O
Cerrado grita, o mundo precisa escutar
Enquanto
a 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP30)[ concentra os
holofotes mundiais sobre as falsas “soluções verdes” à crise climática, o
Cerrado – berço das águas do Brasil – segue queimando em silêncio. Essa
terra-território, responsável por abastecer oito das principais bacias
hidrográficas do país, enfrenta incêndios cada vez mais intensos e recorrentes.
Entre
junho e setembro deste ano, a vegetação do Cerrado transformou-se em
combustível pronto para o fogo. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio), somente no Parque da Chapada dos Veadeiros (GO), a
estimativa é que 110 mil hectares foram tomados por incêndios que duraram 21
dias. A combinação entre estiagem
prolongada, vegetação altamente inflamável e ações humanas – como a limpeza de
terrenos com fogo e o avanço do desmatamento – vem reproduzindo, ano após ano,
um cenário explosivo.
Para a
brigadista Kalunga, de Cavalcante (GO), Tainá Aquino, o clima mais seco e o
aumento da temperatura do solo tornam o controle das chamas cada vez mais
difícil. “Este ano o fogo foi mais intenso e muito difícil de controlar, por
isso queimou uma grande área do Cerrado. Foi o incêndio que mais demorou a ser
apagado”, relata.
Com os
incêndios prolongados, o risco vai muito além da perda de biodiversidade. As
chamas avançam sobre territórios de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs),
comprometem a segurança e a soberania alimentar e ameaçam modos de vida
milenares. A fumaça também alcança cidades próximas, deteriorando a qualidade
do ar, agravando doenças respiratórias e colocando todas as expressões de vida
em perigo.
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Cerrado em colapso
Essa
terra-território, que ocupa cerca de 23,3% do país, é um dos ecossistemas mais
antigos e mais ricos em biodiversidade do planeta e desempenha papel
estratégico na regulação hídrica nacional. Conhecido como o “Berço das Águas do
Brasil”, abriga as nascentes dos rios São Francisco, Tocantins, Araguaia e
Paraná, entre outros. Nas últimas décadas, após perder mais de 50% da vegetação
nativa, esse ecossistema vital tem dado sinais alarmantes de desequilíbrio.
Tornou-se cada vez mais vulnerável à ação humana e a fatores ambientais que
intensificam os incêndios florestais de grande escala.
Embora
possua vegetação naturalmente adaptada ao fogo, os incêndios atuais ultrapassam
em muito os ciclos ecológicos naturais. Depoimentos das comunidades e dados de
conflitos no campo, documentados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino
da Comissão Pastoral da Terra (Cedoc/CPT), apontam as atividades agropecuária e
invasão de territórios como o principal vetor dos incêndios no Cerrado,
ampliando a degradação ambiental e comprometendo o equilíbrio climático e
hídrico da região.
De
acordo com o Dossiê Agro é Fogo , o agravamento do problema está diretamente
relacionado à expansão da fronteira agrícola, ao uso inadequado do fogo no
manejo agropecuário e à fragilidade da governança ambiental. Entre os fatores
que contribuem para essa realidade estão:
1. O uso do fogo em práticas agropecuárias,
especialmente para limpeza de pastagens e preparo do solo, muitas vezes sem
controle técnico – como a escolha de períodos adequados ou a construção de
aceiros. Combinadas às estiagens prolongadas e à baixa umidade do ar, essas
práticas tornam a vegetação altamente inflamável e favorecem a propagação
descontrolada das chamas;
2. A abertura de grandes lavouras e
pastagens, que fragmenta habitats naturais e isola remanescentes de vegetação
nativa, reduzindo sua capacidade de regeneração e aumentando a vulnerabilidade
ecológica do bioma;
3. A grilagem de terras públicas e o
desmatamento, processos marcados pela baixa proteção ambiental e territorial,
sobretudo em áreas de povos e comunidades tradicionais, e pela sensação de
impunidade – reflexo da falta de regularização fundiária, da fiscalização
insuficiente, da frágil responsabilização por crimes ambientais e da ausência
de políticas públicas consistentes de prevenção e combate ao fogo nas regiões
mais críticas.
Esse
cenário evidencia que o aumento dos incêndios florestais no Cerrado é efeito
territorial da ocupação e produção baseado na exploração intensiva dos bens
comuns naturais, vinculados às cadeias globais de produção e consumo. A
continuidade desse modelo, sem mecanismos eficazes de regulação e conservação,
ameaça não apenas a biodiversidade e os modos de vida tradicionais, como também
o equilíbrio hídrico que sustenta boa parte do território brasileiro.
Os
incêndios no Cerrado expõem as contradições de um modelo de desenvolvimento
baseado na expansão de commodities agrícolas, que externaliza custos sociais e
ecológicos. Essa ofensiva se reinventa a cada nova possibilidade de lucro. O agro-hidro-minero-negócio ceifa expressões
dos povos do campo, das águas e das florestas e, também, das cidades.
As
perversidades e a violência físico-simbólica desse modelo nos obrigam a
retomar, por repetidas vezes, o discurso
sobre a necessidade de responsabilização pelas violências e políticas públicas
socioambientais. Principalmente, em um cenário em que as falsas “soluções
verdes”, a Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação
Florestal (REDD+) e os bens comuns naturais são postos à mesa de discussões
globais como capital e moeda de troca de alto nível.
Assistir
a esse leilão de ideias tecno-liberais é colaborar com a amnésia social sobre o
legado ancestral dos povos originários e tradicionais na conservação e luta
para ‘adiar o fim do mundo’. É urgente mudar o olhar sobre o Cerrado –
compreender que sua destruição não é um fenômeno natural e inevitável, mas o
resultado de decisões econômicas e políticas que tratam essa região ecológica
como fronteira agrícola a ser explorada, e não como patrimônio vital à
sobrevivência do país.
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É fundamental distinguir os diferentes usos do fogo
Não se
trata de criminalizar o Manejo Tradicional do Fogo, praticado há séculos por
PCTs e camponeses com sabedoria, técnica e cuidado. O fogo é um elemento
natural e faz parte da história da humanidade. Quando manejado adequadamente,
seguindo um calendário que respeita a sazonalidade do ecossistema, ele
contribui para o equilíbrio ecológico.
“No
Território Indígena Governador, nós, da Brigada Comunitária Feminina Pyhcop
Cwyj Catiji, trabalhamos de janeiro a janeiro prevenindo e cuidando do
território. Em março realizamos a queima prescrita, quando o fogo é controlado;
entre junho e julho fazemos atividades de educação ambiental; e de agosto a
setembro, enfrentamos o período crítico, quando o território fica seco e o
clima muito quente – protegendo o território contra os incêndios provocados por
não indígenas”, explica a jovem brigadista indígena do povo Gavião (MA),
Fabiana Martins.
O
manejo tradicional do fogo envolve conhecimentos transmitidos entre gerações,
adaptados a diferentes ambientes, permitindo o uso sustentável dos bens comuns,
a conservação da sociobiodiversidade e o manejo de longo prazo das paisagens
agroflorestais. “Durante a seca, o medo do fogo cresce entre as comunidades.
Ficamos preocupados em fazer qualquer tipo de queimada, com medo de o fogo sair
do controle, como aconteceu este ano. Recebemos muita orientação sobre o uso do
fogo na comunidade, porque aqui ele é cultural – é usado em várias situações:
na fogueira, na queima da roça e em outras práticas. E sempre a equipe do
Prevfogo nos orienta sobre o perigo e o uso com muito cuidado”, complementa
Tainá.
Dados
da pesquisa Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil, realizada pela
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), alertam para a mudança
no regime do fogo nas últimas décadas. Conforme as pessoas pesquisadoras, o que
antes era um instrumento de manejo do excesso de matéria orgânica seca em áreas
de conservação – usado também para a seleção natural de espécies e o manejo
tradicional – passou a ser empregado fora dos períodos recomendados. Esse uso
inadequado está relacionado a uma combinação altamente explosiva: desmatamento
e mudanças climáticas.
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Efeitos territoriais dos incêndios
Dados
da plataforma Alerta Rápido de Monitoramento de Queimadas por Satélite
(Alarmes), desenvolvida pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais
(LASA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), apontam a
dimensão espacial das áreas queimadas no Cerrado. Do início do ano até a
sexta-feira (24/10), foram 9,1 milhões de hectares queimados – 4,8 milhões a
menos do que em 2024 (13,9 milhões ha). Desse total, 6,2 milhões ha estão no
MATOPIBA, com destaque para os estados do Tocantins (2,6 milhões ha), Maranhão
(1,9 milhões ha) e Piauí (1,4 milhões ha).
Quanto
às categorias de áreas queimadas, as terras particulares respondem por 5,5
milhões de hectares (60%), seguidas pelas Terras Indígenas (TIs), com 1,4
milhão ha (16%); pelas Unidades de Conservação (UCs) estaduais e federais, com
787 mil ha (8,6%); e pelas áreas não identificadas, que somam 927 mil ha
(10,1%).
Os
dados do Cedoc/CPT revelam a dimensão socioterritorial dos incêndios: entre
2019 e 2024, houve 840 ocorrências de fogo em territórios de PCTs, afetando
cerca de 180 mil famílias. As regiões Norte e Centro-Oeste concentram 78% das
famílias atingidas, correspondendo às terras-territórios amazônicos e
cerradeiros – epicentros dos incêndios e da expansão agropecuária.
No
Cerrado, entre 2019 e 2024, registraram-se 461 conflitos envolvendo fogo. A
série histórica mostra oscilações com tendência de crescimento, evidenciando o
agravamento da crise ambiental e fundiária persistente.
No
acumulado, o número de registros mais que dobrou em cinco anos (+114,9%), com
crescimento acentuado em 2024. Os conflitos se concentram no arco da expansão
fronteira agrícola, onde quatro estados somam 83,1% dos casos: Mato Grosso
(29,7%), Maranhão (21,5%), Mato Grosso do Sul (16,9%) e Tocantins (15,0%).
As
principais vítimas são povos indígenas (45%), posseiros (17,4%), assentados da
reforma agrária (11,5%), sem-terra (6,5%) e quilombolas (5,6%), entre outros.
Esses grupos representam mais de 95% das vítimas conhecidas, revelando o
caráter territorial e político dos incêndios. Por outro lado, a categorização
do grupo causador de conflitos é liderado por fazendeiros (32,32%), o que
reforça, ainda mais, a relação histórica entre a manipulação do uso ancestral
do fogo como ferramenta criminosa para expulsar povos e expandir a produção
agropecuária em larga escala.
Respectivamente,
grileiros (9,33%), empresários (4,56%), madeireiros (1,52%) também estão como
principais causadores de conflitos. A própria classificação, analisada no
contexto monocultural da sojificação, aponta para um perfil já destacado pelo
Dossiê Agro é Fogo, que é a conexão entre desmatamento-grilagem-incêndio, que
alimenta, milenarmente, as estratégias violentas de invasão de terras pelos
empreendimentos do agro-hidro-minero-negócio.
É
importante destacar que os territórios cerradeiros circunscritos no que
conhecemos como cidades também são profundamente impactados pelo agro. Além do
debate pulsante sobre o consumo de alimentos produzidos sob intensa
pulverização de agrotóxicos, é necessário lembrar a interligação entre as
poluições geradas pelas indústrias químicas e os gases tóxicos liberados pelos
incêndios que atingem as áreas urbanas.
Estudos
recentes reiteram que a exposição aos gases tóxicos liberados no ar – como a
fumaça de incêndios florestais – está associada a uma piora aparente em pessoas
com Alzheimer, acelerando o acúmulo de proteínas danosas no cérebro e piorando
o declínio cognitivo. As estratégias de reinvenção da colonização não se
limitam somente à destruição das terras-territórios, há uma expansão de local,
que reconhece, minuciosamente, no corpo, mais uma zona de controle: o
cognitivo, seja ele por meio da monocultura agrícola, e/ou monocultura da
mente.
<><> Ações e políticas em curso
Nos
últimos anos, algumas medidas buscaram conter a escalada das queimadas:
• Lei 15.143/2025: o dispositivo prevê
medidas para a concessão de apoio financeiro da União aos Estados e ao Distrito
Federal, destinadas à prevenção e ao combate de queimadas irregulares e
incêndios florestais, além de autorizar a participação da União no Fundo de
Apoio à Infraestrutura para Recuperação e Adaptação a Eventos Climáticos
Extremos;
• Lei 14.944/2024: institui a Política
Nacional de Manejo Integrado do Fogo, estabelecendo diretrizes de prevenção e
corresponsabilidade entre União, Estados, municípios e sociedade civil,
reconhecendo o papel ecológico do fogo nos ecossistemas e valorizando os
saberes e práticas tradicionais de seu uso.
• Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 743, que determina a desapropriação de propriedades
flagradas com incêndios criminosos;
• Ação das comunidades e organizações
locais, por meio de brigadas voluntárias, calendários comunitários de queima,
aceiros e materiais educativos da Articulação Agro é Fogo e parceiros.
Apesar
dos avanços no enfrentamento aos incêndios, o Cerrado permanece em situação de
risco. A redução dos índices de desmatamento e focos de incêndios não elimina
as causas estruturais: pressão agropecuária, enfraquecimento da fiscalização e
desigualdade no acesso à terra. É preciso combinar conservação, restauração,
reconhecimentos dos direitos territoriais de PCTs, reforma agrária,
alternativas sustentáveis e protagonismo comunitário.
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Um chamado à ação
O
Cerrado está vivo e pulsante – mas em risco de colapso. Se a nação brasileira
quiser que ele continue sendo Berço das Águas, territórios de PCTs, casa de
espécies endêmicas e aliado climático, não pode permitir que os incêndios
criminosos continuem protagonizando cenas de devastação e expulsão de povos. É
evidente que o agro-hidro-minero-negócio é hegemônico em diversos setores
institucionais do país. Mas, os PCTs compõem o rizoma que estrutura as
florestas invertidas, os escoamentos das águas e as verdadeiras soluções para
‘adiar o fim do mundo’.
A
existência rizomática-coletiva das comunidades é o que vem garantindo uma
perspectiva de vida à humanidade. Devemos nos atentar a esse chamado de
resistência ancestral e, com urgência, fortalecer a teia de luta pela
conservação da natureza e a seguridade da existência dos povos não há uma saída
para o fim do mundo sem a existência de territórios livres das forças
físico-simbólicas do agro.
Livres
aqui, como na mesma cosmovisão do povo Kuna – que habita regiões do Panamá e
Colômbia – sobre a nossa América, nossa Abya Yala. Terra viva, madura, em
florescimento e conservada por povos que exigem demarcação de terras, reforma
agrária, moradia digna, economia solidária-circular, soberania alimentar e
direitos à um bem-viver.
Enfrentar
os incêndios e defender os territórios, portanto, exige luta coletiva e
articulada. Sem a defesa das nossas regiões ecológicas e dos povos que as
conservam não há defesa do clima – do Brasil, de Abya Yala ou do planeta.
Precisamos compreender que os micro e macro ecossistemas se sustentam
mutuamente e que só com ações conjuntas e compromisso será possível manter
vivos os bens comuns e equilíbrios que garantem o futuro da Terra.
Se o
Cerrado queima, não é por fatalidade natural, mas por escolhas. E é justamente
para deslocar esse olhar do inevitável para o ‘responsabilizável’ que povos e
comunidades têm se organizado em calendários do fogo, brigadas e espaços de
escuta pública. Em Belém, durante a COP30, essa teia se encontra fora da
bancada do agro: na Cúpula dos Povos e na COP do Povo, de 11 a 15 de novembro.
Ali,
vamos partilhar saídas que brotam da terra do Cerrado, como o Manual de
Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais das Comunidades do Cerrado, e
apresentar, no Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio, relatos, mapas de
afetação e evidências de casos que expõem territórios afetados pelo uso
criminoso do fogo. Não é apenas um lançamento: é circulação de saberes para
fortalecer o monitoramento comunitário e o manejo seguro onde a floresta
insiste.
É no
entrelaço de mística, técnica e prova que buscamos sustentar a defesa do clima
e da vida – porque enfrentar os incêndios é, ao mesmo tempo, cuidar das águas,
do alimento, da casa comum e do direito de existir. Que esse seja o ritmo: do rizoma que insiste, brota e compartilha
caminhos para adiar o fim do mundo.
Fonte:
Por João Palhares, no Le Monde

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