sexta-feira, 31 de outubro de 2025

“Operação Contenção”: a chacina como combustível para a extrema direita

A informação oficial, na alvorada do dia 28 de outubro de 2025, era de que aproximadamente 2.500 policiais civis e militares foram às ruas (leia-se: aos Complexos da Penha e do Alemão) para o cumprimento de 100 mandados de prisão, com o objetivo de contenção do Comando Vermelho. Tratava-se de mais um capítulo da megaoperação batizada de “Contenção” — capítulo que redundou, dentre vários estragos sociais e pessoais, no recorde de letalidade no ranking mórbido das operações e megaoperações policiais no Rio de Janeiro. É difícil supor que a finalidade primordial da megaoperação fosse, de fato, desmontar cadeias produtivas, redes de financiamento e ganhos monetários, lavanderias financeiras da mencionada facção criminosa. É mais plausível supor que o fio da meada foi “tocar o terror” — e, para cumprir esse propósito sem tergiversação, empilhar cadáveres (seletivamente).

Este breve artigo não se propõe a apresentar um inventário de mais um episódio de horror urbano do Rio de Janeiro, tampouco entabular um debate especializado da área da Segurança Pública — deixo a tarefa a cargo dos especialistas. Com a “Operação Contenção” ainda oficialmente em curso, minha proposta é compartilhar uma singela contribuição, em caráter ainda propedêutico, sobre efeitos sociais traumatizantes/traumatofílicos contidos em eventos assoberbados de violência (como a referida megaoperação). Ademais, me interessa apontar o quanto isso se reverte em combustíveis para a extrema direita e congêneres. Para os propósitos do texto, de modo sucinto, o que caracterizo aqui como traumatizante/traumatofílico diz respeito ao transbordamento da capacidade psicofísica de assimilação, processamento, elaboração de muitas pessoas ante à virulência, exacerbação, ostensividade, aceleração desses eventos violentos. Diante do poder avassalador, de posições objetivas e subjetivas exacerbadamente assimétricas, frente à impossibilidade de enfrentamento, processamento, elaboração, forja-se um dispositivo de defesa psicofísico que consiste, basicamente, em interiorizar, alojar, introjetar a coerção, opressão, agressão — e cujo efeito é de submissão para se proteger da manifestação do efeito devastador1.

Muitos trabalhadores cariocas padecem das consequências da desagregação econômica, que pode ser descrita sumariamente nos seguintes termos: em uma primeira camada estrutural, por estarem inseridos em uma sociedade da universalização da mercadoria, precisam acessar dinheiro para sobreviver. No amálgama de pós-assalariamento e não assalariamento de massas, marcante no mercado de trabalho do Rio de Janeiro, esse dinheiro muitas vezes provém de rendimentos não ou pós-salariais, obtidos sem direitos trabalhistas ou previdenciários, sem respaldo sindical, em que os custos econômicos e subjetivos são externalizados para os ombros desses próprios trabalhadores e as partilhas de vivências (no e pelo trabalho) são ínfimas. Não é exagero considerar que esses trabalhadores, de fato, atuam assujeitados a uma base objetiva do “cada um por si e todos contra todos” — atuações que requerem largas doses de adestramento, ou seja, uma espécie de preparação corporal e psíquica em registro maquinal, que favorece formas hiperindividualistas de agir-sentir-pensar, impulsionadas por uma mistura de sentimentos e afetos de insegurança, medo, ódio (destrutivo) e ressentimento. Nessa associação de fatores objetivos e subjetivos, muitos trabalhadores sentem e interpretam a sociedade como “selvageria do cada um por si e todos contra todos”.

Junto à desagregação econômica, forma-se um circuito (as)social constituído por segregação socioespacial, violências (oficiais e extraoficiais) do aparato repressivo estatal, disputa/gestão/controle territorial armado do narcotráfico ou da milícia, truculência cultural, desvalias institucionais e, em alguns casos, negligências e/ou invasividades afetivas etc. Ligada à sensação e à interpretação da sociedade como “selvageria do cada um por si e todos contra todos”, desponta-se a sensação e a interpretação da sociedade como um todo social hostil, regido por poderes implacáveis, avassaladores. Essa sensação/interpretação tende a recrudescer formas de ensimesmamento defensivo, sob algum efeito traumatizante, impulsionadas por uma exacerbação da chave afetiva do medo/insegurança, que transitam entre acuamentos, ódios (destrutivos) e ressentimentos. 

Subjacente ao supracitado circuito de deteriorações, coerções e desmazelos, há a predominância de um capitalismo de espoliação e pilhagem, com um pano de fundo sócio-histórico belicista, que se infiltra nas raízes coloniais, escravocratas e latifundiárias da formação social brasileira, e na prevalência de uma modernização concentradora de renda/riqueza e eivada de violências. No amálgama de pós-assalariamento e não-assalariamento de massas, um contingente expressivo de pessoas no Rio de Janeiro é absorvido pelos mercados ilícitos, nos quais as fronteiras entre a “licitude” e a “ilicitude” se desmancham, se misturam ou se separam por uma linha tênue. Isso é corolário da apropriação econômica de territórios periféricos e a ponta de um iceberg que alcança Fintechs, a Faria Lima e rentáveis áreas econômicas diversas. Trata-se, na verdade, de “normatividades” sob os auspícios das armas, calcadas no entrelaçamento de “violência econômica” e “violência ‘extraeconômica’” (como diria Marx) e na dissolução/confusão dos limites entre o “legal” e o “ilegal”.

É possível notar que o bolsonarismo, o campo da extrema direita, sofreu recentemente alguns danos e se encontra atravessado por disputas intestinas e fratricidas. Entretanto, os fatores objetivos e subjetivos que levam à adesão ou, pelo menos, identificação com o que ele tem a oferecer e propagar persistem. Os nexos entre extravasamento securitário e “selvageria do cada um por si e todos contra todos” geram combustíveis inflamáveis para o campo da extrema direita. Nessa perspectiva, apontar para El Salvador e postular uma espécie de “bukelyzação”2 à brasileira, buscando guarida no formato trumpista de imperialismo estadunidense, parece se oferecer como um caminho para requentar politicamente a extrema direita e manter sua aderência social. “Tocar o terror” e empilhar cadáveres (seletivamente) são mais do que bandeira política: viram eixo de governança, catalisando os dispositivos traumatofílicos de submissão à (des)ordem social. Na lógica (belicista) da extrema direita, incidir sobre a dimensão sensível e mobilizar afetos constituem móveis estratégicos de ação, com estatuto de centralidade. Inserem-se aí, por exemplo, os bombardeios de fake news — dispositivo semiótico virulento e ostensivo que, de maneira cirúrgica, atinge o “alvo”, ou seja, o perfil psicológico determinado pela captura incessante de dados promovida pelo “extrativismo digital”. A guerra semiótica exponencia o extravasamento securitário, alastra a chave afetiva subjacente da insegurança/medo, atiça o hiperindividualismo. 

O tipo de “ênfase” dada pela extrema direita no tema da segurança pública aparenta para muitas pessoas, moradoras das metrópoles brasileiras, uma espécie de “comprometimento”, “implicação” com as manifestações de insegurança/medo. Do outro lado da moeda, estaria uma aparência de “distanciamento academicista” e indiferença por parte da esquerda perante essas manifestações de insegurança e os medos dessas pessoas comuns, bem como os correlatos clamores por “autoridade” e “ordem”. O campo progressista precisa encarar de frente o tema da Segurança Pública. Uma premissa indispensável para conduzir esse desafio é o empenho de se conectar com as pessoas comuns, o que requer uma melhor escuta desses clamores por “autoridade” e “ordem”, dentre outros, sob pena de continuarem sendo preenchidos pelos direcionamentos monstruosos da extrema direita e congêneres.

•        Massacre como o ocorrido no Rio de Janeiro pode ser considerado parte de política de segurança pública? Por Cândido Grzybowski

O que aconteceu no Rio na terça-feira, dia 28 de outubro, é inaceitável em uma democracia que vale a pena ser vivida. Empreender uma “verdadeira guerra” em território bem comum de cidadania é um ato que só produz morte e nunca poderá ser considerado uma política para garantir o direito fundamental de segurança pública.

O que passa na cabeça do governador Castro? Bem, para quem até propôs um adicional para o policial eliminar “criminoso” é revelador da afronta ao sentido mesmo de segurança pública numa democracia. Queremos direitos garantidos, mas não uma política que, sob justificativa de combate ao crime organizado, nega o devido processo legal na condenação e prefere o enfrentamento que acaba dando no que deu: muitos inocentes mortos por viver em periferia pobre, junto com criminosos que nunca poderão ser julgados por que foram eliminados. Aliás, se presos fossem, nossa política, que prefere o confronto, não garante a vida para quem é considerado criminoso, preso e julgado. Ao governo do Estado do Rio parece que só conta eliminar os considerados bandidos, sem se importar com os muitos inocentes que podem ser fuzilados, só por ter que sobreviver em território “de risco”. Sr. Governador, para onde eles podem ir senão aguentar a falta de tudo que são as favelas e os tais “complexos?”. Basta e basta! Impeachment no Castro e mais oito anos de inelegibilidade!

A primeira razão de ser de uma política de segurança pública é para garantir iguais direitos a toda cidadania. Aliás, criminalizar o consumo de drogas só pode levar a situações assim. Não só matanças, mas crimes. Basta ver o que o Trump e o poderoso exército sob seu comando estão fazendo no Caribe e Pacífico. Abater simplesmente pode ser aceitável? Por que não prende e averigua? Isto vale para nós aqui, para nossas cidades. Quantos mortos ainda precisamos chorar e contar com esta política de “guerra” inútil? Até quando vamos aceitar tal agressão a um direito fundamental de segurança, individual e coletivo?

Bem, podemos divergir como cidadãos sobre a melhor política. Mas estamos realmente buscando uma verdadeira política de segurança pública em todos os níveis de governo? Concordando com muitos, considero a política de criminalização de drogas um erro e a pior forma de combater uma questão de vício e saúde, que sempre existiu e que a criminalização de seu consumo só aumenta mortes e em qualquer lugar do mundo vem se mostrando ineficaz. Não seria melhor considerar o consumo de drogas como uma grave questão de saúde ao invés de usar arsenais de repressão que só estimulam mais e mais o próprio tráfico e seu investimento em armamento com armas letais e até bombas jogadas por drones, como noticiado e visto no caso de terça-feira, no Rio? A Suíça, centro financeiro mundial e até de lavagem de dinheiro do crime organizado – pouco criminalizado neste mundo globalizado – na questão das drogas tem uma política de saúde antes e acima da repressão. Vamos só imitar a lavagem de dinheiro e não os bons exemplos de políticas de cuidado com drogados da Suiça? É uma contradição, eu sei, mas vale a pena lembrar que boas políticas públicas sempre ficam atrás de mercados. Aliás, os traficantes são antes de tudo uma questão de mercado, de bom negócio e sua “ditadura”.

Bem, temos o imediato a tratar e encontrar formas de evitar que volte amanhã a acontecer: uma “guerra interna”, bem ao gosto de ditaduras repressivas e assassinas. Na verdade, simplesmente nada dá para esperar do Governo Estadual que temos, com grande conivência da própria Assembleia Estadual e um Judiciário… que deve muito, fazendo pouco para o que pode fazer. Afinal, é a institucionalidade do Estado do Rio que está em questão.

O que agrava tudo é constatar que os Governos Estadual e os Municipais não criam prioritariamente “virtudes” com suas políticas pois “deixam ao léu” as áreas periféricas e faveladas. Como lembrou-me minha filha, que trabalha na Barra mas mora em Santa Tereza, sobre o verdadeiro terror e paralisação da cidade do Rio: “A Zona Sul é outra cidade e outro Estado, não o Rio”. Precisamos de muito mais cidadãs e cidadãos do Rio que vejam assim os contrastes de um território comum com muralhas, cuidando a cidadania de “ricos” e promovendo a repressão/guerra aos pobres”. Isto não pode ser considerado como democracia efetiva.

A política de Segurança Pública que a democracia e a diversidade para ser cidadania necessitam nunca poderá ter como base a possibilidade de usar prioritariamente a repressão e a violência armada, ao invés de ser uma ação assentada na prevenção da violência. O que aconteceu na terça-feira no Rio foi uma guerra interna do Estado contra a cidadania. Os inocentes assassinados não são simplesmente “mortes colaterais” em zona de crime. Se é “zona do crime”, foi o Estado negligente que permitiu se formar aí, exatamente nas periferias pobres e excluídas, longe do olhar do Estado e, no caso do Rio, da glamorosa “Zona Sul”. Temos uma cidade partida e políticas públicas partidas. O ocorrido mostra ação estatal desastrosa e até criminosa. “Balas perdidas” não existem, pois sempre são intencionais e dirigidas. Estamos diante de ação estatal que é um desastre, tanto na concepção como na execução. Inadmissível em democracia, que, aliás, só floresce desde o chão da sociedade, desde os territórios que habitamos e onde buscamos viver tendo por princípio o cuidado, cuidado com todas e todos e cuidado com a própria integridade dos territórios. “Favelas são cidades” e não zonas de crime!

Sei que esperar no imediato algo virtuoso em termos de políticas públicas no Rio é quase perder tempo e mergulhar no desespero. Mas culpar o Governo Federal é ignorar que a Política de Segurança, como vem sendo pensada e proposta, precisa passar pela institucionalidade existe. Ou seja, depende de aprovação do Congresso, dominado pelo execrável “Centrão” – uma espécie de câncer implantado em nossa democracia institucionalizada, com suas virtudes e limites. No Congresso não predomina a busca do bem público possível. Antes disto, predominam os interesses paroquiais de “lobbies” e do tal “Centrão”, mais preocupado em emendas parlamentares para seus redutos eleitorais do que com a democracia e a busca do bem comum e de direitos iguais na nossa diversidade.

Finalizo afirmando que não teremos saída se a Segurança Pública não for pensada e formulada como base em direitos iguais. Mais, não avançaremos se nós, a diversidade de cidadanias ativas neste nosso imenso país, não tivermos um foco especial em tal política pública. Este nosso Brasil de múltiplas exclusões e até “guerras internas” depende da nossa ação, como cidadanias ativas na praça pública e apontando caminhos para mudanças profundas, entre elas na Segurança Pública. Não podemos esperar por milagres em políticas! Ou nós agimos, pois somos a base de políticas, ou nada acontecerá.

 

Fonte: Por Felipe Brito, Blog da Boitempo/Sentido e Rumos

 

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