sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Gaza e a lógica da necrocidade como modelo global: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento

plano de recontrução de Gaza, articulado por Donald Trump e que conta com o apoio do seu genro, Jared Kushner, e de Tony Blair, ex-primeiro ministro britânico, é uma iniciativa que transcende a dimensão técnica e se configura como uma operação política e econômica. A proposta, que visa transformar a Faixa de Gaza em uma espécie de "Riviera" ao estilo Dubai, é delineada por consultores anônimos e prioriza a viabilidade econômica e os interesses de investidores em detrimento das vidas humanas e da história do território. O projeto colonial, que recebeu o nome de "Riviera do Oriente Médio" ou GREAT (Gaza Reconstruction and Economic Advancement Trust), ignora sumariamente o direito internacional e os direitos da população local. O documento prevê o deslocamento da população palestina para outro país ou para áreas restritas [campos de concentração], tratando os habitantes de Gaza como "um problema a ser gerenciado, não como pessoas", avalia o professor de urbanismo na Sciences Po, em Paris, Marco Cremaschi.

Conforme explica o urbanista, o plano visa transformar a Faixa em um polo logístico e de extração, uma "cidade dividida em zonas funcionais, cercada e vigiada", com infraestruturas voltadas para o capital e os fluxos comerciais. Em essência, o território seria transformado em uma "loteria imobiliária baseada em blockchain", adverte o pesquisador, onde a reconstrução está condicionada à lucratividade, e não aos direitos. Os problemas do projeto são evidentes e graves: trata-se de uma forma de "ocupação permanente" sob tutela dos EUA, sem soberania palestina e sem garantias para o autogoverno nas fases iniciais. O projeto culmina em um cenário que o professor Marco Cremaschi denomina de "necrocidade", onde a cidade "ressurge como plataforma econômica sem cidadãos, laboratório de um urbanismo administrado pelo capital". Com isso, a memória e a história do povo palestino são apagadas e o território é "zerado" e redesenhado "como uma vitrine econômica", demonstrando uma lógica que transforma a guerra em investimento e as cidades em "campos de testes do poder", esclarece. A violência do "urbicídio" (destruição deliberada da cidade como lugar de convivência e memória) de como premissa para a especulação, onde o novo modelo urbano é "o protótipo de uma cidade construída para o capital: isolada, cercada, privatizada, onde tudo é mercadoria e a vida coletiva é reduzida ao mínimo", complementa.

O que se desenha para o futuro de Gaza é uma cidade controlada e mercantilizada. “Gaza não é mais pensada como uma comunidade, mas como um corredor logístico entre Israel, Arábia Saudita e o Mediterrâneo, funcional aos fluxos de petróleo e matérias-primas”, pontua Cremaschi na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O perigo, observa o professor, não se restringe à Faixa. “A lógica aplicada a Gaza – destruir e depois reconstruir para fins de lucro – corre o risco de se tornar um modelo global”. Hoje, conclui, “poderíamos dizer: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento”.

>>>> Confira a entrevista.

·        A cidade de Gaza foi varrida do mapa. Segundo a ONU, são mais de 67 mil mortos e 170 mil feridos. Sobrou o território como ferida aberta. Até que ponto a destruição urbana e a dizimação humana apagam a história e a geografia do território?

Marco Cremaschi – O conflito entre Israel e a população palestina já dura mais de um século e, desde o início, configurou-se como uma luta mútua pela expulsão do outro. É uma questão entrelaçada com a história do século XX: o Holocausto, a Guerra Fria, a Nakba palestina e as dificuldades do mundo árabe-muçulmano em construir caminhos estáveis de desenvolvimento político e econômico. Não podemos esquecer a incapacidade histórica de grande parte do mundo árabe-muçulmano de trilhar caminhos frutuosos de desenvolvimento político e econômico, que ao longo do tempo conduziu repetidamente a becos sem saída: exemplos disso incluem o fim inglório do nacionalismo árabe, as armadilhas no jogo de alianças entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, a afirmação do fundamentalismo religioso, por vezes sectário, e, mais recentemente, o expansionismo iraniano.

A questão palestina tem sido, desde o início, uma luta por espaço: dois povos que aspiram ambos a uma comunidade política "entre o mar e o rio", o Mediterrâneo e o Jordão. Até que a presença e a legitimidade do outro sejam aceitas, não pode haver solução. Hoje, Gaza é o ápice dessa história. Após dois anos de bombardeios, sua materialidade — história, topografia, registro de terras — foi praticamente apagada. A ONU estima que 78% dos edifícios estejam destruídos ou severamente danificados e que os escombros superem 60 milhões de toneladas. Espalhados por toda a Faixa, elevariam seu nível em 30 centímetros. Removê-los exigiria bilhões de dólares, milhares de máquinas e anos de trabalho. Enquanto isso, alguns já propõem despejá-los no mar, transformando a catástrofe em um negócio, evocando até portos e ilhas artificiais "no estilo Dubai".

·        Com o acordo de paz, vamos a um segundo momento desse conflito: a reconstrução de Gaza. Do que se trata o projeto de "redesenho urbano" para a região elaborado por consultores estadunidenses?

Marco Cremaschi – A chamada reconstrução de Gaza é, na realidade, uma operação política disfarçada de plano técnico. Um documento de consultores anônimos avalia apenas a viabilidade econômica, ignorando as dimensões humana e política. O plano propõe realocar a população para construir uma "Riviera" inspirada em Dubai, criar um Fundo para governar a Faixa até a "reforma" da comunidade palestina e atrair investidores com monopólios de infraestruturas. Do ponto de vista urbano, Gaza se tornaria um polo logístico e de extração: uma cidade dividida em zonas funcionais, cercada e vigiada, com infraestruturas projetadas para os capitais e os fluxos comerciais, mais que para os residentes. É uma modelo de cidade para investidores, não para cidadãos.

·        A propósito, quem são esses consultores?

Marco Cremaschi – Trata-se de uma rede de consultores, empresários e políticos. Jared Kushner, genro de Donald Trump, já havia argumentado que a costa de Gaza tinha um grande potencial imobiliário e que os habitantes poderiam ser realocados no Deserto do Negev. Em agosto, Trump convocou à Casa Branca Kushner, o empresário Steve Witkoff e o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair para discutir o futuro de Gaza. Segundo vários analistas, o plano teria sido encomendado pela Fundação Humanitária de Gaza, próxima aos ambientes evangélicos da Casa Branca. A fundação se transformaria em um Fundo com plenos poderes sobre o território, que seria proprietário de parte das terras e confinaria a população em moradias temporárias.

·        Como deveria ser a "nova Gaza", de acordo com esse projeto?

Marco Cremaschi – Sete ou oito cidades com 200 mil habitantes, cada uma dedicada a uma função econômica ou a um grupo industrial: logística, dados, turismo. Tudo monitorado, conectado por corredores e infraestruturas. As propriedades seriam "tokenizadas", ou seja, transformadas em cotas digitais negociáveis nos mercados especulativos. Essencialmente, Gaza se tornaria uma loteria imobiliária baseada em blockchain, onde a reconstrução depende da lucratividade, não dos direitos.

·        Qual a importância de fazer memória à tragédia e ao sofrimento do povo palestino na reconstrução de uma nova Gaza? Que espaço tem a memória do povo palestino nesse projeto?

Marco Cremaschi – Praticamente nenhum. O modelo de reconstrução que deveria emergir de uma tragédia tão grande prevê o oposto: reutilizar materiais no local, envolver a população local, reconstruir os lugares de memória e manter os traçados originais. Aqui, em vez disso, tudo é zerado: um território sem história, pronto para ser redesenhado como uma vitrine econômica.

·        Levando em conta o documento apresentado, como ele ilustra a captura dos nossos modos de vida pelo capital financeiro?

Marco Cremaschi – O projeto utiliza instrumentos financeiros e tecnológicos – trust, tokens, blockchain, inteligência artificial – para transformar a cidade em um produto de investimento. Gaza não é mais pensada como uma comunidade, mas como um corredor logístico entre Israel, Arábia Saudita e o Mediterrâneo, funcional aos fluxos de petróleo e matérias-primas. É a projeção urbanística da reaproximação entre Riad e Tel Aviv, vista por Washington como um novo equilíbrio estratégico.

·        Em seus textos, o senhor fala de "urbicídio" e "necrocidade". Pode explicar o que significam esses conceitos?

Marco Cremaschi – "Urbicídio" significa destruir deliberadamente a cidade como lugar de convivência e diversidade. Não se trata apenas de demolir prédios, mas de aniquilar a memória e a vida urbana. O termo se afirma com Sarajevo e Mostar na década de 1990, mas hoje Gaza representa sua versão nova e inquietante.

"Necrocidade" é a fase seguinte: a cidade ressurge como plataforma econômica sem cidadãos, laboratório de um urbanismo administrado pelo capital. Gaza é ambos: o urbicídio como premissa para a especulação.

·        população de Gaza não é citada nenhuma vez ao longo do documento, no entanto menciona os “stakeholders”. Que cidade pode emergir de um plano que ignora a presença humana multimilenar na região?

Marco Cremaschi – Os habitantes de Gaza são tratados como um problema a ser gerenciado, não como pessoas. O documento prevê que uma parcela significativa emigre, e cada partida é avaliada economicamente. As compensações pelos imóveis destruídos são calculadas com base em valores mínimos, enquanto as novas habitações teriam preços semelhantes aos de Tel Aviv. Nas imagens geradas por IA, os moradores de Gaza desaparecem completamente, substituídos por investidores em roupas brancas.

·        Uma das principais empresas a serem beneficiadas no projeto de Trump é a construtora, mas não somente, da família Bin Laden. Como compreender essas intrincadas relações de poder entre EUA e os Bin Laden?

Marco Cremaschi – Durante a presidência de Trump, Jared Kushner estabeleceu relações econômicas com grupos sauditas e catarianos, que, segundo diversas fontes, apoiaram seus empreendimentos imobiliários. Hoje, Kushner não ocupa cargos oficiais, mas continua a atuar como intermediário entre política e finanças, em uma zona cinzenta onde os interesses pessoais e estratégicos se confundem. É a imagem de uma diplomacia transformada em negócios.

·        Quais as características que marcam o novo projeto para Gaza como uma “cidade perversa”?

Marco Cremaschi – Pedi aos meus alunos da Sciences Po que imaginassem a cidade mais "maligna" possível: bairros fechados, espaços públicos artificiais, vigilância total. O oposto do bom urbanismo não é o caos, mas o controle. Gaza, nessa perspectiva, torna-se o protótipo de uma cidade construída para o capital: isolada, cercada, privatizada, onde tudo é mercadoria e a vida coletiva é reduzida ao mínimo.

·        Esses modelos dizem respeito apenas a Gaza?

Marco Cremaschi – Não. Os mesmos princípios já são visíveis nas novas cidades do Golfo e em muitas metrópoles asiáticas: espaços privatizados, enclaves residenciais, natureza artificial, vigilância generalizada. Isso sinaliza o desaparecimento da cidade como espaço livre e indisciplinado, substituído por um ambiente controlado, curvado à lógica da valorização financeira.

·        Gostaria de acrescentar algo?

Marco Cremaschi – Talvez apenas um aviso. A lógica aplicada a Gaza – destruir e depois reconstruir para fins de lucro – corre o risco de se tornar um modelo global. Tácito escrevia: "Fazem um deserto e o chamam de paz". Hoje poderíamos dizer: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento. A violência serve para criar as condições para o negócio da reconstrução. É uma espiral que transforma a guerra em investimento e as cidades em campos de testes do poder.

¨      Tudo começa e termina em Gaza. Por Tarso Genro

“Relaxamento, torpor, anestesia e sonolência”, causadas pelo ópio fumado ou bebido em “tinturas preparadas para o consumo” foram – mais além das devastações materiais e humanas – os primeiros efeitos na perversão da subjetividade humana, desenhados desde dentro do capitalismo industrial.

São os legados para o século, que mudaram os perigos imediatos e nos colocaram perante duas consequências que dão o perfil da crise civilizatória e política global: a crise climática e a destruição da ONU. As notícias e os comentários angelicais da imprensa tradicional sobre os esforços de Donald Trump para “conseguir a paz” são naturalizações cínicas e humilhantes feitas para um público alienado, num século que já começa terminando.

Tudo de novo, mas nada de novo, embora nada mais seja o mesmo. As duas guerras do ópio encetadas pelo Estado Inglês (1839-1842 / 1856-1860) já foram tipicamente “protecionistas”, pois tinham como objetivo amparar os negociantes ingleses perante as novas decisões do Imperador da China. Este pretendia limitar a venda do ópio no país, “diante do grande impacto” que (o seu uso) ou fruição, vinham causando na saúde pública e na “balança comercial” daquela nação milenar.

O monopólio do comércio do ópio pela velha Inglaterra proporcionou o controle dos portos chineses para o país, bem como a garantia de espaços geopolíticos importantes, definidores da “reserva de mercado” imperial-colonial sobre a China: os sentidos das crises atuais são visíveis à olho nu e formam a tempestade perfeita para uma nova guerra mundial ainda não declarada.

A guerra das civilizações, da qual nos falou Samuel Huntington, bem como as guerras representadas na gravura de Goya (“O Sono da Razão que Produz Monstros”) que Antonio Gramsci eternizou como morbidez da história mostram um velho mundo que morre e um mundo novo que hesita entre o não nascer, ou nascer já deformado pelas dores de um parto sem resultado.

A situação do colonialismo inglês bastou para que Karl Marx designasse, à sua época – por analogia – a religião como um “ópio” do povo. Era o ópio que amortecia as resistências físicas e morais da nação chinesa, bem como as religiões da época – no ocidente – que subordinavam consciência dos indivíduos livres, para arrastá-los – pelas guerras – a morrer pelo interesse das classes dominantes locais, funcionando como entorpecente.

Tensão, energia dispersa do mal, ofensas socavadas nas redes manipuladas e sonhos com um torpor que não relaxa, substituíram a época “inglesa” das guerras do ópio, pelas guerras americanas aparentemente simples, das operações militares por procuração. Vivemos agora a mais americana perda dos sonhos, nas linhas liberais de disseminação do Fentanil, da cocaína, heroína, crack – das drogas sintéticas e do racismo – da imigração reprimida no mercado de trabalho segregado.

Uma carta de Ítalo Balbo a Benito Mussolini, datada de 19 de janeiro de 1939, já traz o cinismo de uma época que se repete, quando refere à missão que o “Duce” lhe atribuíra, de “cuidar dos judeus líbios”. Isso no contexto da repressão racista e das chacinas que levaram ao Holocausto – mandato para o qual Hitler exigia um comportamento solidário dos seus aliados, propagado “pela pureza racial” que legitimaria a dominação do mundo pela Alemanha nazista.

Um dos principais organizadores do Partido Fascista na Itália, Ítalo Balbo foi o Governador da Líbia que nessa carta a Mussolini dizia o seguinte: “Os judeus já estão mortos, não há necessidade de se enfurecer contra eles”, fórmula “otimista” para a versão italiana da barbárie. Mussolini, todavia, quatro dias depois – de forma tão simples como reveladora do poder fascista – responde que a aplicação das leis italianas era para ser mantida na Líbia, porque “os judeus parecem, mas nunca estão definitivamente mortos”. É o que já dizem Benjamin Netanyahu e Donald Trump sobre os palestinos, nos dias que correm.

Não é exagero dizer que, no médio curso da conjuntura, são visíveis três pontos de apoio que, se não foram removidos do cenário através de articulações políticas com a força global das potências “médias” (onde estamos incluídos) este mundo que aí está, será sucedido talvez por um outro muito pior, mesmo porque não o entendemos ainda de maneira plena.

Racismo, colonialismo, violência, ódio racial, comércio exterior, imigração, tudo o que baseou as a guerras de antes faz hoje tudo começar e terminar em Gaza, passar pelo Sul do Mercosul, abrindo-se em direção à Venezuela para estender seu manto na direção norte à Colômbia e rumo ao México. Depois dali, está a força do Presidente Trump que, após financiar o genocídio, assinou a paz dos vencedores sobre uma montanha de cadáveres insepultos.

Os três pontos de conflito mais visíveis são: a paz dos “cemitérios” em Gaza, Donald Trump se preparando para ocupar a Venezuela e o golpe continuado no Brasil. A extrema importância deste último vem da fusão das externalidades com as interioridades das relações políticas, que fazem renascer todos os dias o que foi e é consenso de Washington.

A democracia ainda resiste em alguns pontos do mundo, assediada pela destruição das poucas cláusulas que restaram do Estado Social e com perdas materiais nos tormentos das guerras. Tudo está mais perto do que parece ser um fim de mundo, muito distante do pior cenário previsto por Washington, quando o sistema do capital enterrou a União Soviética.

Hoje, todavia, é impossível destruir a China, uma nova potência que disputa, palmo à palmo – por dentro do sistema global do capital – os poderes conferidos pela ciência e pela técnica, que também podem dominar territórios e preparar-se para a guerra ou para uma nova etapa de paz precária sem desmantelar-se.

As monarquias feudais árabes e a União Europeia estão limitadas pelos seus compromissos diretos ou indiretos com o ocidente, face a sua dependência militar e econômica dos Estados Unidos. Fera acuada pelas contradições, entre aquilo que disseram seus pais fundadores e aquilo que o país realiza através da violência militar, é um país que só poderá ser resgatado para democracia com seu próprio povo em luta. Única saída – também – para uma paz estável entre a Rússia e a Ucrânia.

Os que dizem em todos os lados que por dentro da democracia política e do Estado Social de Direito não tem saída (o que já pode ser considerado uma “saída” trágica dos estreitos becos do Século XXI) não estão, na verdade, atacando a democracia. Estão dizendo que neste século não tem saída e que o destino de viver em guerras por mais cem anos é o nosso destino fatal. Quem sabe, assim será! Mas não podemos perder o rumo na centralidade do presente: o genocídio que aconteceu em Gaza, “sob os olhos do ocidente”, parafraseando Joseph Conrad, mostra que tudo começa como começou em Gaza e tudo termina como terminou Gaza! Na celebração do Horror.

 

Fonte: Entrevista com Marco Cremaschi, para IHU/Brasil 247

 

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