“Operação
Contenção”: a chacina como combustível para a extrema direita
A
informação oficial, na alvorada do dia 28 de outubro de 2025, era de que
aproximadamente 2.500 policiais civis e militares foram às ruas (leia-se: aos
Complexos da Penha e do Alemão) para o cumprimento de 100 mandados de prisão,
com o objetivo de contenção do Comando Vermelho. Tratava-se de mais um capítulo
da megaoperação batizada de “Contenção” — capítulo que redundou, dentre vários
estragos sociais e pessoais, no recorde de letalidade no ranking mórbido das
operações e megaoperações policiais no Rio de Janeiro. É difícil supor que a
finalidade primordial da megaoperação fosse, de fato, desmontar cadeias
produtivas, redes de financiamento e ganhos monetários, lavanderias financeiras
da mencionada facção criminosa. É mais plausível supor que o fio da meada foi
“tocar o terror” — e, para cumprir esse propósito sem tergiversação, empilhar
cadáveres (seletivamente).
Este
breve artigo não se propõe a apresentar um inventário de mais um episódio de
horror urbano do Rio de Janeiro, tampouco entabular um debate especializado da
área da Segurança Pública — deixo a tarefa a cargo dos especialistas. Com a
“Operação Contenção” ainda oficialmente em curso, minha proposta é compartilhar
uma singela contribuição, em caráter ainda propedêutico, sobre efeitos sociais
traumatizantes/traumatofílicos contidos em eventos assoberbados de violência
(como a referida megaoperação). Ademais, me interessa apontar o quanto isso se
reverte em combustíveis para a extrema direita e congêneres. Para os propósitos
do texto, de modo sucinto, o que caracterizo aqui como
traumatizante/traumatofílico diz respeito ao transbordamento da capacidade psicofísica
de assimilação, processamento, elaboração de muitas pessoas ante à virulência,
exacerbação, ostensividade, aceleração desses eventos violentos. Diante do
poder avassalador, de posições objetivas e subjetivas exacerbadamente
assimétricas, frente à impossibilidade de enfrentamento, processamento,
elaboração, forja-se um dispositivo de defesa psicofísico que consiste,
basicamente, em interiorizar, alojar, introjetar a coerção, opressão, agressão
— e cujo efeito é de submissão para se proteger da manifestação do efeito
devastador1.
Muitos
trabalhadores cariocas padecem das consequências da desagregação econômica, que
pode ser descrita sumariamente nos seguintes termos: em uma primeira camada
estrutural, por estarem inseridos em uma sociedade da universalização da
mercadoria, precisam acessar dinheiro para sobreviver. No amálgama de
pós-assalariamento e não assalariamento de massas, marcante no mercado de
trabalho do Rio de Janeiro, esse dinheiro muitas vezes provém de rendimentos
não ou pós-salariais, obtidos sem direitos trabalhistas ou previdenciários, sem
respaldo sindical, em que os custos econômicos e subjetivos são externalizados
para os ombros desses próprios trabalhadores e as partilhas de vivências (no e
pelo trabalho) são ínfimas. Não é exagero considerar que esses trabalhadores,
de fato, atuam assujeitados a uma base objetiva do “cada um por si e todos
contra todos” — atuações que requerem largas doses de adestramento, ou seja,
uma espécie de preparação corporal e psíquica em registro maquinal, que
favorece formas hiperindividualistas de agir-sentir-pensar, impulsionadas por
uma mistura de sentimentos e afetos de insegurança, medo, ódio (destrutivo) e
ressentimento. Nessa associação de fatores objetivos e subjetivos, muitos
trabalhadores sentem e interpretam a sociedade como “selvageria do cada um por
si e todos contra todos”.
Junto à
desagregação econômica, forma-se um circuito (as)social constituído por
segregação socioespacial, violências (oficiais e extraoficiais) do aparato
repressivo estatal, disputa/gestão/controle territorial armado do narcotráfico
ou da milícia, truculência cultural, desvalias institucionais e, em alguns
casos, negligências e/ou invasividades afetivas etc. Ligada à sensação e à
interpretação da sociedade como “selvageria do cada um por si e todos contra
todos”, desponta-se a sensação e a interpretação da sociedade como um todo
social hostil, regido por poderes implacáveis, avassaladores. Essa
sensação/interpretação tende a recrudescer formas de ensimesmamento defensivo,
sob algum efeito traumatizante, impulsionadas por uma exacerbação da chave
afetiva do medo/insegurança, que transitam entre acuamentos, ódios
(destrutivos) e ressentimentos.
Subjacente
ao supracitado circuito de deteriorações, coerções e desmazelos, há a
predominância de um capitalismo de espoliação e pilhagem, com um pano de fundo
sócio-histórico belicista, que se infiltra nas raízes coloniais, escravocratas
e latifundiárias da formação social brasileira, e na prevalência de uma
modernização concentradora de renda/riqueza e eivada de violências. No amálgama
de pós-assalariamento e não-assalariamento de massas, um contingente expressivo
de pessoas no Rio de Janeiro é absorvido pelos mercados ilícitos, nos quais as
fronteiras entre a “licitude” e a “ilicitude” se desmancham, se misturam ou se
separam por uma linha tênue. Isso é corolário da apropriação econômica de
territórios periféricos e a ponta de um iceberg que alcança Fintechs, a Faria
Lima e rentáveis áreas econômicas diversas. Trata-se, na verdade, de
“normatividades” sob os auspícios das armas, calcadas no entrelaçamento de
“violência econômica” e “violência ‘extraeconômica’” (como diria Marx) e na
dissolução/confusão dos limites entre o “legal” e o “ilegal”.
É
possível notar que o bolsonarismo, o campo da extrema direita, sofreu
recentemente alguns danos e se encontra atravessado por disputas intestinas e
fratricidas. Entretanto, os fatores objetivos e subjetivos que levam à adesão
ou, pelo menos, identificação com o que ele tem a oferecer e propagar
persistem. Os nexos entre extravasamento securitário e “selvageria do cada um
por si e todos contra todos” geram combustíveis inflamáveis para o campo da
extrema direita. Nessa perspectiva, apontar para El Salvador e postular uma
espécie de “bukelyzação”2 à brasileira, buscando guarida no formato trumpista
de imperialismo estadunidense, parece se oferecer como um caminho para
requentar politicamente a extrema direita e manter sua aderência social. “Tocar
o terror” e empilhar cadáveres (seletivamente) são mais do que bandeira
política: viram eixo de governança, catalisando os dispositivos traumatofílicos
de submissão à (des)ordem social. Na lógica (belicista) da extrema direita,
incidir sobre a dimensão sensível e mobilizar afetos constituem móveis
estratégicos de ação, com estatuto de centralidade. Inserem-se aí, por exemplo,
os bombardeios de fake news — dispositivo semiótico virulento e ostensivo que,
de maneira cirúrgica, atinge o “alvo”, ou seja, o perfil psicológico
determinado pela captura incessante de dados promovida pelo “extrativismo
digital”. A guerra semiótica exponencia o extravasamento securitário, alastra a
chave afetiva subjacente da insegurança/medo, atiça o hiperindividualismo.
O tipo
de “ênfase” dada pela extrema direita no tema da segurança pública aparenta
para muitas pessoas, moradoras das metrópoles brasileiras, uma espécie de
“comprometimento”, “implicação” com as manifestações de insegurança/medo. Do
outro lado da moeda, estaria uma aparência de “distanciamento academicista” e
indiferença por parte da esquerda perante essas manifestações de insegurança e
os medos dessas pessoas comuns, bem como os correlatos clamores por
“autoridade” e “ordem”. O campo progressista precisa encarar de frente o tema
da Segurança Pública. Uma premissa indispensável para conduzir esse desafio é o
empenho de se conectar com as pessoas comuns, o que requer uma melhor escuta
desses clamores por “autoridade” e “ordem”, dentre outros, sob pena de continuarem
sendo preenchidos pelos direcionamentos monstruosos da extrema direita e
congêneres.
• Massacre como o ocorrido no Rio de
Janeiro pode ser considerado parte de política de segurança pública? Por
Cândido Grzybowski
O que
aconteceu no Rio na terça-feira, dia 28 de outubro, é inaceitável em uma
democracia que vale a pena ser vivida. Empreender uma “verdadeira guerra” em
território bem comum de cidadania é um ato que só produz morte e nunca poderá
ser considerado uma política para garantir o direito fundamental de segurança
pública.
O que
passa na cabeça do governador Castro? Bem, para quem até propôs um adicional
para o policial eliminar “criminoso” é revelador da afronta ao sentido mesmo de
segurança pública numa democracia. Queremos direitos garantidos, mas não uma
política que, sob justificativa de combate ao crime organizado, nega o devido
processo legal na condenação e prefere o enfrentamento que acaba dando no que
deu: muitos inocentes mortos por viver em periferia pobre, junto com criminosos
que nunca poderão ser julgados por que foram eliminados. Aliás, se presos
fossem, nossa política, que prefere o confronto, não garante a vida para quem é
considerado criminoso, preso e julgado. Ao governo do Estado do Rio parece que
só conta eliminar os considerados bandidos, sem se importar com os muitos
inocentes que podem ser fuzilados, só por ter que sobreviver em território “de
risco”. Sr. Governador, para onde eles podem ir senão aguentar a falta de tudo
que são as favelas e os tais “complexos?”. Basta e basta! Impeachment no Castro
e mais oito anos de inelegibilidade!
A
primeira razão de ser de uma política de segurança pública é para garantir
iguais direitos a toda cidadania. Aliás, criminalizar o consumo de drogas só
pode levar a situações assim. Não só matanças, mas crimes. Basta ver o que o
Trump e o poderoso exército sob seu comando estão fazendo no Caribe e Pacífico.
Abater simplesmente pode ser aceitável? Por que não prende e averigua? Isto
vale para nós aqui, para nossas cidades. Quantos mortos ainda precisamos chorar
e contar com esta política de “guerra” inútil? Até quando vamos aceitar tal
agressão a um direito fundamental de segurança, individual e coletivo?
Bem,
podemos divergir como cidadãos sobre a melhor política. Mas estamos realmente
buscando uma verdadeira política de segurança pública em todos os níveis de
governo? Concordando com muitos, considero a política de criminalização de
drogas um erro e a pior forma de combater uma questão de vício e saúde, que
sempre existiu e que a criminalização de seu consumo só aumenta mortes e em
qualquer lugar do mundo vem se mostrando ineficaz. Não seria melhor considerar
o consumo de drogas como uma grave questão de saúde ao invés de usar arsenais
de repressão que só estimulam mais e mais o próprio tráfico e seu investimento
em armamento com armas letais e até bombas jogadas por drones, como noticiado e
visto no caso de terça-feira, no Rio? A Suíça, centro financeiro mundial e até
de lavagem de dinheiro do crime organizado – pouco criminalizado neste mundo
globalizado – na questão das drogas tem uma política de saúde antes e acima da
repressão. Vamos só imitar a lavagem de dinheiro e não os bons exemplos de
políticas de cuidado com drogados da Suiça? É uma contradição, eu sei, mas vale
a pena lembrar que boas políticas públicas sempre ficam atrás de mercados.
Aliás, os traficantes são antes de tudo uma questão de mercado, de bom negócio
e sua “ditadura”.
Bem,
temos o imediato a tratar e encontrar formas de evitar que volte amanhã a
acontecer: uma “guerra interna”, bem ao gosto de ditaduras repressivas e
assassinas. Na verdade, simplesmente nada dá para esperar do Governo Estadual
que temos, com grande conivência da própria Assembleia Estadual e um
Judiciário… que deve muito, fazendo pouco para o que pode fazer. Afinal, é a
institucionalidade do Estado do Rio que está em questão.
O que
agrava tudo é constatar que os Governos Estadual e os Municipais não criam
prioritariamente “virtudes” com suas políticas pois “deixam ao léu” as áreas
periféricas e faveladas. Como lembrou-me minha filha, que trabalha na Barra mas
mora em Santa Tereza, sobre o verdadeiro terror e paralisação da cidade do Rio:
“A Zona Sul é outra cidade e outro Estado, não o Rio”. Precisamos de muito mais
cidadãs e cidadãos do Rio que vejam assim os contrastes de um território comum
com muralhas, cuidando a cidadania de “ricos” e promovendo a repressão/guerra
aos pobres”. Isto não pode ser considerado como democracia efetiva.
A
política de Segurança Pública que a democracia e a diversidade para ser
cidadania necessitam nunca poderá ter como base a possibilidade de usar
prioritariamente a repressão e a violência armada, ao invés de ser uma ação
assentada na prevenção da violência. O que aconteceu na terça-feira no Rio foi
uma guerra interna do Estado contra a cidadania. Os inocentes assassinados não
são simplesmente “mortes colaterais” em zona de crime. Se é “zona do crime”,
foi o Estado negligente que permitiu se formar aí, exatamente nas periferias
pobres e excluídas, longe do olhar do Estado e, no caso do Rio, da glamorosa
“Zona Sul”. Temos uma cidade partida e políticas públicas partidas. O ocorrido
mostra ação estatal desastrosa e até criminosa. “Balas perdidas” não existem,
pois sempre são intencionais e dirigidas. Estamos diante de ação estatal que é
um desastre, tanto na concepção como na execução. Inadmissível em democracia,
que, aliás, só floresce desde o chão da sociedade, desde os territórios que
habitamos e onde buscamos viver tendo por princípio o cuidado, cuidado com
todas e todos e cuidado com a própria integridade dos territórios. “Favelas são
cidades” e não zonas de crime!
Sei que
esperar no imediato algo virtuoso em termos de políticas públicas no Rio é
quase perder tempo e mergulhar no desespero. Mas culpar o Governo Federal é
ignorar que a Política de Segurança, como vem sendo pensada e proposta, precisa
passar pela institucionalidade existe. Ou seja, depende de aprovação do
Congresso, dominado pelo execrável “Centrão” – uma espécie de câncer implantado
em nossa democracia institucionalizada, com suas virtudes e limites. No
Congresso não predomina a busca do bem público possível. Antes disto,
predominam os interesses paroquiais de “lobbies” e do tal “Centrão”, mais
preocupado em emendas parlamentares para seus redutos eleitorais do que com a
democracia e a busca do bem comum e de direitos iguais na nossa diversidade.
Finalizo
afirmando que não teremos saída se a Segurança Pública não for pensada e
formulada como base em direitos iguais. Mais, não avançaremos se nós, a
diversidade de cidadanias ativas neste nosso imenso país, não tivermos um foco
especial em tal política pública. Este nosso Brasil de múltiplas exclusões e
até “guerras internas” depende da nossa ação, como cidadanias ativas na praça
pública e apontando caminhos para mudanças profundas, entre elas na Segurança
Pública. Não podemos esperar por milagres em políticas! Ou nós agimos, pois
somos a base de políticas, ou nada acontecerá.
Fonte:
Por Felipe Brito, Blog da Boitempo/Sentido e Rumos

Nenhum comentário:
Postar um comentário