quinta-feira, 30 de outubro de 2025

O aumento do consumo de cocaína no mundo que está dando mais poder a facções brasileiras

O consumo de cocaína nunca foi tão grande no mundo — e esse aumento na demanda pela droga está fortalecendo as facções criminosas por trás do negócio em países como o Brasil, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e relatórios produzidos por grupos especializados.

No Brasil, o tráfico de cocaína está entre as principais atividades de grupos criminosos como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).

Este último foi alvo de uma megaoperação das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro no complexo do Alemão, na capital fluminense, que resultou em dezenas de mortes e prisões.

Segundo a ONU, o tráfico de drogas "continua impulsionando o crime organizado e gerando lucros aos criminosos", e a violência associada a essa atividade aumentou drasticamente nos países de origem, trânsito e destino dos tóxicos.

Um dos grandes propulsores nos últimos anos tem sido o aumento na demanda por cocaína em todo o mundo — sobretudo na Europa.

Nos dez anos de 2013 a 2023, houve aumento de 47% no número de usuários globais de cocaína.

Segundo a ONU, quase todos os indicadores relacionados à cocaína apresentaram aumento — seja de produção, apreensões ou consumo.

Os dados mais recentes são de 2023 e estão presentes no Relatório Mundial sobre Drogas 2025, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a agência especializada da ONU, com sede em Viena.

"O número de usuários de cocaína em todo o mundo também continuou a crescer: estima-se que 25 milhões de pessoas usaram a droga em 2023, contra 17 milhões em 2013. Isso representa um aumento na prevalência do uso de cocaína entre pessoas com idades entre 15 e 64 anos, de 0,36% para 0,47% no mesmo período", afirma o relatório da ONU.

"A América do Norte, a Europa Ocidental e Central e a América do Sul continuam a constituir os maiores mercados de cocaína, com base no número de pessoas que usaram drogas no último ano e em dados derivados da análise de águas residuais."

A ONU destaca que os principais fluxos de tráfico de cocaína continuam a ser dos países andinos para a América do Norte e para a Europa, seja diretamente ou, em menor escala, através da África Ocidental e Central.

"As apreensões de cocaína relatadas na Europa Ocidental e Central em 2023 excederam as relatadas na América do Norte pelo quinto ano consecutivo."

Mas o Brasil serviria como uma importante ponte entre os países produtores e os grandes mercados consumidores.

<><> PCC e Comando Vermelho

Existe uma relação direta entre o aumento do consumo mundial e a violência e poder das organizações criminosas como as que operam na América Latina, segundo a ONU.

"O tráfico de drogas continua a impulsionar o crime organizado e a gerar lucros criminosos, e a violência associada aumentou rapidamente em alguns casos, inclusive em países de origem, trânsito e destino", diz o relatório da ONU.

"A violência relacionada ao tráfico de cocaína tem sido particularmente visível entre grupos criminosos que operam nas Américas."

Um capítulo especial do relatório da ONU cita as duas principais facções criminosas brasileiras: o PCC e o CV.

Enquanto grandes grupos criminosos costumam ter uma hierarquia de poder mais rígida, os dois seriam exemplos de estruturas diferentes de gestão.

"Outros estudos indicam que grupos de narcotráfico como o PCC e o CV no Brasil exibem um certo grau de hierarquia vertical em toda a organização, com filiais locais operando com estruturas variadas e independência limitada, que alguns consideram semelhante a um modelo de franquia", afirma o relatório.

Outro relatório mostra a importância do Brasil no suprimento de drogas para a Europa.

O Brasil serve hoje como uma espécie de ponte entre países andinos que produzem cocaína e a Europa, onde está grande parte do mercado consumidor, segundo o relatório "A rota do tráfico de cocaína para a Europa", produzido pela publicação especializada InSight Crime e pela Global Initiative Against Transnational Organized Crime, uma ONG com sede na Suíça.

"As conexões diretas do Brasil com zonas de produção na Colômbia, Peru e Bolívia, os numerosos portos de contêineres no litoral atlântico e um cenário de crime organizado poderoso e em rápida evolução tornaram o país uma perspectiva atraente para traficantes em busca de novas rotas para a Europa", diz o relatório.

"O porto de Santos tornou-se um ponto crítico, seguido por outros como Paranaguá e Itajaí. As apreensões, segundo dados da alfândega brasileira, dispararam de 4,5 toneladas em 2010 para 66 toneladas em 2019."

O estudo de 2021 afirma que "hoje, a principal ponte de tráfico para a Europa não é mais a Venezuela, mas o Brasil".

"O dinheiro da cocaína transformou o submundo", afirma o relatório, que destaca o papel do PCC no tráfico internacional da droga.

"Os lucros do tráfico para a Europa permitiram que o PCC concluísse sua transição de uma facção carcerária para um ator transnacional com influência no Brasil, Bolívia e Paraguai."

"O PCC já era poderoso, administrando não apenas prisões, mas controlando enclaves criminosos e gerenciando economias criminosas (incluindo a venda de drogas) em vastas áreas do Brasil, especialmente em muitas das favelas."

Segundo o relatório, o recente crescimento explosivo do PCC aconteceu, em grande parte, ao controle de vários corredores de cocaína, como o da Bolívia, passando pelo Paraguai, até o porto de Santos, "abrindo o que se tornou uma das artérias de tráfico mais importantes para a Europa, segundo a Europol".

Os pesquisadores também dizem que máfias italianas, como a 'Ndrangheta, são o principal ponto de conexão com grupos organizados latino-americanos, como o PCC.

A cocaína é traficada para a Europa a partir dos países produtores da América do Sul pelas vias aérea e marítima, utilizando diversos métodos e rotas, segundo dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), agência da União Europeia.

As apreensões de drogas vindas da América do Sul vêm batendo recordes consecutivos a cada ano.

Bélgica, Holanda e Espanha representam aproximadamente 73% do total de apreensões feitas.

Segundo a OEDT, as maiores quantidades de cocaína encontradas em apreensões são contrabandeadas para a Europa escondidas em navios de carga, principalmente em contêineres marítimos. Esses navios geralmente partem de Brasil, Colômbia e Equador, e têm como destino grandes portos europeus, especialmente Antuérpia e Roterdã.

<><> Facções mais globalizadas e poderosas

"O consumo aumentou e isso, é claro, também fortaleceu as diferentes organizações", afirmou à BBC News Brasil Annette Idler, da Blavatnik School of Government, a faculdade de política pública da Universidade de Oxford, e diretora da Programa de Segurança Global do Pembroke College, também ligado à Oxford. Ele é autora de livros e artigos sobre a guerra às drogas na América Latina.

"As facções se tornaram mais globais. O Comando Vermelho, por exemplo, que esteve envolvido nas ações que aconteceram no Rio de Janeiro, fazem parte de uma rede maior. Eles obtêm a cocaína principalmente da Bolívia, mas também fazem parcerias com organizações na África e na Europa. Portanto, eles são mais poderosos em termos de alcance. Isso, é claro, também tem a ver com o aumento do consumo."

Ela destaca que o Brasil já não é apenas um mero ponto de trânsito de drogas — uma passagem entre países produtores e consumidores — mas também já desenvolveu um mercado consumidor robusto.

"É aqui que vemos a violência. E as ações do Estado também produzem uma espiral de violência."

Ela escreveu artigos que dizem que a chamada guerra às drogas fracassou. Em parte, segundo ele, porque a estrutura internacionalizada de rede faz com que novos grupos criminosos surjam sempre que um é combatido.

"O que realmente precisa ser feito é transformar a guerra às drogas em algo focado em questão de saúde pública. Porque no final o problema maior é a demanda. A oferta também aumentou, com a produção. Precisamos pensar no que fazer na Europa e nos EUA para reduzir a demanda — e isso está muito ligado à educação. É preciso aumentar a conscientização sobre como o consumo de drogas está ligado à violência nesses outros países."

<><> Cocaína e território

Para Roberto Uchôa — ex-policial federal, pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — as facções brasileiras estão lucrando mais com a maior demanda por cocaína na Europa, mas as organizações já diversificaram bastante suas fontes de renda, ao ponto que a cocaína já não é mais a principal atividade dos grupos.

"O consumo de cocaína aumentou muito na Europa e a produção de cocaína aumentou muito na Colômbia. A cocaína hoje está mais barata e numa pureza maior. E a demanda também tem crescido", disse Uchôa em entrevista à BBC News Brasil.

Segundo ele, o PCC tem hoje uma presença maior do que o CV no fornecimento de cocaína para África, Europa e Oceania — e se tornou a facção que mais se beneficiou com o aumento da demanda por cocaína.

"Hoje o tráfico de drogas em si não é a parte majoritária dos lucros dessas organizações criminosas. Já tem estudos dizendo que o tráfico de cocaína, por exemplo, seria 30 a 40% do rendimento", diz o pesquisador.

"O Comando Vermelho hoje, por exemplo, também, ganha muito dinheiro no controle de territórios. Não é só tráfico de cocaína. É comércio de gás, gatos de luz, internet clandestina, transporte coletivo — que o Comando Vermelho aprendeu com as milícias."

"Mas mesmo assim há uma disputa pelo controle dessas rotas de fornecimento de cocaína para a Europa. Tanto que você vê essas brigas no Norte e Nordeste, principalmente pelas rotas de escoamento do Solimões que vem da Amazônia e tudo mais."

¨      Como fuzis importados chegam às mãos do crime organizado no Brasil

Uma megaoperação policial feita no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28/10), resultou em ao menos 81 prisões e 64 mortes. Outras 54 mortes estão sendo investigadas, de acordo com o governador do Estado, Claudio Castro.

A ação, que envolveu cerca de 2,5 mil policiais, tinha como alvo a facção Comando Vermelho, nos complexos do Alemão e da Penha, na capital.

Um dos destaques anunciados pelo governo foi a apreensão de ao menos dezenas de fuzis — o número oficial é de 93, mas o governador falou em mais de 100.

Castro comemorou os resultados com uma imagem publicada em suas redes sociais, que mostra algumas dessas armas apreendidas, e divulgou um número ainda maior do que o informado pela polícia.

"O Rio de Janeiro termina o dia com uma imagem que fala por si: mais de 100 fuzis apreendidos pelas Polícias Civil e Militar."

Mas como esses fuzis chegam em grandes quantidades às mãos do crime organizado?

<><> O aumento da apreensão de fuzis

Fuzis representam uma pequena parte do total de armas apreendidas no país, mas o número total de apreensões vem crescendo.

É o que aponta um artigo com dados inéditos sobre o tema, dos pesquisadores Bruno Langeani e Natalia Pollachi, publicado em setembro deste ano no periódico Journal of Illicit Economies and Development.

Esse tipo de arma, explicam os pesquisadores, é crucial para que as facções criminosas exerçam poder de controle dos territórios, possam ameaçar moradores, consigam enfrentar outras facções e tenham poder de fogo contra a polícia.

"Como resultado, as forças estatais são cada vez mais obrigadas a utilizar veículos blindados e grandes contingentes para entrar nessas áreas, enfrentando frequentemente uma resistência armada significativa", explicam.

"O fuzil traz uma preocupação adicional em áreas densamente povoadas. O tipo de ferida que a bala de fuzil produz é muito mais grave, com menor chance de sobrevivência", diz Natália Pollachi, diretora de projetos no Instituto Sou da Paz e uma das autoras do artigo.

"Fuzis têm como característica o disparo com muita energia, que pode atingir o alvo com precisão a mais de 500 metros de distância, além da possibilidade de disparo automático ou semiautomático, muito mais perigoso", diz.

A pesquisa analisou dados de apreensões de armas entre 2019 e 2023 no país, tanto de policiais estaduais quanto da federal.

O número de fuzis apreendidos foi de 1.139, em 2019, para 1.650 em 2023, o mais mais alto na série histórica analisada.

Só no Rio de Janeiro foram 797 armas do tipo apreendidas em um único ano. No país são apreendidas mais de 100 mil armas por ano, segundo os dados oficiais.

<><> De onde vieram os fuzis?

Os pesquisadores apontam ao menos três origens conhecidas dos fuzis: os fabricados no Brasil e desviados, os importados e aqueles fabricados de forma clandestina, tanto com peças importadas quanto produzidas dentro do país.

A pesquisa diz que alterações legislativas feitas durante o governo Bolsonaro flexibilizaram as regras de quem pode comprar armas no Brasil, inclusive de calibre antes restritos aos militares.

Além de ter impulsionado o mercado legal, dizem os pesquisadores, houve também "um notável desvio" para o ilegal.

"Ao longo de quatro anos foi permitido para pessoas cadastradas como CACs [sigla para um registro oficial de armas por pessoas físicas: Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador] comprar fuzis. Uma única pessoa podia comprar 30 armas", diz Pollachi.

A facilidade teria auxiliado no desvio para o crime. "Nem todo mundo tem acesso a um esquema de tráfico internacional, mas qualquer um tem um primo com o CPF limpo. É muito mais fácil cooptar um laranja do que participar de um esquema de tráfico."

Essas alterações foram revogadas em 2023, mas quem comprou armas nos anos anteriores não tem obrigação de devolvê-las. Houve também uma alteração sobre quem monitora os CACs: a atribuição foi transferida do Exército para a Polícia Federal.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou, a pedido do Congresso, uma série de fragilidades nesse controle.

Um dos problemas encontrados foi que o Exército não checava a veracidade de informações apresentadas por quem faz os registros. Também não havia informações sobre fiscalizações feitas aos clubes de tiro.

<><> Fabricação nos EUA e Europa

A Polícia Militar do Rio também fez um levantamento com base nas armas que apreendeu em 2024 (sem qualquer relação com a atual operação, portanto) e identificou que praticamente todas (94,7%) tinham sido fabricados no exterior, principalmente nos Estados Unidos (60% das apreensões). Outros países citados são Israel, Alemanha, Áustria e República Tcheca.

"Por isso, a importância de a indústria produtora de armas também fazer parte do enfrentamento ao crime organizado, com a gerência sobre o caminho dos armamentos e atuando em conjunto com o governo federal no controle do tráfico internacional de armas", disse o governador Claudio Castro, em resposta aos dados, quando foram divulgados.

Os dados nacionais apontam também predominância dos EUA, com fabricantes como Colt e Armalite na lista das mais aprendidas.

Uma rota comum vista por autoridades é importar armas de forma legal dos EUA via Paraguai, e depois transportá-las ilegalmente para o Brasil.

Houve também casos de envio direto dos EUA ao Brasil, como quando policiais apreenderam 60 fuzis no Aeroporto Internacional do Rio (Galeão), em 2017. O valor de cada arma era estimado em R$ 70 mil.

O arsenal incluía modelos AR-10 e AK-47 e estava disfarçado em contêineres com aquecedores para piscinas. A carga foi enviada por um brasileiro que morava nos EUA, dono de empresa de importação e exportação de produtos.

Outro fluxo envolve empresas sediadas em países europeus. Em dezembro de 2023, a Reuters noticiou que autoridades brasileiras e paraguaias fizeram operações para apreender armas enviadas da Europa para serem vendidas a grupos criminosos no Brasil.

Uma empresa baseada no Paraguai era responsável por importar armas de Croácia, Eslovênia e República Tcheca.

<><> Fabricação clandestina e comércio de peças avulsas

Um detalhe que chama a atenção nos dados de apreensões é que uma parte das armas é registrada sem um fabricante ou origem.

Para os pesquisadores, isso pode ter acontecido por falta de treinamento dos profissionais que fazem o registro das apreensões ou ainda por serem armas fabricadas de forma clandestina.

No levantamento feito pela Polícia do Rio (com dados de apreensões de 2024) há a informação de que parte das armas apreendidas no Estado chegou em peças avulsas ao custo de cerca de R$ 6 mil. Depois de montado, o fuzil passa a valer cerca de R$ 50 mil.

Uma das formas de fabricação clandestina é a importação das peças separadas dos EUA.

"Lá as peças são vendidas com pouco controle. Há até kits para você montar seu próprio fuzil, sem número de série", diz Natalia Pollachi, do Instituto Sou da Paz.

Um dos sites vistos pela BBC News Brasil mostrava até mesmo uma "promoção de Halloween" para comprar um desses kits por US$ 400 (cerca de R$ 2,1 mil).

Há ainda montagem de armas com peças fabricadas de forma artesanal. Se no passado isso era feito de forma rudimentar, hoje esse modelo também se especializou, com peças sendo produzidas em máquinas profissionais.

Um caso recente desse modelo foi registrado por policiais no interior de São Paulo em agosto deste ano.

As autoridades encontraram uma fábrica clandestina em Santa Bárbara d'Oeste, que se apresentava como uma produtora de peças aeronáuticas. A investigação descobriu a fabricação usava "equipamentos industriais de alta precisão."

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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