sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A Bolívia retornou ao domínio da elite branca governante

segundo turno da eleição de 19 de outubro na Bolívia não apenas elegeu o candidato da centro-direita Rodrigo Paz Pereira como o próximo presidente, como também colocou o último prego no caixão do governo de quase vinte anos de uma coalizão indígena de esquerda. O democrata-cristão Paz, impulsionado à proeminência por seu popular companheiro de chapa, o ex-policial Edman Lara, derrotou o candidato de extrema direita Jorge “Tuto” Quiroga com uma retumbante diferença de 9 pontos.

O clamor de Paz por um “capitalismo para todos” repercutiu em um país dominado pela maior economia informal do mundo. Mesmo durante os quatorze anos de governo do líder da classe trabalhadora indígena Evo Morales, raramente houve um debate sobre o socialismo em si. O vice-presidente marxista Álvaro García Linera promoveu o que chamou de “capitalismo andino-amazônico”, adaptado, em sua visão, à realidade de um país sem uma classe trabalhadora e uma economia industrial fortemente desenvolvidas. Em vez disso, seu partido, o MAS, concentrou-se no desenvolvimento de um Estado forte, capaz de negociar efetivamente com o capital privado em nome do povo boliviano.

“Quando Evo Morales assumiu o poder, os indígenas buscavam reconhecimento do Estado, mas agora estão mais interessados ​​em obter ajuda para seus empreendimentos comerciais, explica Quya Reyna, uma escritora aimará de 30 anos. Seus interesses deixaram de ser sociais e passaram a ser econômicos, o que significa que agora encontraram um lugar mais próximo da direita. No contexto da crescente mobilidade social e econômica criada pelo governo do MAS, votar em Paz representou uma escolha estratégica, concebida para evitar a perda das conquistas alcançadas durante o governo do MAS.

Embora Paz se apresentasse como um populista outsider, ele tem fortes laços com a classe dominante branca tradicional da Bolívia. Ex-prefeito da cidade de Tarija, no sul do país, e senador em exercício, ele é filho de um ex-presidente e sobrinho-neto de outro que cumpriu dois mandatos. No país com maior população indígena das Américas, sua eleição sinaliza o retorno do poder branco que governou a Bolívia até o governo de Morales.

“O clamor de Paz por um ‘capitalismo para todos’ repercutiu em um país dominado pela maior economia informal do mundo.”

Apesar desses antecedentes, Paz conquistou o apoio de organizações identificadas com a classe trabalhadora boliviana, como cooperativas de mineração e sindicatos de caminhoneiros, que antes faziam parte do MAS. Esse apoio foi impulsionado principalmente pelo companheiro de chapa de Paz, Lara, uma estrela nacional do TikTok que foi expulso da polícia por denunciar a corrupção e que recentemente enfrentou críticas por suas tendências autoritárias.

Nem todos os trabalhadores, porém, são fãs de Paz e Lara. Numa esquina movimentada da capital, La Paz, Mauricio Mamani Pokara vende jornais desde os sete anos. Quando lhe perguntaram se preferia Paz ou Tuto, ele debochou e respondeu com um enfático “nenhum dos dois”.

“Como o MAS se autodestruiu, não temos outra escolha senão votar no menos pior. E como ficam os pobres deste país? De volta ao ponto de partida, antes do MAS.” Seu sentimento foi compartilhado por bolivianos da classe trabalhadora em toda a região montanhosa e nos vales, que ficaram sem um partido ou candidato definido.

<><> A implosão de um partido

Ocolapso ficou evidente durante o primeiro turno das eleições, em agosto, quando o MAS, a força política boliviana mais poderosa dos últimos cinquenta anos, despencou de uma maioria legislativa para apenas uma cadeira. “Estamos em choque”, diz Freddy Condo, ex-consultor de organizações de movimentos sociais ligadas ao MAS. “Levará pelo menos um ano para assimilarmos o que aconteceu e desenvolvermos novas estratégias.”

A surpreendente queda foi impulsionada pela raiva popular contra o atual governo do MAS, liderado pelo economista Luis Arce. Sua administração foi responsável por uma profunda e crescente crise econômica, causada pela alta dos preços, escassez de combustível e falta de dólares estadunidenses.

O apoio ao MAS também se desintegrou devido às crescentes disputas internas entre Arce e o ex-presidente Morales. Como resultado, três facções diferentes do MAS concorreram às eleições de agosto. O MAS surgiu como instrumento político das organizações sindicais rurais e, uma vez no poder, proclamou-se um “governo dos movimentos sociais”. Essa falta de estruturas partidárias institucionais contribuiu para acelerar seu processo de desintegração.

As três facções disputavam os votos dos bolivianos que estavam cada vez mais desiludidos com o processo de mudança liderado pelo MAS. “O MAS governou por dez anos com base em seus compromissos e convicções políticas”, diz Condo. “Mas, depois de 2016, foi distorcido pelo individualismo, por interesses próprios e pela corrupção.”

Em 2016, Morales perdeu por pouco um referendo que lhe permitiria concorrer novamente à reeleição. Quando os apoiadores de Morales no Tribunal Constitucional decidiram que ele poderia concorrer de qualquer maneira, o descontentamento com o MAS se intensificou, especialmente entre as classes médias urbanas, ajudando a preparar o terreno para o golpe de extrema-direita de 2019.

As disputas internas no MAS aumentaram após seu retorno ao poder — e o retorno do país à democracia — com a retumbante vitória eleitoral de 2020 do ex-ministro da Economia de Morales, Arce, que havia administrado a economia durante o boom das commodities que financiou os programas sociais do MAS. Visto como um bom administrador, Arce conquistou 55% dos votos um ano após o golpe de Estado de 2019 que depôs Morales. Morales via Arce como um candidato de transição, abrindo caminho para que ele concorresse novamente em 2025, mas Arce e seu vice-presidente, David Choquehuanca, rapidamente trilharam seu próprio caminho.

Essa disputa gerou uma grave ruptura dentro do MAS, que se tornou ainda mais acirrada com o passar do tempo. A luta avassaladora fez com que o partido negligenciasse mudanças sociais significativas que suas políticas, em grande medida, ajudaram a concretizar. “Como o foco das facções do MAS era se destruírem mutuamente, a direita conseguiu construir com sucesso uma narrativa de que os últimos vinte anos foram um fracasso”, afirma o ex-vice-ministro do Planejamento, Alberto Borda. No primeiro turno, o político de extrema-direita Tuto também mobilizou o racismo profundamente enraizado na Bolívia em sua busca por apoio.

“Paz tem fortes laços com a elite dominante branca tradicional da Bolívia.”

Muitos votos que antes iam para o MAS se uniram em torno da chapa Paz-Lara. O cientista político Fernando Mayorga calcula que cerca de 30% dos votos dos bolivianos politicamente engajados em qualquer eleição serão para candidatos de esquerda e indígenas. “Outros 20% votavam no MAS em tempos de bonança, mas migraram para Paz e Lara nesta eleição”, afirma.

A mudança de apoio a Paz deveu-se em grande parte ao seu compromisso em preservar os programas sociais estabelecidos pelo MAS, que contribuíram para uma redução significativa da pobreza e da desigualdade de renda, bem como para o crescimento da classe média. Paz também reafirmou o compromisso de combater a corrupção e o nepotismo, e prometeu manter a recusa do governo do MAS em solicitar um resgate do Fundo Monetário Internacional — uma promessa de campanha que ele provavelmente não cumprirá.

Paz indicou que a reconstrução das relações com os Estados Unidos será uma prioridade, dezesseis anos depois de o governo Morales ter expulsado autoridades estadunidenses por interferência nos assuntos internos da Bolívia. Após expulsar o embaixador Philip Goldberg e a Agência de Combate às Drogas (DEA) em 2008, Morales expulsou a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) em 2013, que servia como instrumento da política estadunidense de erradicação da coca.

Praticamente vazia há anos, a gigantesca fortaleza que abriga a embaixada dos EUA em La Paz poderá receber um novo embaixador em questão de meses. Seu foco provavelmente será o mesmo dos funcionários do governo estadunidense na Bolívia desde a década de 1980: a erradicação da folha de coca, ingrediente essencial na produção de cocaína. Uma condição para o restabelecimento das relações diplomáticas poderá ser a reabertura do país para a DEA, o que fortalece o espectro da política antidrogas estadunidense ligada a violações de direitos humanos e instabilidade política na década de 1990.

Apesar de sua impressionante desintegração, o outrora hegemônico MAS supervisionou uma transição democrática de poder, ainda que isso tenha ocorrido às custas do próprio partido. “No passado, os partidos políticos eram muito mais fortes”, afirma Mayorga. Mas a Bolívia apresenta um alto nível de participação eleitoral, mesmo com o voto obrigatório, o que, segundo ele, “demonstra que as pessoas acreditam fortemente na democracia e em sua capacidade de mudar os rumos do país por meio das urnas”.

<><> Raízes da crise

Acrise econômica atual está diretamente relacionada aos padrões profundamente enraizados de dependência extrativista da Bolívia, que não foram abalados durante as quase duas décadas de governo do MAS. Pelo contrário, tecnologias mais avançadas e a crescente demanda da China intensificaram a exploração dos abundantes recursos naturais do país, particularmente na mineração artesanal de ouro e na produção industrial de soja, ambas ambientalmente destrutivas. O desmatamento, impulsionado pela expansão da soja, a maior exportação agrícola da Bolívia, acelera rapidamente a níveis alarmantes.

A queda nos preços das commodities e nas reservas de gás natural, as reservas financeiras internacionais em níveis catastróficos e, principalmente, a escassez de dólares, aumentaram o preço dos produtos básicos. “Nas aldeias próximas daqui, as pessoas fazem apenas duas refeições por dia porque os preços dos alimentos dispararam”, diz Álvaro Rodríguez, um estudante universitário de Sacaba, cidade a leste de Cochabamba.

Após a chegada ao poder do MAS em 2006, o governo boliviano enfrentou os problemas de um Estado historicamente frágil e carente de capacidade administrativa básica. O MAS expandiu o Estado significativamente, mas este ainda tendia a ser dominado pelo nepotismo e pelo clientelismo. Os poderosos movimentos sociais da Bolívia integraram-se a essas estruturas governamentais, o que fez com que perdessem gradualmente sua independência em relação ao Estado.

Particularmente nas áreas urbanas, “a despolitização dos pobres e da classe trabalhadora abriu espaço para que a direita moldasse cada vez mais a narrativa dominante”, afirma Andrés Huanca, candidato da bancada do MAS liderada pelo jovem sindicalista e presidente do Senado, Andrónico Rodríguez. Esse processo foi acelerado pelo crescente individualismo no país mais indígena das Américas, onde a influência histórica do coletivismo nas comunidades e nos sindicatos foi severamente comprometida.

Em partes, o individualismo floresceu graças a vinte anos de neoliberalismo, exacerbado pelo esvaziamento das áreas rurais devido à migração para as cidades, que muitas vezes deixa para trás apenas os idosos. Os jovens indígenas, que perdem rapidamente tanto a língua quanto a cultura nativas, geralmente só retornam ao campo para festivais.

“Como o MAS se autodestruiu, não temos outra escolha senão votar no mal menor.”

“Daqui para frente, precisamos rejeitar a atual ênfase no individualismo e na iniciativa privada”, exorta a feminista de Cochabamba, Carmen Nuñez. “Precisamos de maior reconhecimento de nós mesmos como trabalhadores e de mais organização enquanto trabalhadores. Esse processo de constante transferência da responsabilidade pelo desenvolvimento econômico para o indivíduo tem levado a classe trabalhadora para a direita.”

A Bolívia é hoje um país de maioria urbana, e os jovens das cidades, criados em relativa segurança econômica graças às conquistas do MAS, nunca vivenciaram a pobreza ou as dificuldades que marcaram a vida de seus pais. “Precisamos de discursos progressistas direcionados aos jovens urbanos. Os movimentos rurais, de onde o MAS surgiu, não só perderam importância, como muitas vezes trataram as áreas urbanas como pouco mais que uma fonte de votos”, afirma Huanca.

Grande parte da força do MAS residia na sua ênfase no aumento da inclusão e participação dos povos indígenas, aliada ao compromisso com um Estado plurinacional. Com o tempo, as dificuldades de implementação de uma visão plurinacional tornaram-na pouco mais do que simbólica. À medida que o país se tornava mais urbano, a ideia de que os povos indígenas liderariam uma regeneração social perdeu força, especialmente após escândalos de corrupção que envolveram representantes indígenas do governo.

Na Bolívia, as mudanças sociais radicais muitas vezes resultaram de alianças entre a classe trabalhadora e os povos indígenas com segmentos da classe média. “Para a classe média radical, pertencer a um partido político deixou de ser importante. Isso enfraqueceu nossa capacidade de confrontar o Estado”, explica Nuñez.

O apoio duradouro a Evo

“Evo ainda é uma força a ser reconhecida”, diz Mayorga. Depois de ser desqualificado da candidatura à presidência, Morales pediu a anulação dos votos nas eleições de agosto, e quase 19% da população acatou o pedido (normalmente, apenas 4% dos votos são anulados). Esse número foi quase o dobro da votação mais apertada entre os outros dois candidatos identificados como de esquerda.

Essa dedicação duradoura deriva do papel fundamental que Morales desempenhou na transformação do país. Grande parte dela vem dos pobres, cujas vidas foram transformadas para melhor pelo seu governo. “Eles têm uma dívida eterna com Evo”, diz Mayorga.

“Ele foi expulso da ala do MAS que esteve no poder nos últimos cinco anos, repetidamente ameaçado de prisão e sobreviveu ao que acredita ter sido uma tentativa de assassinato”, continua Mayorga. “Ele superou tudo isso e ainda assim conquistou a maior parte dos votos progressistas do país.”

Morales, que já fala em se candidatar em 2030, não pode mais desempenhar o papel de articular as diversas facções do MAS e os movimentos populares. Mesmo assim, ele formou um novo partido não registrado chamado EVO Pueblo (Estamos Volviendo Obedeciendo al Pueblo), que, até o momento, só encontrou apoio entre seus seguidores mais fiéis.

“À medida que o país se tornou mais urbano, a ideia de que os povos indígenas liderariam uma regeneração social perdeu sua ressonância.”

Houve uma rejeição generalizada a Morales em muitos setores, particularmente entre a classe média emergente. “Eles não querem voltar à pobreza e acham que é para lá que o MAS está caminhando”, diz Reyna. Condo acrescenta: “Na cultura aimará, só se pode ocupar o cargo de líder máximo uma vez. Evo violou isso repetidamente.”

No entanto, o apelo duradouro de Morales, especialmente entre os pobres e as populações rurais da Bolívia, é impossível de ignorar. “Um líder como Evo não aparece com frequência”, diz Borda, com um tom de nostalgia. “Mas agora ele ameaça destruir tudo o que o MAS construiu.”

Um caminho para o futuro?

Embora as forças de esquerda e indígenas estejam em desordem, quando o governo Paz-Lara tentar reequilibrar a economia por meio de medidas econômicas que previsivelmente afetarão os mais pobres, não há dúvida de que os bolivianos se rebelarão, como têm feito há séculos. Como tantas vezes aconteceu na era pré-MAS, a ausência de uma esquerda na Assembleia Legislativa que seja capaz de moderar propostas econômicas severas quase certamente incentivará o ressurgimento de protestos vibrantes nas ruas.

A esperança é que isso dê novo fôlego aos movimentos populares e lhes permita se remobilizar. Mas há o temor de que as persistentes divisões na esquerda — bem como a polarização de opiniões sobre Morales, outrora um símbolo da esquerda latino-americana — possam prejudicar o processo.

A reunificação entre as facções do MAS está em pauta, mas é improvável que aconteça a curto prazo. As eleições regionais e municipais estão previstas para março de 2026, e diversos grupos trabalham arduamente para apresentar candidatos progressistas em diferentes partes do país, mas encontrar estruturas partidárias confiáveis ​​para apoiá-los continua sendo um desafio.

O colapso impressionante do MAS significa que é preciso fazer um acerto de contas, e isso levará tempo. “Descobriu-se que o MAS não foi capaz de mudar profundamente o Estado e, no final, tornou-se parte de um Estado burguês como qualquer outro”, conclui Nuñez. “Esse fracasso voltou para prejudicá-los. É essencial que aprendamos com essa experiência para que possamos construir uma alternativa viável.”

 

Fonte: Por Linda Farthing - Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

 

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