzis
representam uma pequena parte do total de armas apreendidas no país, mas o
número total de apreensões vem crescendo.
É o que
aponta um artigo com dados inéditos sobre o tema, dos pesquisadores Bruno
Langeani e Natalia Pollachi, publicado em setembro
deste ano no periódico Journal of Illicit Economies and Development.
Esse
tipo de arma, explicam os pesquisadores, é crucial para que as facções
criminosas exerçam poder de controle dos territórios, possam ameaçar moradores,
consigam enfrentar outras facções e tenham poder de fogo contra a polícia.
"Como
resultado, as forças estatais são cada vez mais obrigadas a utilizar veículos
blindados e grandes contingentes para entrar nessas áreas, enfrentando
frequentemente uma resistência armada significativa", explicam.
"O
fuzil traz uma preocupação adicional em áreas densamente povoadas. O tipo de
ferida que a bala de fuzil produz é muito mais grave, com menor chance de
sobrevivência", diz Natália Pollachi, diretora de projetos no Instituto
Sou da Paz e uma das autoras do artigo.
"Fuzis
têm como característica o disparo com muita energia, que pode atingir o alvo
com precisão a mais de 500 metros de distância, além da possibilidade de
disparo automático ou semiautomático, muito mais perigoso", diz.
A
pesquisa analisou dados de apreensões de armas entre 2019 e 2023 no país, tanto
de policiais estaduais quanto da federal.
O
número de fuzis apreendidos foi de 1.139, em 2019, para 1.650 em 2023, o mais
mais alto na série histórica analisada.
Só no
Rio de Janeiro foram 797 armas do tipo apreendidas em um único ano. No país são
apreendidas mais de 100 mil armas por ano, segundo os dados oficiais.
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De onde vieram os fuzis?
Os
pesquisadores apontam ao menos três origens conhecidas dos fuzis: os fabricados
no Brasil e desviados, os importados e aqueles fabricados de forma clandestina,
tanto com peças importadas quanto produzidas dentro do país.
A
pesquisa diz que alterações legislativas feitas durante o governo Bolsonaro
flexibilizaram as regras de quem pode comprar armas no Brasil, inclusive de
calibre antes restritos aos militares.
Além de
ter impulsionado o mercado legal, dizem os pesquisadores, houve também "um
notável desvio" para o ilegal.
"Ao
longo de quatro anos foi permitido para pessoas cadastradas como CACs [sigla
para um registro oficial de armas por pessoas físicas: Colecionador, Atirador
Desportivo e Caçador] comprar fuzis. Uma única pessoa podia comprar 30
armas", diz Pollachi.
A
facilidade teria auxiliado no desvio para o crime. "Nem todo mundo tem
acesso a um esquema de tráfico internacional, mas qualquer um tem um primo com
o CPF limpo. É muito mais fácil cooptar um laranja do que participar de um
esquema de tráfico."
Essas
alterações foram revogadas em 2023, mas quem comprou armas nos anos anteriores
não tem obrigação de devolvê-las. Houve também uma alteração sobre quem
monitora os CACs: a atribuição foi transferida do Exército para a Polícia
Federal.
Uma auditoria do Tribunal de
Contas da União (TCU) identificou, a pedido do Congresso, uma série de
fragilidades nesse controle.
Um dos
problemas encontrados foi que o Exército não checava a veracidade de
informações apresentadas por quem faz os registros. Também não havia
informações sobre fiscalizações feitas aos clubes de tiro.
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Fabricação nos EUA e Europa
A
Polícia Militar do Rio também fez um levantamento com base nas armas que
apreendeu em 2024 (sem qualquer relação com a atual operação, portanto) e
identificou que praticamente todas (94,7%) tinham sido fabricados no exterior,
principalmente nos Estados Unidos (60% das apreensões). Outros países citados
são Israel, Alemanha, Áustria e República Tcheca.
"Por
isso, a importância de a indústria produtora de armas também fazer parte do
enfrentamento ao crime organizado, com a gerência sobre o caminho dos
armamentos e atuando em conjunto com o governo federal no controle do tráfico
internacional de armas", disse o governador Claudio Castro, em resposta
aos dados, quando foram divulgados.
Os
dados nacionais apontam também predominância dos EUA, com fabricantes como Colt
e Armalite na lista das mais aprendidas.
Uma
rota comum vista por autoridades é importar armas de forma legal dos EUA via
Paraguai, e depois transportá-las ilegalmente para o Brasil.
Houve
também casos de envio direto dos EUA ao Brasil, como quando policiais
apreenderam 60 fuzis no Aeroporto Internacional do Rio (Galeão), em 2017. O
valor de cada arma era estimado em R$ 70 mil.
O
arsenal incluía modelos AR-10 e AK-47 e estava disfarçado em contêineres com
aquecedores para piscinas. A carga foi enviada por um brasileiro que morava nos
EUA, dono de empresa de importação e exportação de produtos.
Outro
fluxo envolve empresas sediadas em países europeus. Em dezembro de 2023, a
Reuters noticiou que autoridades brasileiras e paraguaias fizeram operações
para apreender armas enviadas da Europa para serem vendidas a grupos criminosos
no Brasil.
Uma
empresa baseada no Paraguai era responsável por importar armas de Croácia,
Eslovênia e República Tcheca.
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Fabricação clandestina e comércio de peças avulsas
Um
detalhe que chama a atenção nos dados de apreensões é que uma parte das armas é
registrada sem um fabricante ou origem.
Para os
pesquisadores, isso pode ter acontecido por falta de treinamento dos
profissionais que fazem o registro das apreensões ou ainda por serem armas
fabricadas de forma clandestina.
No
levantamento feito pela Polícia do Rio (com dados de apreensões de 2024) há a
informação de que parte das armas apreendidas no Estado chegou em peças avulsas
ao custo de cerca de R$ 6 mil. Depois de montado, o fuzil passa a valer cerca
de R$ 50 mil.
Uma das
formas de fabricação clandestina é a importação das peças separadas dos EUA.
"Lá
as peças são vendidas com pouco controle. Há até kits para você montar seu
próprio fuzil, sem número de série", diz Natalia Pollachi, do Instituto
Sou da Paz.
Um dos
sites vistos pela BBC News Brasil mostrava até mesmo uma "promoção de
Halloween" para comprar um desses kits por US$ 400 (cerca de R$ 2,1 mil).
Há
ainda montagem de armas com peças fabricadas de forma artesanal. Se no passado
isso era feito de forma rudimentar, hoje esse modelo também se especializou,
com peças sendo produzidas em máquinas profissionais.
Um caso
recente desse modelo foi registrado por policiais no interior de São Paulo em
agosto deste ano.
As
autoridades encontraram uma fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste, que
se apresentava como uma produtora de peças aeronáuticas. A investigação
descobriu a fabricação usava "equipamentos industriais de alta
precisão."
Fonte:
BBC News Brasil

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