Febre
do lítio avança para Amazônia e afeta 21 áreas protegidas
A FEBRE
DO LÍTIO no Brasil está se expandindo para a Amazônia Legal, região que abriga
o maior número de povos tradicionais e florestas nativas preservadas do país.
Os pedidos para explorar o minério, usado na indústria da tecnologia, bateram
recorde nos últimos quatro anos e podem causar impactos em ao menos 21 áreas
protegidas, entre terras indígenas, unidades de conservação e assentamentos da
reforma agrária.
O
Brasil tem o décimo maior depósito de lítio do mundo, estimado em 1,3 milhão de
toneladas, sendo 390 mil toneladas economicamente viáveis, de acordo com o
Serviço Geológico dos Estados Unidos. Os números, no entanto, podem estar
subestimados, já que o subsolo brasileiro ainda está sendo mapeado.
Por
enquanto, existem 53 requerimentos apresentados à ANM (Agência Nacional de
Mineração) na Amazônia Legal, dos quais 48 (90%) foram registrados a partir de
2022. Especialistas ouvidos pela Repórter Brasil alertam para o risco de que a
extração do lítio avance de maneira desenfreada e intensifique os conflitos
socioambientais na Amazônia.
O lítio
é considerado estratégico para a transição energética, principalmente no uso em
baterias de veículos elétricos e para armazenar em grande escala a eletricidade
gerada por painéis solares e turbinas eólicas. Esses dois setores, transporte e
geração de energia elétrica, são os que mais emitem gases de efeito estufa no
planeta.
Isso
tem impulsionado a busca pelo lítio no Brasil: são 4,4 mil processos minerários
ativos protocolados desde 1943, sendo 3,9 mil a partir de 2022.
Uma das
preocupações é a proximidade dos processos minerários com áreas protegidas. Dos 53 requerimentos na
Amazônia Legal, mais da metade (29) está sobreposta ou a menos de 10
quilômetros de 21 territórios, sendo cinco terras indígenas, oito unidades de
conservação e oito assentamentos da reforma agrária.
Destes
29 pedidos, 18 estão com a pesquisa autorizada pela ANM, etapa que já envolve
trabalho de campo, com possíveis consequências para esses territórios. Muitas
vezes, as empresas sequer fazem contato com as comunidades atingidas.
Esses
são os achados de uma investigação da Repórter Brasil, com apoio da Rainforest
Investigations Network do Pulitzer Center. A publicação faz parte do “Lítio em
conflito”, projeto liderado pelo CLIP (Centro Latinoamericano de Investigación
Periodística), que reuniu dez veículos para entender os conflitos em torno da
indústria desse minério na América Latina.
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Exploração do lítio pode agravar crise ambiental que o minério em tese ajudaria
a resolver
“Existe
uma disputa bastante violenta por recursos estratégicos na Amazônia [como
lítio, níquel e terras raras]”, analisa a socióloga e geógrafa Elaine Santos,
pós-doutora pelo IEA (Instituto de Estudos Avançados), da Universidade de São
Paulo. “A ampliação da exploração mineral ali certamente vai provocar o aumento
dos conflitos”, alerta.
“O
aumento de requerimentos para um mineral específico é preocupante. O lítio é
essencial para a transição energética, mas seu avanço acontece sem a devida
avaliação dos custos sociais e ambientais”, pondera Pedro Igor Galvão Gomes,
mestrando em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins e
bolsista do Rights Lab da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.
A
legislação ambiental não proíbe atividades minerárias a menos de 10 km de
terras indígenas, mas considera que as áreas são afetadas a essa distância. Por
essa razão, exige estudos de impacto e consulta prévia às comunidades, assim
como previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho),
da qual o Brasil é signatário.
“A
devastação vai para dentro das terras indígenas, por mais que o empreendimento
fique a 10 quilômetros”, opina Alcebias Sapará, coordenador da Coiab
(Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
As
unidades de conservação também possuem uma zona de amortecimento de proteção e
demandam estudos específicos antes da exploração. No caso dos assentamentos, o
Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) deve ser acionado
para definir medidas compensatórias, em razão dos impactos à política de
reforma agrária.
Esse
recente aumento nos pedidos de exploração na Amazônia faz parte do que a
pesquisadora norte-americana Thea Riofrancos chama de “expansão das fronteiras
extrativistas” em seu livro recém-publicado “Extraction: the frontiers of green
capitalism”, sobre o boom global do lítio.
“Se o
desmatamento das florestas tropicais é a segunda maior causa das mudanças
climáticas, depois da queima de combustíveis fósseis, e a construção de uma
mina pode causar desmatamento, você pode acabar contribuindo para as mudanças
climáticas que, segundo você, as baterias de lítio estão resolvendo”, disse em
entrevista à aliança jornalística.
No
Brasil, o avanço acelerado da exploração de minerais críticos já afeta 45 povos
indígenas isolados, conforme mostrou a Repórter Brasil na semana passada.
No caso
do lítio, alguns processos minerários estão localizados inclusive em áreas onde
ainda não há constatação oficial da presença de lítio, como os estados de
Roraima, Amazonas e Pará.
“Nem
todo mundo que pede autorização de pesquisa pretende explorar a área. Isso
resulta na comercialização dos direitos minerários e em especulação”, explica
Elaine Santos.
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Exploração de lítio causa danos no Vale do Jequitinhonha
O
minério é encontrado no país em rochas de origem vulcânica, conhecidas como
pegmatitos. É diferente da extração feita por países vizinhos, como Argentina,
Bolívia e Chile, onde a atividade acontece em piscinas de salmoura no alto dos
Andes.
O maior
produtor é Minas Gerais, sobretudo no Vale do Jequitinhonha, rebatizado de
“Vale de Lítio” pelo governo mineiro. Mas são os problemas causados pela
mineração o que mais chama a atenção de moradores e especialistas. O lítio
transformou a paisagem e impactou o modo de vida dos povos indígenas,
quilombolas e comunidades tradicionais.
“Tudo
mudou. O rio acabou, a água está contaminada”, relata um indígena, que pediu
para não ser identificado por questões de segurança.
“O
nosso território se tornou uma zona de sacrifício em nome da dita transição
energética”, lamenta a historiadora Lauanda Lopes, da UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais). Desde 2024 ela faz parte do Liquit, que pesquisa os
efeitos da mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha.
Entre
os principais impactos estão a dificuldade de acesso à água, a contaminação de
rios, o aumento da poeira e de doenças respiratórias, além de rachaduras nas
casas, atribuídas aos tremores provocados pelas mineradoras.
“O
atual modelo de exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha perpetua
um
ciclo histórico de exclusão social, degradação ambiental e negação da população
tradicional”, conclui um parecer do Ministério Público Federal de Minas Gerais,
ao qual a Repórter Brasil teve acesso.
“Se
acontecer na Amazônia o que está acontecendo no Vale do Jequitinhonha, vamos
ter uma situação futura de falta de água, aumento dos conflitos e desrespeito
aos direitos das comunidades locais”, diz Lopes, da UFMG.
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Mineradora Atlas admite risco de explorar lítio na Amazônia
Ao
menos duas mineradoras com operação no Vale do Jequitinhonha estão se
movimentando para explorar lítio na Amazônia: a Atlas e a M4E.
A Atlas
Lítio Brasil é uma subsidiária da norte-americana Atlas Lithium Corporation.
Entre seus principais acionistas, aparece o conglomerado japonês Mitsui &
Co. Ltd, um dos maiores grupos de investimentos do mundo. Outro acionista, e
membro do conselho de administração da mineradora, é Roger Noriega,
ex-embaixador dos EUA na OEA e ex-secretário-assistente de Estado no governo
George W. Bush.
Atuando
em Minas Gerais desde 2018, a Atlas afirma ter 797 km² em direitos minerais de
lítio, uma das maiores áreas de
exploração de lítio no Brasil. A extração ainda não começou, mas alguns
projetos no Jequitinhonha estão em fase avançada, de licenciamento ambiental.
Na
Amazônia, a Atlas protocolou três pedidos em 2024 para pesquisar lítio no sul
do Tocantins. A ANM ainda avalia os três processos, que não estão próximos de
áreas protegidas, segundo o levantamento da Repórter Brasil. Ainda assim, a
Atlas admite os riscos de operar na região.
No
último relatório corporativo, a empresa destaca que as políticas ambientais do
Brasil, em especial a preservação da Amazônia, são “continuamente fiscalizadas
pela mídia”. Diz ainda que “se o ambiente político, as regulamentações ou as
políticas do Brasil forem, ou forem percebidos como, inadequados, desfavoráveis
ou hostis por clientes ou investidores estrangeiros, podemos perder o interesse
de grupos de investidores ou de potenciais compradores de nossos minerais, o
que terá um impacto negativo sobre nós”.
A
empresa admite no documento também que comunidades locais e organizações não
governamentais podem atrasar seus planos de negócios. Isso é justamente o que
vem acontecendo no norte de Minas Gerais.
Em 28
de agosto, a Justiça Federal suspendeu a licença ambiental de um dos projetos
da empresa em Araçuaí (MG) por entender que a Atlas não ouviu as comunidades
quilombolas diretamente impactadas.
O juiz
do caso afirmou que a concessão da licença ambiental “consolidaria a violação
ao direito de consulta prévia”, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. O
projeto em questão fica a apenas 5,5 km da comunidade quilombola.
Em
abril, o MPF já havia alertado para a possível violação de direitos na região
de Araçuaí e pediu o cancelamento de uma audiência pública entre a empresa e as
comunidades locais. A recomendação do órgão destacava risco de “severa
restrição hídrica e de acesso à água para a população regional”.
A Atlas
ainda não iniciou a exploração comercial no Brasil, mas já firmou parceria para
escoar a produção para a chinesa Sichuan Yahua Industrial Group, do grupo
Yahua, um dos mais antigos do setor químico da China.
O
conglomerado atua na produção de explosivos civis e na cadeia global do lítio —
da extração ao processamento. A Yahua afirma ter papel central na “energia
limpa” e fornece para empresas como Tesla, BYD e CATL, a maior fabricante de
baterias do mundo.
Procurada,
a Atlas não respondeu até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto a
manifestações.
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Território mais afetado na Amazônia, APA Lago de Peixe/Angical é alvo da
mineradora M4E
O sul
do Tocantins é a região mais procurada para extração de lítio na Amazônia
Legal, segundo o levantamento da Repórter Brasil, respondendo por 39 dos 53
requerimentos na porção brasileira do bioma.
Ali
fica também a área de proteção ambiental mais impactada pelos processos de
lítio, a APA (Área de Proteção Ambiental) Lago de Peixe/Angical, localizada
entre os municípios de Paranã, Peixes e São Salvador do Tocantins.
Criada
em 2007 como medida de compensação de uma hidrelétrica instalada no rio
Tocantins, a unidade abriga diversos ecossistemas, como áreas de mata ciliar e
veredas. É habitat de fauna e flora nativas do Cerrado, algumas delas ameaçadas
de extinção, como os peixes pacu-dente-seco, aracu-boca-pra-cima, alguns tipos
de bagre e outras espécies.
Na APA
vivem comunidades tradicionais e pequenos produtores rurais que já convivem com
empreendimentos dos setores energético e agropecuário e, agora, veem o avanço
da mineração.
A
unidade está cercada por 12 requerimentos para exploração de lítio a menos de
10 km de distância. Cinco deles foram protocolados em 2023 pela empresa
brasileira M4E Lithium Ltda. Os pedidos somam 9,4 mil hectares e já tiveram a
pesquisa autorizada pela ANM.
Em seu
site, a M4E defende o Brasil como um território favorável à mineração de lítio
e diz que o governo, “tanto de partidos de esquerda quanto de direita”, apoia a
atividade. A empresa destaca também que o “lítio é o novo petróleo” (“lithium
os the new oil”), frase dita pelo bilionário Elon Musk, dono da empresa de
veículos elétricos Tesla.
A
possibilidade de abrir a APA Lago de Peixe para a mineração de lítio preocupa
pesquisadores que atuam na região. “É alarmante”, define Alice Ferreira Araújo,
bióloga formada pela Universidade Federal do Tocantins que há 15 anos pesquisa
a pesca e impactos socioambientais.
Ela
lembra que a APA já enfrenta pressões por todos os lados “É uma pressão tão
grande, tem a agropecuária, as usinas hidrelétricas, as mudanças climáticas, o
desmatamento em massa e agora a mineração. Se pensar em conservação, a
mineração é quase inviável. Se isso continuar, é mais uma área a ser perdida”.
Além
das comunidades afetadas, Araújo se preocupa com os peixes, já que a mineração
pode contaminar rios por lixiviação, um processo em que a água dissolve
minerais e produtos químicos do solo e os carrega para cursos d’água. “Isso
acaba influenciando tanto na cadeia alimentar quanto na reprodução de espécies
migratórias”, explica.
Além do
sul do Tocantins e do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, a M4E tem
requerimentos para explorar lítio em outros cinco estados (Bahia, Ceará,
Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte), totalizando 64 pedidos para o
minério, apresentados entre 2021 e 2024.
Mesmo
sem iniciar a extração comercial de lítio, a M4E já atrai investimentos. Em
março de 2024, a empresa recebeu aporte da canadense LRC (Lithium Royalty
Corp), que atua na cadeia de baterias para veículos elétricos e tem operações
nos Estados Unidos, Argentina, Austrália e Brasil.
Procurada,
a M4E Lithium informou que atua apenas na fase de pesquisa mineral, sem
realizar extração, lavra ou possuir qualquer estrutura de mineração no
Tocantins. A empresa afirma produzir “estudos de escritório”, baseados em
análises de dados públicos e imagens de satélite, sem trabalhos de campo.
“Esses estudos têm por objetivo avaliar o potencial geológico da região e
identificar eventuais restrições ambientais, incluindo áreas sensíveis, como
unidades de conservação”, diz a nota da companhia (leia a manifestação na
íntegra).
Segundo
a M4E, caso os estudos indiquem potencial e ausência de restrições ambientais,
futuramente poderá solicitar autorizações para “coletas de amostras de rochas”,
o que, segundo a empresa, não configura atividade de “lavra, mineração ou
exploração mineral”.
A
companhia disse manter compromisso com a “transição energética sustentável”. “A
viabilidade de um depósito de lítio depende tanto de seu potencial geológico
quanto de sua compatibilidade socioambiental”, finaliza a nota.
A LRC,
por sua vez, preferiu não comentar o caso.
Fonte:
Reporter Brasil

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