Como
Israel sabota o cessar-fogo
As
autoridades israelenses lideradas por Benjamin Netanyahu demonstraram, durante
os primeiros dias do cessar-fogo em Gaza, que têm sempre à disposição uma saída
para retomar a
ofensiva caso
a evolução da trégua não lhes satisfaça. No domingo (19), depois que um
incidente sobre o qual há diferentes versões terminou com a morte de dois
soldados israelenses em Rafah, o governo sionista ordenou dezenas de
bombardeios sobre o enclave palestino e um bloqueio medieval à ajuda
humanitária.
Horas
depois, anunciou que encerrava os ataques e que voltava a aplicar os termos da
trégua, mas a manobra lembrou aos palestinos que o exército israelense também
pode encerrar a trégua por conta própria, depois de tê-la abafada nos dias
anteriores, espalhando o caos no enclave por meio de seus aliados, sejam eles
milícias palestinas na Faixa que não sejam pró-Hamas ou os EUA.
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Derrubar a trégua de forma direta
Na
manhã de domingo, depois que o exército israelense denunciou que combatentes
palestinos haviam lançado um ataque com “mísseis antitanque” contra seus
soldados, que resultou na morte de dois deles, Israel retomou sua maquinaria de
guerra. Primeiro bombardeou Rafah, onde as tropas afirmavam ter ocorrido essa
“violação flagrante” do cessar-fogo, e em seguida espalhou os bombardeios de
norte a sul do enclave, numa escalada que resultou no anúncio do corte do fluxo
humanitário.
Ao
longo do caminho, o suposto descumprimento da trégua por parte do Hamas
ofereceu a alguns líderes israelenses a oportunidade de expressar seu desejo de
acabar com o cessar-fogo. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, divulgou um
comunicado que não fazia alusão à existência de um cessar-fogo, no qual
advertia que o Hamas continuava sendo “a maior ameaça” para o povo israelense,
acrescentando que Israel agiria “com força” para impedir sua sobrevivência. O
ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, um declarado supremacista,
exigiu que o exército retomasse os combates “em grande escala” em Gaza. “A
falsa crença de que o Hamas cumprirá o acordo de cessar-fogo é perigosa para a
nossa segurança”, afirmou.
Após
algumas horas, o discurso israelense começou a apresentar fissuras. Informantes
independentes, como o analista palestino Younis
Tirawi,
ou jornalistas da mídia árabe ou anglo-saxônica – Al Jazeera ou Drop Site News – começaram a
difundir a teoria de que o Hamas não tinha “nada a ver” com o incidente em
Rafah. Segundo essa versão, a morte dos soldados estaria relacionada com a
passagem de um bulldozer israelense sobre munições não
detonadas que estavam há tempos naquele local, e não com um suposto
aparecimento de militantes do Hamas saindo de túneis, como havia afirmado
Israel.
Alguns
desses jornalistas afirmaram inclusive que a Casa Branca crê nessa versão. Em
público, no entanto, o governo de Donald Trump se aproxima da posição
israelense e argumenta que o incidente não tem relação com a liderança do
Hamas, sugerindo que a agressão foi realizada por milicianos rebeldes que
desobedeceram à trégua. “O Hamas agora é composto por 40 células fragmentadas”,
disse o vice-presidente JD Vance na madrugada de segunda-feira (20). De
qualquer forma, o incidente demonstra a constante busca israelense por
pretextos que abram caminho para retomar a ofensiva.
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De volta aos mortos
A
maneira como o governo israelense instrumentaliza a devolução
dos corpos dos
reféns é outro exemplo dessa busca por desculpas. O acordo de cessar-fogo
obriga o Hamas a libertar os 20 reféns que mantinha vivos — algo que já fez no
início da trégua — e também a devolver os 28 que morreram desde outubro de
2023. Embora o texto acordado contemple a possibilidade do grupo precisar de um
tempo indeterminado para encontrar alguns restos mortais em meio a uma Gaza
devastada, os líderes israelenses o acusam de ter corpos que poderiam ter sido
devolvidos imediatamente. Na quinta-feira, Netanyahu sugeriu que Israel poderia
retomar a guerra por esse motivo: “A luta não acabou. Estamos decididos a
garantir o retorno de todos os nossos reféns”, disse ele, sem dar detalhes
sobre como pretende fazer isso caso o Hamas não os encontre. Jared Kushner,
genro e assessor de Trump, declarou à imprensa que acredita que o Hamas está
agindo de boa fé.
Para
além dos pretextos, Israel tensiona o cessar-fogo com ações no terreno, até
tornar sua sobrevivência improvável. O exército sionista matou 97 palestinos em
pleno cessar-fogo desde o início da trégua em 11 de outubro, de acordo com o
Gabinete de Imprensa do Governo de Gaza. Até o surto de violência de domingo
(19), em que Israel matou 44 habitantes de Gaza em dezenas de bombardeios, as
tropas israelenses haviam assassinado dezenas de pessoas em incidentes
relacionados à aproximação da imaginária “linha amarela”, que determina o
território que o acordo de trégua concede a Israel durante a primeira fase da
trégua.
Em um
desses ataques, soldados bombardearam, a leste da Cidade de Gaza, um carro da
marca Peugeot. No veículo viajavam 11 membros da família Sha’ban, que se
aproximaram do limite da zona controlada pelos israelenses. Todos morreram.
Seis deles eram crianças entre 5 e 13 anos de idade, e outras duas eram
mulheres.
Outra
ferramenta que o Estado sionista tem para complicar as coisas é a intervenção
na ação humanitária. As autoridades israelenses mantiveram controle sobre o
fluxo humanitário durante toda a trégua, limitando-o à metade do acordado na
trégua ou, em todo caso, impedindo que o acesso de suprimentos ao enclave fosse
maciço, como exigem os especialistas em um território que a ONU declarou em
estado de fome em agosto.
Os dois
milhões de palestinos no enclave — dos quais metade são crianças e apenas
algumas dezenas de milhares são membros do Hamas — sabem que Israel retomará a
guerra sem pretextos, se necessário. O precedente de 18 de março, quando o
exército rompeu a trégua que existia desde janeiro e que deveria evoluir para
uma paz duradoura, assombra uma população que não ousa olhar para o futuro com
confiança. Naquele dia, Israel massacrou mais de 400 pessoas em uma ofensiva
que começou do nada, enquanto dormiam de madrugada.
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Desestabilizar por meio da ação dos aliados
Historicamente,
as autoridades israelenses promovem o surgimento de grupos armados nos
territórios fronteiriços com Israel para provocar sua desestabilização e até
mesmo o conflito civil. A Gaza de hoje não é uma exceção. Desde os primeiros
momentos da trégua, ficou claro que a existência de grupos aliados a Israel e
seu impasse com o Hamas poderiam desgastar o cessar-fogo até comprometer sua
viabilidade.
Os
primeiros sinais de alerta surgiram no segundo dia do cessar-fogo. Por um lado,
depois que a ofensiva israelense matou quase 200 jornalistas no enclave, em 12
de outubro, um jornalista de Gaza, Saleh Aljafarawi, foi morto por palestinos. O Comitê de
Proteção aos Jornalistas explica que o repórter morreu na Cidade de Gaza
quando eclodiram combates entre o Hamas, a milícia de Yasser Abu Shabab e o clã
Doghmush. “Ele estava documentando a destruição e homens armados que cooperam
com Israel atiraram nele”, denunciou seu
pai, Amer.
Por
outro lado, o Hamas começou a aproveitar a retirada israelense de metade do
enclave para restabelecer seu domínio. Essa demonstração de poder incluiu, no
mesmo dia, a execução extrajudicial de vários membros do clã Doghmush, que o
Hamas acusa de colaborar com Israel.
Horas
depois, Trump reconheceu à imprensa que essas execuções não lhe importavam
“muito”, já que as gangues atacadas eram “muito más”, e até admitiu que os EUA
haviam dado luz verde ao Hamas para assumir o controle do território “por um
tempo”.
Israel
arma e protege os milicianos leais a Abu Shabab. Em junho, Netanyahu não negou
que estava fortalecendo esse grupo como um método para supostamente enfraquecer
o Hamas. A milícia conseguiu tomar um território de 50 hectares em uma zona sob
controle do exército israelense a apenas cinco quilômetros de uma das passagens
fronteiriças para Israel, perto da rota por onde circula a ajuda humanitária.
Lá,
enquanto o resto do enclave caía no radar da fome, os milicianos de Abu Shabab
ofereciam barracas e comida às famílias de Gaza que quisessem se mudar para
essa Gaza “livre do Hamas”. Um relatório
interno da ONU acessado pela Sky News afirma que a
milícia é o maior responsável pelos saques contra os comboios humanitários, dos
quais Israel acusa o Hamas. Atualmente, 1.500 pessoas residem na zona. O grupo
cresce em todo o território e aspira disputar o controle do enclave, o que submeteria
o território a um conflito civil.
Os
Doghmush são o outro clã que se destaca em Gaza. Embora eles neguem, há
suspeitas de que, durante o conflito, tenham negociado com Israel uma possível
governança em que os israelenses ocupariam o território enquanto alguns clãs se
encarregariam dos assuntos cotidianos de Gaza.
A
presença de grupos armados em Gaza dependentes de Israel oferece ao governo
israelense a possibilidade de aumentar o volume da violência no enclave quando
for conveniente. Também de realizar ações – como assaltos a caminhões
humanitários – que podem ser apresentadas como violações da trégua por parte do
Hamas e como pretextos para retomar a ofensiva.
Longe
da lama de Gaza, Netanyahu também demonstrou sua capacidade de arrastar seu
aliado americano para suas posições. A última mudança radical de postura por
parte da Casa Branca é uma prova disso. Quatro dias depois de Trump garantir
que não se importava com as execuções realizadas pelo Hamas, Washington emitiu
um comunicado em que descrevia esse tipo de incidente como uma violação da
trégua e até sugeria o reaparecimento de uma ofensiva em grande escala se o
Hamas voltasse a atacar “o povo de Gaza”. A paz, por enquanto, continua
parecendo distante.
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Genocídio e ecocídio: para exterminar o povo, Israel
dizima a fauna e a flora palestinas
O
Ocidente frequentemente tentou colonizar outras nações pelo duplo recurso
ao genocídio e ao
ecocídio. Um exemplo famoso na história dos Estados Unidos, por exemplo, é
o abate em massa dos bisões nas Grandes Planícies juntamente com o extermínio
em massa dos povos indígenas. Tanto os povos indígenas americanos quanto
os bisões foram mortos aos milhões. Esses dois atos andaram juntos,
com o abate dos bisões — vitais para os povos indígenas da América do Norte
como fonte de alimento e de vestuário, além de parte central de sua cultura
— sendo corretamente
visto pelo Exército dos Estados Unidos como um meio crucial para destruir
os povos indígenas e removê-los das terras cobiçadas pelos colonos europeus.
Os
Estados Unidos foram ainda mais cruéis nesses esforços durante o século 20, com
o uso de tecnologia moderna, como napalm e agente laranja, para destruir por décadas
florestas e a agricultura de nações como o Vietnã.
Israel,
um projeto colonial de povoamento inicialmente do Reino Unido e agora
principalmente dos Estados Unidos, tem usado esses meios desde o seu início
para destruir o povo palestino e, em última instância, deslocá-lo totalmente da
terra da Palestina histórica. Semelhante à destruição do bisão americano, os colonos
israelenses concentraram-se na destruição das oliveiras na Palestina, algumas das
quais existem há séculos. Assim como o bisão na América do Norte, a
oliveira é um alimento básico para o povo palestino e também uma parte
importante de sua cultura. Estima-se que, desde 1967 e o início da
ocupação de Gaza e da Cisjordânia, os israelenses tenham destruído mais
de 1 milhão de oliveiras na Palestina, e continuam a fazê-lo até hoje. Junto às
oliveiras, os israelenses têm
regularmente destruído rebanhos de ovelhas e os abastecimentos de
água dos palestinos.
No
entanto, o atual genocídio em Gaza — que muito provavelmente ceifou cerca de 700
mil vidas,
ou quase um terço da população de Gaza — vem acompanhado de um dos ecocídios
mais cruéis e minuciosos já vistos. Por exemplo, segundo a
organização de direitos humanos Euro-Med, com sede em Genebra, os israelenses
destruíram impressionantes 97% dos “recursos animais” de Gaza desde 7 de
outubro de 2023. Como explica a Euro-Med: “Israel destruiu quase todo o recurso
animal na Faixa de Gaza – aproximadamente 97% – por meio de bombardeios e fome sistemática,
incluindo animais de trabalho que serviam como o último meio de
transporte em meio à escassez de combustível e à mobilidade pública
limitada. […] A destruição dos recursos animais coincide com a terraplanagem de
milhares de acres de terras agrícolas como parte de uma política deliberada de
provocar fome entre a população, destruir fontes de alimento e
infligir sofrimento físico e psicológico severo, todos componentes
fundamentais do crime contínuo de genocídio contra os palestinos na Faixa de
Gaza.”
Como a
Euro-Med conclui corretamente, essa destruição da flora e da fauna
faz parte do genocídio do povo palestino de Gaza. De fato, um dos atos de
genocídio enumerados e proibidos pela Convenção para a Prevenção e Repressão do
Crime de Genocídio de 1948 é “impor deliberadamente ao grupo alvo condições de
vida calculadas para promover a sua destruição física, no todo ou em parte”. A
destruição israelense dos recursos animais e dos alimentos de Gaza é exatamente
isso – uma tentativa calculada de criar condições inabitáveis para o povo
palestino e, assim, provocar sua destruição.
Entretanto,
isso é apenas a ponta do iceberg genocida. Israel tem destruído
sistematicamente a infraestrutura e o próprio ambiente necessários para
sustentar o povo de Gaza. Segundo um estudo
conjunto do Banco Mundial e das Nações Unidas, “o custo dos danos à infraestrutura
crítica em Gaza é estimado em cerca de US$ 18,5 bilhões. Isso equivale a 97% do
PIB combinado da Cisjordânia e de Gaza em 2022”. Esse mesmo estudo, de abril de
2024 (ou seja, bem no início do conflito), constatou “que os danos às
estruturas afetam todos os setores da economia. Habitação responde por 72% dos
custos. Infraestrutura de serviços públicos, como água, saúde e educação,
responde por 19%, e os danos a edifícios comerciais e industriais respondem por
9%… Estima-se que 26 milhões de toneladas de escombros e detritos ficaram após
a destruição, uma quantidade cuja remoção deve levar anos.”
Um estudo mais
recente da ONU,
de abril/maio de 2025, constatou que a quantidade de detritos então já superava
53 milhões de toneladas. E grande parte desses detritos é bastante perigosa e
tóxica, pois está misturada com amianto, munições e restos humanos e animais.
A
destruição intencional e sistemática dos abastecimentos de água e do saneamento
de Gaza é particularmente devastadora. Segundo um relatório
de dezembro de 2024 da Human Rights Watch, evidências em vídeo e fotográficas
mostravam então “danos e destruição extensivos à infraestrutura de água
e saneamento, incluindo a aparentemente deliberada e sistemática
derrubada, pelas forças terrestres israelenses, dos painéis solares que alimentavam
quatro das seis estações de tratamento de águas residuais de Gaza, bem como
soldados israelenses filmando-se demolindo um reservatório de água crucial”.
Esse mesmo relatório explicou que, apenas alguns dias após o início do conflito
em 7 de outubro de 2023, o corte intencional de abastecimento de água e de
eletricidade por parte de Israel fez com que “a maioria dos moradores da Faixa
de Gaza deixasse de ter acesso à água potável por prestadores de serviço ou
água doméstica por meio de redes de distribuição”.
Continua
após o anúncio
Além da
destruição da água, da agricultura e dos animais, Israel também
envenenou o ar de Gaza por meio de sua guerra brutal contra o
enclave. Segundo uma edição
de outubro de 2025 do periódico ScienceDirect, a guerra contra Gaza resultou
em
grave degradação ambiental, principalmente pela liberação de poluentes
atmosféricos perigosos e pela destruição generalizada de infraestrutura. As
operações militares contribuíram para emissões elevadas de diferentes gases,
incluindo NO2, SO2, CO, CH4 e aerossóis, entre outros, originados de
ataques com mísseis, queima de combustíveis e incêndios. Esses poluentes não
apenas degradam a qualidade do ar, mas também iniciam reações químicas
complexas que levam à formação de poluentes secundários, como material
particulado. Além disso, a destruição de edifícios e instalações industriais
causa a liberação de substâncias tóxicas, representando riscos de longo prazo
tanto para a saúde ecológica como pública. O custo ambiental é ainda agravado
pelo colapso da gestão de resíduos e da infraestrutura de saneamento, o que
acelera a liberação de metano e outros gases nocivos. Em conjunto, essas
consequências evidenciam o impacto profundo e multifacetado da guerra sobre a
estabilidade atmosférica e ecológica da região.
Em
suma, além de assassinar diretamente a população, Israel intencionalmente
tornou Gaza inabitável para o povo palestino e, na verdade, para qualquer
outro. Esta guerra de genocídio e ecocídio é a manifestação de uma crença
niilista e fanática de que os povos da Europa têm o direito de dominar o mundo
e todas as pessoas nele. Essa doutrina já recebeu diferentes nomes (por
exemplo, Destino Manifesto e sionismo), mas o resultado é o mesmo: morte e
destruição que ameaçam a própria sobrevivência da vida na Terra. Essas crenças
e suas políticas brutais não têm lugar no século 21.
Fonte: Por
Joan Cabasés Vega, com tradução na Revista Opera

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