quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Educação popular e experiência de resistência na Amazônia

A Amazônia é um território marcado por complexas contradições socioambientais e econômicas, atravessado por relações de poder e disputas históricas pelo uso da terra e exploração dos recursos naturais. Sobre isso, Gondim (2010, p.45) destaca que: “A Amazônia configura-se como um espaço de múltiplas tensões, onde a presença do Estado, os interesses econômicos e as práticas culturais das populações tradicionais entram em constante conflito, tornando-se palco de disputas históricas pela preservação, ocupação e exploração do território.” Essa linha de reflexão nos leva a considerar sobre os chamados programas de desenvolvimento implementados ao longo das últimas décadas na Amazônia, que, em vez de garantir sustentabilidade, reforçaram processos de devastação e expropriação.

Pinto (1980) destaca que a lógica de exploração é estrutural, revelando uma relação de pilhagem contínua sobre o território e seus povos. Na mesma direção, Souza (2009) lembra que a Amazônia se constituiu a partir de múltiplas camadas históricas – dos povos originários à colonização europeia, passando pelos ciclos da borracha e pelas frentes de expansão, o que resultou numa diversidade cultural e étnica que ainda hoje sustenta identidades coletivas e práticas comunitárias. Para o autor, a compreensão da Amazônia exige reconhecer tanto as formas de dominação quanto as estratégias de sobrevivência e reinvenção cultural. Aprofundando a análise, Milhomens (2022) ao discutir os movimentos sociais e as redes de mobilização na Amazônia, revela como povos tradicionais e organizações comunitárias articulam resistência local e engajamento global diante de grandes projetos de infraestrutura, como Belo Monte. Nesse escopo, a Educação Popular, emerge como prática dialógica e dialética de formação, conscientização e organização política.

Para aprofundarmos o contexto da região amazônica, o Relatório Conflitos no Campo Brasil 2024 da Comissão Pastoral da Terra – CPT, informa que foram registrados 1.768 conflitos por terra, representando cerca de 80% dos conflitos no campo no Brasil. A maioria desses conflitos foram marcados por violências contra a ocupação e posse da terra, com destaque para ameaças de expulsão, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos e desmatamento ilegal. No caso dos povos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2025) registrou em 2024, 211 assassinatos de indígenas, o maior número da última década, com destaque para Roraima (57), Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33).

O relatório também contabilizou 424 casos de violência contra a pessoa indígena, que incluem assassinatos, tentativas de homicídio, ameaças, racismo e violência sexual. Além disso, mesmo as terras indígenas regularizadas foram alvo de invasões e pressões de garimpeiros, madeireiros e grileiros, evidenciando a fragilidade da proteção estatal.

É nesse cenário que se insere a busca de evidenciar a importância da Educação Popular na Amazônia, realizando visitas de convivência e diálogo nas comunidades rurais e urbanas, desde o início de 2014. Especialmente em municípios distantes dos grandes centros, como Gurupá/Pará, Belém do Solimões no município de Tabatinga/Amazonas fronteira na cidade de Letícia – Colômbia e Santa Rosa-Peru.

Nas fronteiras as violências estão diante dos nossos olhos, onde os sofrimentos, principalmente, das mulheres que choram a morte dos filhos se revelam. Sofrimento também, de jovens que buscam em bebidas alcóolicas uma saída dos seus problemas existências. Os indígenas Ticunas e outras etnias vivem em fronteiras sem fiscalização e se tornam iscas fáceis na corrente do narcotráfico, do tráfico de pessoas, e outras práticas de violências. Nessas fronteiras é escancarada a desigualdade social e o abandono do Estado.

No que tange as cidades do Maranhão, há vários grupos de mulheres e trabalhadores rurais que se organizam de modo a proteger seus territórios. Elas sofrem ameaças diretas dos grandes fazendeiros, que pulverizam com veneno a área utilizando drones, envenenando os córregos do território e os corpos de homens, mulheres e crianças que são contaminados pelo veneno e, também dos animais. As formas de barrar os ataques que tem por mandantes os fazendeiros é se armarem com as ferramentas de trabalho (foice, machado e cipó), e estruturar as falas para conversar com o poder público e cobrar celeridade na demarcação dos seus territórios.

Já no Estado de Roraima visitamos os municípios fronteiriços: Pacaraima que faz divisa com Brasil e Venezuela, Bonfim, fronteira com Léthen/Guiana Inglesa. Por ser um Estado de fronteira, as problemáticas comuns estão relacionadas ao tráfico humano, alto índice de exploração sexual, ataques xenofóbicos e tráfico de drogas, além de múltiplas violências sobre os territórios. Nesse contexto, buscamos compreender como a Educação Popular se revela nas práticas de resistência diante das múltiplas violências e das invasões dos territórios, articulando saberes locais com análises críticas da realidade.

A metodologia compreendida por Minayo (2001) é caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. Neste sentido, ocupa um lugar importante no interior das teorias e está sempre referida a elas. De acordo com a autora, a pesquisa qualitativa “não se limita a medir fenômenos, mas visa sobretudo analisar, interpretar, compreender e dar sentido às experiências sociais, considerando o contexto em que ocorrem”. (Minayo, 2001, p. 21).

Esse olhar voltado para a realidade dos sujeitos nos permite aprofundar a análise das práticas de resistência e das ações educativas nas comunidades amazônicas, valorizando as vozes de seus participantes – vozes que são silenciadas pelo sistema capitalista liberal por meio de violências já relatadas. Ao priorizarmos os conhecimentos ancestrais dos povos e das comunidades tradicionais, buscamos inspiração na Educação Popular freiriana, por entendermos que o diálogo, a escuta ativa e a leitura crítica da realidade são princípios norteadores dessa educação. Brandão (1998, p. 15) assevera que “a Educação Popular é um processo de aprendizagem situada, que combina reflexão e ação, estimulando sujeitos coletivos a compreenderem e transformarem seu contexto social”. Assim, adotamos procedimentos que privilegiam a interação, a construção coletiva do conhecimento e o protagonismo das comunidades.

Fundamentamo-nos no materialismo histórico-dialético, pois buscamos analisar as práticas comunitárias a partir dos sujeitos históricos. Estruturamo-nos no movimento dialético que, segundo Paulo Netto (2002, p. 34), permite compreender as práticas sociais como processos dinâmicos, em constante contradição e transformação, considerando tanto os conflitos quanto as possibilidades de mudança.

Quando analisamos os dados sobre as diversas e múltiplas violência na Amazônia, torna-se fundamental dialogarmos com pessoas que estão na fronte das constantes ameaças, e, nesse sentido, a dialética do concreto, proposto por Kosík (1976), contribui para melhor compreensão e leitura crítica dos fenômenos sociais como totalidades históricas e contextuais, em que cada ação só pode ser entendida em relação ao todo em que está inserida. Assim, a metodologia busca captar não apenas os eventos observáveis na ótica do imediato pelo que está posto, mas também seus sentidos, relações e contradições.

Nesse sentido, Kosík (1976, p. 56) afirma que “o concreto é a totalidade percebida em seus aspectos dinâmicos e contraditórios”, o que nos leva a compreender as práticas comunitárias como parte de um todo social, em constante interação com as estruturas econômicas, políticas e ambientais. Assim, “a dialética é o estudo do movimento, da mudança e das contradições que impulsionam o desenvolvimento das coisas” (Konder, 1981, p. 13).

Portanto, para analisar as práticas pedagógicas comunitárias e de resistência, é necessário compreender os processos de mudança estrutural ao longo da história, mantendo-se atentos às tensões e contradições que atravessam a realidade social. Como destaca Konder (1981, p. 29), “toda realidade é contraditória, e é justamente a contradição que provoca as mudanças históricas”.

Nas comunidades amazônicas, os espaços de práticas educativas e de resistência emergem nos diálogos intergeracionais e em meio aos constantes conflitos estruturais, como a exploração da floresta e as disputas territoriais. Nesse contexto, faz sentido reafirmar que “nada existe isoladamente; tudo se relaciona e se condiciona mutuamente dentro de uma totalidade” (Konder, 1981, p. 44).

Logo, o conhecimento dialético não se limita à descrição dos fatos, mas se volta à análise crítica das contradições históricas que permeiam os acontecimentos.

Partindo da materialidade dos dados, observa-se que os territórios indígenas fronteiriços e as comunidades tradicionais enfrentam constantes invasões em suas terras por pescadores ilegais, garimpeiros, madeireiros e turistas, além de conflitos internos que violam acordos de manejo sustentável. Esses elementos evidenciam como a exploração econômica se sobrepõe às necessidades dessas comunidades.

Conforme Marx (2017), o capitalismo, para garantir sua produção e reprodução social, impacta negativamente o meio ambiente, explorando-o até o seu esgotamento. Seus efeitos são sentidos por todo o gênero humano; no entanto, por se tratar de uma sociedade estruturada na desigualdade, as populações em situação de desproteção social são as mais afetadas – especialmente as mais pobres, periféricas, quilombolas, negras e indígenas, entre outras.

O capital, invisibiliza o sofrimento das comunidades (indígenas, ribeirinhas, quilombolas, camponesas), tratando a destruição de suas formas de vida como algo natural ou até necessário ao “progresso”, legitimando práticas de atividades produtivas de exploração: mineração, agronegócio, desmatamento, hidrelétricas, grilagem etc., sempre justificadas em nome do “desenvolvimento”. O fato é que na escala do crescimento econômico, a desigualdade aumenta, e, segundo Fernandes (1981): “o desenvolvimento capitalista brasileiro se consolida sobre a desigualdade racial e a exclusão social, transformando corpos e territórios periféricos em instrumentos de acumulação de riquezas.

Os povos e as comunidades tradicionais, historicamente invisibilizados e marginalizados, ao utilizarem seus conhecimentos e práticas tradicionais e ancestrais que possibilitam o manejo sustentável dos recursos naturais, desempenham um papel essencial na preservação do meio ambiente, da biodiversidade e dos ecossistemas, em contraposição ao modo de produção vigente.

Como afirma Diegues (2000), “conhecê-los, bem como apreender seus modos de vida e organização social, é de extrema importância, pois isso possibilita a valorização e a proteção de suas culturas, conhecimentos e práticas ancestrais, garantindo-lhes o direito de continuar habitando com segurança em suas terras”.

A lógica capitalista, por sua vez, manifesta-se na pressão sobre a terra e na mercantilização da produção alimentar, colocando em risco os modos de vida tradicionais e a autonomia comunitária.

Contrapondo-se à premissa do capital, Freire (1989, p. 6) destaca que a liberdade “é a matriz que atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação livre e crítica dos educandos”. Com base nesse pressuposto, a educação libertadora tem entre seus princípios a dialogicidade, a problematização e a reflexão crítica. O diálogo, nesse contexto, constitui-se como o instrumento que possibilita desvelar a realidade a partir dos diferentes pontos de vista dos sujeitos envolvidos, trazendo à tona a problematização – fruto direto desse processo dialógico. A reflexão crítica, por sua vez, ocorre quando nos formamos como pessoas conscientes e socialmente responsáveis.

Podemos afirmar, portanto, que a Educação Popular transcende um conjunto de “normas” e “princípios”, à medida que busca a práxis – a educação como prática de liberdade –, instrumentalizando o sujeito para intervir de forma crítica no contexto em que vive (Freire, 1989).

No contexto dos povos amazônicos, e em especial das mulheres, é possível perceber com clareza como a Educação Popular dá sentido não apenas às tarefas cotidianas, mas também às práticas que estruturam as diversas atividades coletivas.

É sempre necessário reafirmar que as comunidades enfrentam contradições estruturais entre forças produtivas e relações de exploração, refletidas no avanço do agronegócio, no uso intensivo de agrotóxicos, na degradação ambiental, na vulnerabilidade da agricultura familiar, na migração forçada e no trabalho precarizado. Tais contradições elucidam a tensão permanente entre a sobrevivência das comunidades e a lógica do capital.

Em resposta as perversidades do capital, as comunidades lutam, construindo suas formas de resistências de maneira pedagógica e social. Como exemplos: a organização em associações de base comunitária, realização de rodas de conversa e assembleias com produção de narrativas em desenhos (conversa desenhada), esta, uma importante ferramenta pedagógica, utilização de rádios comunitárias, mobilização em marchas e eventos de denúncias.

A agricultura familiar e as práticas coletivas de produção e proteção ambiental emergem como sinais concretos de permanência e esperança, articulando leitura crítica da realidade com ação transformadora. Segundo Saviani (2008) é a partir destes movimentos que as comunidades entendem a importância da permanência nos territórios. O que significa dizer também, que, é através da Educação Popular em encontros, reuniões, assembleias, e, sobretudo nas rodas de conversa, onde o coletivo é a força que garante conquistas importantes e capacita as mulheres, jovens e homens, que as transformações de suas realidades vêm acontecendo. Essas ações nos territórios da Amazônia brasileira, nos permite entender Freire, quando diz: “Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos […].” Freire (2021, p. 72)

Entendemos a Educação Popular como uma ferramenta importante a garantir direitos previstos em leis oficiais do Brasil, onde, cidadãs e cidadãos são sujeitos de direitos no que diz respeito a educação, a saúde, a segurança, ao meio ambiente saudável, pelos quais rege a Constituição Federal de 1988. Compreendemos, portanto, que essa ferramenta garante aspectos relevantes da educação no contexto que delimitamos.

 

Fonte: Por Arlete Gomes dos Santos, no Le Monde

 

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