Educação
popular e experiência de resistência na Amazônia
A
Amazônia é um território marcado por complexas contradições socioambientais e
econômicas, atravessado por relações de poder e disputas históricas pelo uso da
terra e exploração dos recursos naturais. Sobre isso, Gondim (2010, p.45)
destaca que: “A Amazônia configura-se como um espaço de múltiplas tensões, onde
a presença do Estado, os interesses econômicos e as práticas culturais das
populações tradicionais entram em constante conflito, tornando-se palco de
disputas históricas pela preservação, ocupação e exploração do território.”
Essa linha de reflexão nos leva a considerar sobre os chamados programas de
desenvolvimento implementados ao longo das últimas décadas na Amazônia, que, em
vez de garantir sustentabilidade, reforçaram processos de devastação e
expropriação.
Pinto
(1980) destaca que a lógica de exploração é estrutural, revelando uma relação
de pilhagem contínua sobre o território e seus povos. Na mesma direção, Souza
(2009) lembra que a Amazônia se constituiu a partir de múltiplas camadas
históricas – dos povos originários à colonização europeia, passando pelos
ciclos da borracha e pelas frentes de expansão, o que resultou numa diversidade
cultural e étnica que ainda hoje sustenta identidades coletivas e práticas
comunitárias. Para o autor, a compreensão da Amazônia exige reconhecer tanto as
formas de dominação quanto as estratégias de sobrevivência e reinvenção
cultural. Aprofundando a análise, Milhomens (2022) ao discutir os movimentos
sociais e as redes de mobilização na Amazônia, revela como povos tradicionais e
organizações comunitárias articulam resistência local e engajamento global
diante de grandes projetos de infraestrutura, como Belo Monte. Nesse escopo, a
Educação Popular, emerge como prática dialógica e dialética de formação,
conscientização e organização política.
Para
aprofundarmos o contexto da região amazônica, o Relatório Conflitos no Campo
Brasil 2024 da Comissão Pastoral da Terra – CPT, informa que foram registrados
1.768 conflitos por terra, representando cerca de 80% dos conflitos no campo no
Brasil. A maioria desses conflitos foram marcados por violências contra a
ocupação e posse da terra, com destaque para ameaças de expulsão, incêndios
criminosos, contaminação por agrotóxicos e desmatamento ilegal. No caso dos
povos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2025) registrou em
2024, 211 assassinatos de indígenas, o maior número da última década, com
destaque para Roraima (57), Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33).
O
relatório também contabilizou 424 casos de violência contra a pessoa indígena,
que incluem assassinatos, tentativas de homicídio, ameaças, racismo e violência
sexual. Além disso, mesmo as terras indígenas regularizadas foram alvo de
invasões e pressões de garimpeiros, madeireiros e grileiros, evidenciando a
fragilidade da proteção estatal.
É nesse
cenário que se insere a busca de evidenciar a importância da Educação Popular
na Amazônia, realizando visitas de convivência e diálogo nas comunidades rurais
e urbanas, desde o início de 2014. Especialmente em municípios distantes dos
grandes centros, como Gurupá/Pará, Belém do Solimões no município de
Tabatinga/Amazonas fronteira na cidade de Letícia – Colômbia e Santa Rosa-Peru.
Nas
fronteiras as violências estão diante dos nossos olhos, onde os sofrimentos,
principalmente, das mulheres que choram a morte dos filhos se revelam.
Sofrimento também, de jovens que buscam em bebidas alcóolicas uma saída dos
seus problemas existências. Os indígenas Ticunas e outras etnias vivem em
fronteiras sem fiscalização e se tornam iscas fáceis na corrente do
narcotráfico, do tráfico de pessoas, e outras práticas de violências. Nessas
fronteiras é escancarada a desigualdade social e o abandono do Estado.
No que
tange as cidades do Maranhão, há vários grupos de mulheres e trabalhadores
rurais que se organizam de modo a proteger seus territórios. Elas sofrem
ameaças diretas dos grandes fazendeiros, que pulverizam com veneno a área
utilizando drones, envenenando os córregos do território e os corpos de homens,
mulheres e crianças que são contaminados pelo veneno e, também dos animais. As
formas de barrar os ataques que tem por mandantes os fazendeiros é se armarem
com as ferramentas de trabalho (foice, machado e cipó), e estruturar as falas
para conversar com o poder público e cobrar celeridade na demarcação dos seus
territórios.
Já no
Estado de Roraima visitamos os municípios fronteiriços: Pacaraima que faz
divisa com Brasil e Venezuela, Bonfim, fronteira com Léthen/Guiana Inglesa. Por
ser um Estado de fronteira, as problemáticas comuns estão relacionadas ao
tráfico humano, alto índice de exploração sexual, ataques xenofóbicos e tráfico
de drogas, além de múltiplas violências sobre os territórios. Nesse contexto,
buscamos compreender como a Educação Popular se revela nas práticas de
resistência diante das múltiplas violências e das invasões dos territórios,
articulando saberes locais com análises críticas da realidade.
A
metodologia compreendida por Minayo (2001) é caminho do pensamento e a prática
exercida na abordagem da realidade. Neste sentido, ocupa um lugar importante no
interior das teorias e está sempre referida a elas. De acordo com a autora, a
pesquisa qualitativa “não se limita a medir fenômenos, mas visa sobretudo
analisar, interpretar, compreender e dar sentido às experiências sociais,
considerando o contexto em que ocorrem”. (Minayo, 2001, p. 21).
Esse
olhar voltado para a realidade dos sujeitos nos permite aprofundar a análise
das práticas de resistência e das ações educativas nas comunidades amazônicas,
valorizando as vozes de seus participantes – vozes que são silenciadas pelo
sistema capitalista liberal por meio de violências já relatadas. Ao
priorizarmos os conhecimentos ancestrais dos povos e das comunidades
tradicionais, buscamos inspiração na Educação Popular freiriana, por
entendermos que o diálogo, a escuta ativa e a leitura crítica da realidade são
princípios norteadores dessa educação. Brandão (1998, p. 15) assevera que “a
Educação Popular é um processo de aprendizagem situada, que combina reflexão e
ação, estimulando sujeitos coletivos a compreenderem e transformarem seu
contexto social”. Assim, adotamos procedimentos que privilegiam a interação, a
construção coletiva do conhecimento e o protagonismo das comunidades.
Fundamentamo-nos
no materialismo histórico-dialético, pois buscamos analisar as práticas
comunitárias a partir dos sujeitos históricos. Estruturamo-nos no movimento
dialético que, segundo Paulo Netto (2002, p. 34), permite compreender as
práticas sociais como processos dinâmicos, em constante contradição e
transformação, considerando tanto os conflitos quanto as possibilidades de
mudança.
Quando
analisamos os dados sobre as diversas e múltiplas violência na Amazônia,
torna-se fundamental dialogarmos com pessoas que estão na fronte das constantes
ameaças, e, nesse sentido, a dialética do concreto, proposto por Kosík (1976),
contribui para melhor compreensão e leitura crítica dos fenômenos sociais como
totalidades históricas e contextuais, em que cada ação só pode ser entendida em
relação ao todo em que está inserida. Assim, a metodologia busca captar não
apenas os eventos observáveis na ótica do imediato pelo que está posto, mas
também seus sentidos, relações e contradições.
Nesse
sentido, Kosík (1976, p. 56) afirma que “o concreto é a totalidade percebida em
seus aspectos dinâmicos e contraditórios”, o que nos leva a compreender as
práticas comunitárias como parte de um todo social, em constante interação com
as estruturas econômicas, políticas e ambientais. Assim, “a dialética é o
estudo do movimento, da mudança e das contradições que impulsionam o
desenvolvimento das coisas” (Konder, 1981, p. 13).
Portanto,
para analisar as práticas pedagógicas comunitárias e de resistência, é
necessário compreender os processos de mudança estrutural ao longo da história,
mantendo-se atentos às tensões e contradições que atravessam a realidade
social. Como destaca Konder (1981, p. 29), “toda realidade é contraditória, e é
justamente a contradição que provoca as mudanças históricas”.
Nas
comunidades amazônicas, os espaços de práticas educativas e de resistência
emergem nos diálogos intergeracionais e em meio aos constantes conflitos
estruturais, como a exploração da floresta e as disputas territoriais. Nesse
contexto, faz sentido reafirmar que “nada existe isoladamente; tudo se
relaciona e se condiciona mutuamente dentro de uma totalidade” (Konder, 1981,
p. 44).
Logo, o
conhecimento dialético não se limita à descrição dos fatos, mas se volta à
análise crítica das contradições históricas que permeiam os acontecimentos.
Partindo
da materialidade dos dados, observa-se que os territórios indígenas
fronteiriços e as comunidades tradicionais enfrentam constantes invasões em
suas terras por pescadores ilegais, garimpeiros, madeireiros e turistas, além
de conflitos internos que violam acordos de manejo sustentável. Esses elementos
evidenciam como a exploração econômica se sobrepõe às necessidades dessas
comunidades.
Conforme
Marx (2017), o capitalismo, para garantir sua produção e reprodução social,
impacta negativamente o meio ambiente, explorando-o até o seu esgotamento. Seus
efeitos são sentidos por todo o gênero humano; no entanto, por se tratar de uma
sociedade estruturada na desigualdade, as populações em situação de desproteção
social são as mais afetadas – especialmente as mais pobres, periféricas,
quilombolas, negras e indígenas, entre outras.
O
capital, invisibiliza o sofrimento das comunidades (indígenas, ribeirinhas,
quilombolas, camponesas), tratando a destruição de suas formas de vida como
algo natural ou até necessário ao “progresso”, legitimando práticas de
atividades produtivas de exploração: mineração, agronegócio, desmatamento,
hidrelétricas, grilagem etc., sempre justificadas em nome do “desenvolvimento”.
O fato é que na escala do crescimento econômico, a desigualdade aumenta, e,
segundo Fernandes (1981): “o desenvolvimento capitalista brasileiro se
consolida sobre a desigualdade racial e a exclusão social, transformando corpos
e territórios periféricos em instrumentos de acumulação de riquezas.
Os
povos e as comunidades tradicionais, historicamente invisibilizados e
marginalizados, ao utilizarem seus conhecimentos e práticas tradicionais e
ancestrais que possibilitam o manejo sustentável dos recursos naturais,
desempenham um papel essencial na preservação do meio ambiente, da
biodiversidade e dos ecossistemas, em contraposição ao modo de produção
vigente.
Como
afirma Diegues (2000), “conhecê-los, bem como apreender seus modos de vida e
organização social, é de extrema importância, pois isso possibilita a
valorização e a proteção de suas culturas, conhecimentos e práticas ancestrais,
garantindo-lhes o direito de continuar habitando com segurança em suas terras”.
A
lógica capitalista, por sua vez, manifesta-se na pressão sobre a terra e na
mercantilização da produção alimentar, colocando em risco os modos de vida
tradicionais e a autonomia comunitária.
Contrapondo-se
à premissa do capital, Freire (1989, p. 6) destaca que a liberdade “é a matriz
que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e
eficácia na medida da participação livre e crítica dos educandos”. Com base
nesse pressuposto, a educação libertadora tem entre seus princípios a
dialogicidade, a problematização e a reflexão crítica. O diálogo, nesse
contexto, constitui-se como o instrumento que possibilita desvelar a realidade
a partir dos diferentes pontos de vista dos sujeitos envolvidos, trazendo à
tona a problematização – fruto direto desse processo dialógico. A reflexão
crítica, por sua vez, ocorre quando nos formamos como pessoas conscientes e
socialmente responsáveis.
Podemos
afirmar, portanto, que a Educação Popular transcende um conjunto de “normas” e
“princípios”, à medida que busca a práxis – a educação como prática de
liberdade –, instrumentalizando o sujeito para intervir de forma crítica no
contexto em que vive (Freire, 1989).
No
contexto dos povos amazônicos, e em especial das mulheres, é possível perceber
com clareza como a Educação Popular dá sentido não apenas às tarefas
cotidianas, mas também às práticas que estruturam as diversas atividades
coletivas.
É
sempre necessário reafirmar que as comunidades enfrentam contradições
estruturais entre forças produtivas e relações de exploração, refletidas no
avanço do agronegócio, no uso intensivo de agrotóxicos, na degradação
ambiental, na vulnerabilidade da agricultura familiar, na migração forçada e no
trabalho precarizado. Tais contradições elucidam a tensão permanente entre a
sobrevivência das comunidades e a lógica do capital.
Em
resposta as perversidades do capital, as comunidades lutam, construindo suas
formas de resistências de maneira pedagógica e social. Como exemplos: a
organização em associações de base comunitária, realização de rodas de conversa
e assembleias com produção de narrativas em desenhos (conversa desenhada),
esta, uma importante ferramenta pedagógica, utilização de rádios comunitárias,
mobilização em marchas e eventos de denúncias.
A
agricultura familiar e as práticas coletivas de produção e proteção ambiental
emergem como sinais concretos de permanência e esperança, articulando leitura
crítica da realidade com ação transformadora. Segundo Saviani (2008) é a partir
destes movimentos que as comunidades entendem a importância da permanência nos
territórios. O que significa dizer também, que, é através da Educação Popular
em encontros, reuniões, assembleias, e, sobretudo nas rodas de conversa, onde o
coletivo é a força que garante conquistas importantes e capacita as mulheres,
jovens e homens, que as transformações de suas realidades vêm acontecendo.
Essas ações nos territórios da Amazônia brasileira, nos permite entender
Freire, quando diz: “Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o
opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em
si mesmos […].” Freire (2021, p. 72)
Entendemos
a Educação Popular como uma ferramenta importante a garantir direitos previstos
em leis oficiais do Brasil, onde, cidadãs e cidadãos são sujeitos de direitos
no que diz respeito a educação, a saúde, a segurança, ao meio ambiente
saudável, pelos quais rege a Constituição Federal de 1988. Compreendemos,
portanto, que essa ferramenta garante aspectos relevantes da educação no
contexto que delimitamos.
Fonte:
Por Arlete Gomes dos Santos, no Le Monde

Nenhum comentário:
Postar um comentário