A
Bolívia retornou ao domínio da elite branca governante
segundo
turno da eleição de 19 de outubro na Bolívia não apenas elegeu o candidato da
centro-direita Rodrigo Paz Pereira como o próximo presidente, como também
colocou o último prego no caixão do governo de quase vinte anos de uma coalizão
indígena de esquerda. O democrata-cristão Paz, impulsionado à proeminência por
seu popular companheiro de chapa, o ex-policial Edman Lara, derrotou o
candidato de extrema direita Jorge “Tuto” Quiroga com uma retumbante diferença
de 9 pontos.
O
clamor de Paz por um “capitalismo para todos” repercutiu em um país dominado
pela maior economia informal do mundo. Mesmo
durante os quatorze anos de governo do líder da classe trabalhadora indígena
Evo Morales, raramente houve um debate sobre o socialismo em si. O
vice-presidente marxista Álvaro García Linera promoveu o que chamou de “capitalismo
andino-amazônico”,
adaptado, em sua visão, à realidade de um país sem uma classe trabalhadora e
uma economia industrial fortemente desenvolvidas. Em vez disso, seu partido, o
MAS, concentrou-se no desenvolvimento de um Estado forte, capaz de negociar
efetivamente com o capital privado em nome do povo boliviano.
“Quando
Evo Morales assumiu o poder, os indígenas buscavam reconhecimento do Estado,
mas agora estão mais interessados em obter ajuda para seus empreendimentos
comerciais”, explica Quya Reyna, uma escritora aimará
de 30 anos. “Seus interesses deixaram de ser sociais e passaram a ser
econômicos, o que significa que agora encontraram um lugar
mais próximo da direita.” No contexto da
crescente mobilidade social e econômica criada pelo
governo do MAS, votar em Paz representou uma escolha estratégica, concebida para
evitar a perda das conquistas alcançadas durante o governo do MAS.
Embora
Paz se apresentasse como um populista outsider, ele tem fortes laços com a
classe dominante branca tradicional da Bolívia. Ex-prefeito da cidade de
Tarija, no sul do país, e senador em exercício, ele é filho de um ex-presidente
e sobrinho-neto de outro que cumpriu dois mandatos. No país com maior população
indígena das Américas, sua eleição sinaliza o retorno do
poder branco que governou a Bolívia até o governo de Morales.
“O
clamor de Paz por um ‘capitalismo para todos’ repercutiu em um país dominado
pela maior economia informal do mundo.”
Apesar
desses antecedentes, Paz conquistou o apoio de organizações identificadas com a
classe trabalhadora boliviana, como cooperativas de mineração e sindicatos de
caminhoneiros, que antes faziam parte do MAS. Esse apoio foi impulsionado
principalmente pelo companheiro de chapa de Paz, Lara, uma estrela nacional do
TikTok que foi expulso da polícia por denunciar a corrupção e que
recentemente enfrentou críticas por suas
tendências autoritárias.
Nem
todos os trabalhadores, porém, são fãs de Paz e Lara. Numa esquina movimentada
da capital, La Paz, Mauricio Mamani Pokara vende jornais desde os sete anos.
Quando lhe perguntaram se preferia Paz ou Tuto, ele debochou e respondeu com um
enfático “nenhum dos dois”.
“Como o
MAS se autodestruiu, não temos outra escolha senão votar no menos pior. E como
ficam os pobres deste país? De volta ao ponto de partida, antes do MAS.” Seu
sentimento foi compartilhado por bolivianos da classe trabalhadora em toda a
região montanhosa e nos vales, que ficaram sem um partido ou candidato
definido.
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A implosão de um partido
Ocolapso
ficou evidente durante o primeiro turno das eleições, em agosto, quando o MAS,
a força política boliviana mais poderosa dos últimos cinquenta anos, despencou
de uma maioria legislativa para apenas uma cadeira. “Estamos em choque”, diz
Freddy Condo, ex-consultor de organizações de movimentos sociais ligadas ao
MAS. “Levará pelo menos um ano para assimilarmos o que aconteceu e
desenvolvermos novas estratégias.”
A
surpreendente queda foi impulsionada pela raiva popular contra o atual governo
do MAS, liderado pelo economista Luis Arce. Sua administração foi responsável
por uma profunda e crescente crise econômica, causada pela alta dos
preços, escassez de combustível e falta de dólares estadunidenses.
O apoio
ao MAS também se desintegrou devido às crescentes disputas internas entre Arce
e o ex-presidente Morales. Como resultado, três facções diferentes do MAS
concorreram às eleições de agosto. O MAS surgiu como instrumento político das
organizações sindicais rurais e, uma vez no poder, proclamou-se um “governo dos
movimentos sociais”.
Essa falta de estruturas partidárias institucionais contribuiu para acelerar
seu processo de desintegração.
As três
facções disputavam os votos dos bolivianos que estavam cada vez mais desiludidos com o processo
de mudança liderado pelo MAS. “O MAS governou por dez anos com base em seus
compromissos e convicções políticas”, diz Condo. “Mas, depois de 2016, foi
distorcido pelo individualismo, por interesses próprios e pela corrupção.”
Em
2016, Morales perdeu por pouco um referendo que lhe permitiria concorrer
novamente à reeleição. Quando os apoiadores de Morales no Tribunal
Constitucional decidiram que ele poderia concorrer de qualquer maneira, o
descontentamento com o MAS se intensificou, especialmente entre as classes
médias urbanas, ajudando a preparar o terreno para o golpe de
extrema-direita de
2019.
As disputas internas no
MAS aumentaram após seu retorno ao poder — e o retorno do país à
democracia — com a retumbante vitória eleitoral de 2020 do ex-ministro da
Economia de Morales, Arce, que havia administrado a economia durante o boom das
commodities que financiou os programas sociais do MAS. Visto como um bom
administrador, Arce conquistou 55% dos votos um ano após o golpe de Estado de
2019 que
depôs Morales. Morales via Arce como um candidato de transição, abrindo caminho
para que ele concorresse novamente em 2025, mas Arce e seu vice-presidente,
David Choquehuanca, rapidamente trilharam seu próprio caminho.
Essa
disputa gerou uma grave ruptura dentro do MAS, que se tornou ainda mais
acirrada com o passar do tempo. A luta avassaladora fez com que o partido
negligenciasse mudanças sociais significativas que suas políticas, em grande
medida, ajudaram a concretizar. “Como o foco das
facções do MAS era se destruírem mutuamente, a direita conseguiu construir com
sucesso uma narrativa de que os últimos vinte anos foram um fracasso”, afirma o
ex-vice-ministro do Planejamento, Alberto Borda. No primeiro turno, o político
de extrema-direita Tuto também mobilizou o racismo
profundamente enraizado na Bolívia em sua busca por apoio.
“Paz
tem fortes laços com a elite dominante branca tradicional da Bolívia.”
Muitos
votos que antes iam para o MAS se uniram em torno da
chapa Paz-Lara. O cientista político Fernando Mayorga calcula que cerca de 30%
dos votos dos bolivianos politicamente engajados em qualquer eleição serão para
candidatos de esquerda e indígenas. “Outros 20% votavam no MAS em tempos de bonança,
mas migraram para Paz e Lara nesta eleição”, afirma.
A
mudança de apoio a Paz deveu-se em grande parte ao seu compromisso em preservar
os programas sociais estabelecidos pelo MAS, que contribuíram para uma redução
significativa da
pobreza e da desigualdade de renda, bem como para o crescimento da classe
média. Paz também reafirmou o compromisso de combater a corrupção e o
nepotismo, e prometeu manter a recusa do governo do MAS em solicitar um resgate
do Fundo Monetário Internacional — uma promessa de campanha que ele
provavelmente não cumprirá.
Paz
indicou que a reconstrução das relações com os Estados Unidos será uma
prioridade, dezesseis anos depois de o governo Morales ter expulsado
autoridades estadunidenses por interferência nos assuntos internos da Bolívia.
Após expulsar o embaixador Philip Goldberg e a Agência de Combate às Drogas
(DEA) em 2008, Morales expulsou a Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional (USAID) em 2013, que servia como instrumento
da política
estadunidense de erradicação da coca.
Praticamente
vazia há anos, a gigantesca fortaleza que abriga a embaixada dos EUA em La Paz
poderá receber um novo embaixador em questão de meses. Seu foco provavelmente
será o mesmo dos funcionários do
governo estadunidense na Bolívia desde a década de 1980: a erradicação
da folha de coca, ingrediente essencial na produção de cocaína. Uma condição
para o restabelecimento das relações diplomáticas poderá ser a reabertura do país para a
DEA, o que fortalece o espectro da política antidrogas estadunidense ligada
a violações de
direitos humanos e
instabilidade política na década de 1990.
Apesar
de sua impressionante desintegração, o outrora hegemônico MAS supervisionou uma transição
democrática de poder, ainda que isso tenha ocorrido às custas do próprio
partido. “No passado, os partidos políticos eram muito mais fortes”, afirma
Mayorga. Mas a Bolívia apresenta um alto nível de participação eleitoral, mesmo
com o voto obrigatório, o que, segundo ele, “demonstra que as pessoas acreditam
fortemente na democracia e em sua capacidade de mudar os rumos do país por meio
das urnas”.
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Raízes da crise
Acrise
econômica atual está diretamente relacionada aos padrões profundamente
enraizados de dependência
extrativista da
Bolívia, que não foram abalados durante as quase duas décadas de governo do
MAS. Pelo contrário, tecnologias mais avançadas e a crescente demanda da China
intensificaram a exploração dos abundantes recursos naturais do país,
particularmente na mineração artesanal
de ouro e na produção industrial de
soja, ambas ambientalmente destrutivas. O desmatamento, impulsionado pela
expansão da soja, a maior exportação agrícola da Bolívia, acelera rapidamente
a níveis alarmantes.
A queda
nos preços das commodities e nas reservas de gás natural, as reservas
financeiras internacionais
em níveis catastróficos e, principalmente, a escassez de dólares, aumentaram o
preço dos produtos básicos. “Nas aldeias próximas daqui, as pessoas fazem
apenas duas refeições por dia porque os preços dos alimentos dispararam”, diz
Álvaro Rodríguez, um estudante universitário de Sacaba, cidade a leste de
Cochabamba.
Após a
chegada ao poder do MAS em 2006, o governo boliviano enfrentou os problemas de
um Estado historicamente frágil e carente de capacidade
administrativa básica.
O MAS expandiu o Estado significativamente, mas este ainda tendia a ser
dominado pelo nepotismo e pelo clientelismo. Os poderosos movimentos sociais da
Bolívia integraram-se a essas estruturas governamentais, o que fez com
que perdessem
gradualmente sua independência em relação ao Estado.
Particularmente
nas áreas urbanas, “a despolitização dos pobres e da classe trabalhadora abriu
espaço para que a direita moldasse cada vez mais a narrativa dominante”, afirma
Andrés Huanca, candidato da bancada do MAS liderada pelo jovem sindicalista e presidente
do Senado, Andrónico Rodríguez. Esse processo foi acelerado pelo crescente
individualismo no país mais indígena das Américas, onde a influência histórica do
coletivismo nas comunidades e nos sindicatos foi severamente comprometida.
Em
partes, o individualismo floresceu graças a vinte anos de neoliberalismo, exacerbado pelo
esvaziamento das áreas rurais devido à migração para as cidades, que muitas
vezes deixa para trás apenas os idosos. Os jovens indígenas, que perdem
rapidamente tanto a língua quanto a cultura nativas, geralmente só retornam ao
campo para festivais.
“Como o
MAS se autodestruiu, não temos outra escolha senão votar no mal menor.”
“Daqui
para frente, precisamos rejeitar a atual ênfase no individualismo e na
iniciativa privada”, exorta a feminista de Cochabamba, Carmen Nuñez.
“Precisamos de maior reconhecimento de nós mesmos como trabalhadores e de mais
organização enquanto trabalhadores. Esse processo de constante transferência da
responsabilidade pelo desenvolvimento econômico para o indivíduo tem levado a
classe trabalhadora para a direita.”
A
Bolívia é hoje um país de maioria
urbana,
e os jovens das cidades, criados em relativa segurança econômica graças às
conquistas do MAS, nunca vivenciaram a pobreza ou as dificuldades que marcaram
a vida de seus pais. “Precisamos de discursos progressistas direcionados aos
jovens urbanos. Os movimentos rurais, de onde o MAS surgiu, não só perderam
importância, como muitas vezes trataram as áreas urbanas como pouco mais que
uma fonte de votos”, afirma Huanca.
Grande
parte da força do MAS residia na sua ênfase no aumento da inclusão e
participação dos povos indígenas, aliada ao compromisso com um Estado
plurinacional. Com o tempo, as dificuldades de implementação de uma visão
plurinacional tornaram-na pouco mais do que simbólica. À medida que o país
se tornava mais urbano, a ideia de que os povos indígenas liderariam uma
regeneração social perdeu força, especialmente após escândalos de
corrupção que
envolveram representantes indígenas do governo.
Na
Bolívia, as mudanças sociais radicais muitas vezes resultaram de alianças
entre a classe trabalhadora e os povos indígenas com segmentos da classe média.
“Para a classe média radical, pertencer a um partido político deixou de ser
importante. Isso enfraqueceu nossa capacidade de confrontar o Estado”, explica
Nuñez.
O apoio
duradouro a Evo
“Evo
ainda é uma força a ser reconhecida”, diz Mayorga. Depois de
ser desqualificado da candidatura à presidência, Morales pediu a anulação dos
votos nas eleições de agosto, e quase 19% da população acatou o pedido
(normalmente, apenas 4% dos votos são anulados). Esse número foi quase o dobro
da votação mais apertada entre os outros dois candidatos identificados como de
esquerda.
Essa
dedicação duradoura deriva do papel fundamental que Morales
desempenhou na transformação do país. Grande parte dela vem dos pobres, cujas
vidas foram transformadas para melhor pelo seu governo. “Eles têm uma dívida
eterna com Evo”, diz Mayorga.
“Ele
foi expulso da ala do MAS que esteve no poder nos últimos cinco anos,
repetidamente ameaçado de prisão e sobreviveu ao que acredita ter sido uma
tentativa de assassinato”, continua Mayorga. “Ele superou tudo isso e ainda
assim conquistou a maior parte dos votos progressistas do país.”
Morales,
que já fala em se candidatar em 2030, não pode mais desempenhar o papel de
articular as diversas facções do MAS e os movimentos populares. Mesmo assim,
ele formou um novo partido não registrado chamado EVO Pueblo (Estamos
Volviendo Obedeciendo al Pueblo), que, até o momento, só encontrou apoio
entre seus seguidores mais fiéis.
“À
medida que o país se tornou mais urbano, a ideia de que os povos indígenas
liderariam uma regeneração social perdeu sua ressonância.”
Houve
uma rejeição generalizada a Morales em muitos setores, particularmente entre a
classe média emergente. “Eles não querem voltar à pobreza e acham que é para lá
que o MAS está caminhando”, diz Reyna. Condo acrescenta: “Na cultura aimará, só
se pode ocupar o cargo de líder máximo uma vez. Evo violou isso repetidamente.”
No
entanto, o apelo duradouro de Morales, especialmente entre os pobres e as
populações rurais da Bolívia, é impossível de ignorar. “Um líder como Evo não
aparece com frequência”, diz Borda, com um tom de nostalgia. “Mas agora ele
ameaça destruir tudo o que o MAS construiu.”
Um
caminho para o futuro?
Embora
as forças de esquerda e indígenas estejam em desordem, quando o governo
Paz-Lara tentar reequilibrar a economia por meio de medidas econômicas que
previsivelmente afetarão os mais pobres, não há dúvida de que os
bolivianos se rebelarão, como têm feito
há séculos. Como tantas vezes aconteceu na era pré-MAS, a ausência de uma
esquerda na Assembleia Legislativa que seja capaz de moderar propostas
econômicas severas quase certamente incentivará o ressurgimento
de protestos vibrantes nas ruas.
A
esperança é que isso dê novo fôlego aos movimentos populares e lhes permita se
remobilizar. Mas há o temor de que as persistentes divisões na esquerda — bem
como a polarização de opiniões sobre Morales, outrora um símbolo da esquerda
latino-americana — possam prejudicar o processo.
A
reunificação entre as facções do MAS está em pauta, mas é improvável que
aconteça a curto prazo. As eleições regionais e municipais estão previstas para
março de 2026, e diversos grupos trabalham arduamente para apresentar
candidatos progressistas em diferentes partes do país, mas encontrar estruturas
partidárias confiáveis para apoiá-los
continua sendo um desafio.
O
colapso impressionante do MAS significa que é preciso fazer um acerto de
contas, e isso levará tempo. “Descobriu-se que o MAS não foi capaz de mudar
profundamente o Estado e, no final, tornou-se parte de um Estado burguês como
qualquer outro”, conclui Nuñez. “Esse fracasso voltou para prejudicá-los. É
essencial que aprendamos com essa experiência para que possamos construir uma
alternativa viável.”
Fonte: Por Linda
Farthing - Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

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