Clima:
A transformação virá da Agroecologia
Em meio
aos debates do 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado em
Juazeiro (BA), o agrônomo Paulo Petersen, coordenador executivo da AS-PTA –
Agricultura Familiar e Agroecologia, e membro da Articulação Nacional de
Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), falou ao
Brasil de Fato sobre sua atuação como Enviado Especial da Agricultura Familiar
para a COP 30, que acontecerá em Belém (PA), em 2025. Na entrevista, Petersen
analisa o cenário de disputas políticas e econômicas que marcam as negociações
climáticas, destacando o papel do agronegócio e as estratégias de resistência
da agricultura familiar e camponesa. “A COP 30 será a COP da implementação. É
hora de mostrar não apenas quanto cada país vai reduzir, mas como fará isso — e
de onde virá o dinheiro”, afirmou. Ele alerta para a influência das grandes
corporações nas soluções apresentadas e denuncia o risco das chamadas falsas
soluções, como a “agricultura regenerativa” proposta pelo agronegócio. “Essas
respostas são absolutamente insuficientes para o tamanho do problema. Elas não
mudam a questão essencial, que é a concentração de poder”, destacou. Petersen
defende que a agroecologia e a agricultura familiar sejam reconhecidas como
pilares de um novo modelo de desenvolvimento rural, capaz de enfrentar
simultaneamente as crises climática, alimentar e sanitária. “A agroecologia não
é apenas um conjunto de técnicas, mas uma proposta de democratização dos
sistemas alimentares — reconectando a agricultura aos ecossistemas e a produção
ao consumo, ligando o alimento à saúde”, afirma. Para o enviado especial, o
desafio é fazer com que as vozes dos territórios cheguem aos espaços globais de
decisão. “Quem não causou o problema não pode pagar o preço. A justiça
climática exige que povos e comunidades vulnerabilizadas tenham protagonismo”,
reforçou.
A
seguir, a íntegra da entrevista:
• Como apresentar o cenário de disputas
dentro da COP 30 em que a Agricultura Familiar está inserida?
Paulo
Petersen: A COP 30 é uma conferência multilateral em que os países apresentam
seus compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa. Essa
edição vem sendo chamada de “COP da implementação”, porque além de dizer quanto
cada país vai reduzir, deve dizer como fará isso.
A
grande discussão é como reduzir emissões e como se adaptar às mudanças
climáticas, diante de uma urgência global. É exatamente esse “como” que está em
disputa. O maior problema é que os setores que são os principais responsáveis
pela crise — e que têm grande poder econômico e político — criam narrativas que
distorcem o debate. É aí que surgem as chamadas “falsas soluções”. Falsas
porque não enfrentam a raiz dos problemas. Pior: em muitas situações contribuem
para agravá-los. A raiz está em um modelo econômico altamente depredador da
natureza e concentrador de riqueza. Esse modelo mostra sua cara de forma muito
evidente nos sistemas alimentares. Eles são responsáveis por cerca de 50% das
emissões globais, se considerarmos a queima de combustíveis fósseis, o
desmatamento para abertura de novas áreas de produção, a industrialização,
empacotamento, resfriamento e o transporte de alimentos a longa distância. Ao
mesmo tempo, a agricultura é o setor econômico mais vulnerável às mudanças
climáticas. Portanto, inserir os sistemas alimentares no debate é fundamental
tanto pelo desafio da mitigação de emissões quanto pela necessidade de
adaptação aos efeitos das mudanças climáticas. No Brasil, a situação é ainda
mais grave: mais de 70% das emissões são geradas pelos sistemas alimentares. O
avanço desmedido de monoculturas dependentes de agroquímicos e voltadas à
exportação, seguida da industrialização para a produção de ultraprocessados e
transporte em longa distância gera um modelo insustentável, altamente consumidor
de energia fóssil, de água e de outros recursos naturais finitos, como o
fósforo e o potássio. Além disso, a pecuária, sobretudo em sistema de
confinamento, é grande contribuinte pelas emissões brasileiras. Esse modelo é
responsável direto pelo desmatamento, pois tem “fome de terra”. É um sistema
expansionista, que expropria territórios indígenas, quilombolas e áreas
protegidas. É isso o que explica as sucessivas investidas da bancada ruralista
sobre as legislações fundiárias e ambientais. Os PLs do Marco Temporal e da
Devastação são exemplos emblemáticos dessa sanha expansionista do agronegócio
sobre a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e os demais biomas.
• E como a agricultura familiar entra
nesse cenário de disputas?
Trazer
a agricultura familiar para esse cenário é fundamental. Mas é preciso
entendê-la não como uma identidade social, mas como um modo específico de
praticar a agricultura. Refiro-me aqui à agricultura em seu sentido amplo, o
que inclui as práticas de criação, pesca e agroextrativismo. Sob o guarda-chuva
da agricultura familiar estão abrigados sujeitos com diferentes identidades,
tais como camponeses, quilombolas, pescadores artesanais, povos e comunidades
tradicionais e povos indígenas. Todas essas denominações organizam seu trabalho
e sua economia em estreita relação com a natureza e com suas comunidades.
Portanto, agricultura familiar deve ser entendida como uma agricultura
territorial. É uma agricultura diversificada, cooperativa, de base comunitária,
que combina produção para o consumo próprio, para doação na comunidade, para a
venda em mercados locais e em mercados distantes. Portanto, há nesse modo de
praticar agricultura várias economias circulando baseadas no uso múltiplo do
espaço agrário. A resiliência da agricultura familiar vem exatamente da
combinação da diversidade ecológica com a diversidade econômica em um mesmo
território. Nesse sentido, é uma lógica bastante contrastante à do agronegócio,
que aposta na economia de escala das monoculturas e grandes criatórios. Na
agricultura familiar temos diversidade econômico-ecológica. É daí que surge a
relação intrínseca entre a agricultura familiar e a agroecologia. A
agroecologia é um enfoque que valoriza os processos ecológicos para a
dinamização econômica em bases sustentáveis — captando a energia solar pela
fotossíntese para produzir biomassa, com isso aumentando a eficiência
agronômica e reduzindo a dependência de combustíveis fósseis e de agroquímicos.
Além de reduzir o consumo de energia fóssil, a economia da agricultura familiar
produz alimentos saudáveis e conserva os ecossistemas. Por essa razão ela
precisa ser reconhecida e promovida para o equacionamento conjugado da crise
climáticas ambiental, alimentar, de saúde coletiva e para a revalorização das
culturas alimentares. Isso significa que a agricultura familiar reproduz uma
economia do “ganha-ganha”: ganha no ecológico, no social, no cultural e no
climático.
• Você fala sobre “soluções ganha-ganha”.
Como levar isso para um espaço global como a COP 30, onde há tantos interesses
em jogo?
Um dos
nossos grandes desafios é fazer com que, a partir da COP 30, as agendas de
ações climáticas incluam a agricultura familiar e a agroecologia como parte das
soluções reais, e não como um tema lateral. Hoje, as agendas são fragmentadas:
há uma COP do clima, outra da desertificação, outra da biodiversidade… a agenda
da segurança alimentar é tratada em outros espaços, e assim por diante. Essa
fragmentação só favorece quem propõe falsas soluções. Normalmente elas estão
ligadas a inovações tecnológicas somente acessíveis pelos mercados
globalizados. Por exemplo, uma proposta climática, como a instalação de parques
de energia eólica ou solar, pode acentuar problemas ligados à insegurança
alimentar. Ou uma política de combate à fome baseada em monoculturas e
ultraprocessados vai impactar negativamente sobre o clima. Não são soluções
“ganha-ganha”. Esse é o principal argumento a ser defendido na COP do clima. A
agricultura familiar de base agroecológica é um dos principais satisfatores
sinérgicos para solucionar as crises geradas pelo capitalismo agrário. Estamos
falando da maior profissão do mundo, ou seja, a maior fonte de ocupação
econômica da humanidade. No Brasil, ela só não é mais expressiva porque a terra
segue extremamente concentrada. Isso significa dizer que, se quisermos
enfrentar a crise climática, a reforma agrária será uma condição indispensável.
Para enfrentar a crise climática de forma consistente precisamos ampliar o
espaço físico, político e econômico e cultural da agricultura familiar. Temos
bons e maus aprendizados no Brasil a levar à COP30 sobre esse assunto. Dispomos
de uma já consolidada experiência em políticas públicas para a agricultura
familiar. Desde os anos 1990 essas políticas canalizam recursos públicos
especificamente para esse setor. Mas há grandes contradições. A começar pelo
fato de que a reforma agrária não avança. Pelo contrário, processos de
concentração de terra seguem em todos os biomas. Além disso, parte importante
dos recursos públicos direcionados à agricultura familiar acabam por induzi-la
a reproduzir em pequena escala a lógica econômica do grande agronegócio.
Expressiva proporção do crédito concedido pelo Pronaf é ainda hoje canalizada
para produção de commodities, como soja e milho. Entendemos que essa orientação
é equivocada porque bloqueia o desenvolvimento de uma vocação econômica
essencial em um mundo a beira do colapso climático, a começar pelo seu
potencial de geração de postos de trabalho dignos e remuneradores.
• E como garantir que novas propostas a
partir da agricultura familiar de base agroecológica não acabem concentradas
nas mesmas mãos que causaram o problema ambiental e climático?
Esse é
um ponto crucial. O agronegócio tem proposto para a COP 30 a chamada
agricultura regenerativa. Tal como concebida, trata-se de uma resposta
absolutamente insuficiente para o tamanho do problema que temos a enfrentar.
Isso porque ela não altera essencialmente a raiz do problema, que é a
concentração de poder na regulação dos sistemas alimentares. Com soluções
restritas a inovações tecnológicas acessíveis pelos mercados, o poder
continuará concentrado nas mãos das grandes corporações geradoras do problema.
São elas que seguirão determinando os rumos do desenvolvimento tecnológico.
Isso já está claro hoje, com o súbito interesse corporativo pelos bioinsumos
com a promessa de redução do uso de agroquímicos, inclusive dos agrotóxicos. A
ironia é que essa é uma agenda que sempre defendemos a partir da agroecologia.
Mas nossa defesa nunca esteve relacionada a uma simples substituição
tecnológica. O foco sempre esteve ligado à construção de soberania tecnológica,
com valorização de conhecimentos e recursos locais. Na prática, significa que
não abrimos mão da produção autônoma dos bioinsumos pelas comunidades e pelas
famílias agricultoras, aliás como sempre fizeram. Projetos de lei e
regulamentações influenciadas por interesses empresariais tendem a impor restrições
ao uso de bioinsumos produzidos localmente. Para isso, lança-se mão de uma
série de argumentos falaciosos, tais como a existência de riscos biológicos.
Trata-se de um processo análogo ao verificado na imposição das regras de
vigilância sanitária para produção artesanal pela agricultura familiar.
Soluções efetivas não podem ser controladas pelas empresas que criaram o
problema. Por essa razão, a agroecologia não deve ser compreendida como um
conjunto de técnicas. É uma proposta de democratização dos sistemas
alimentares, já que emprega técnicas destinadas a reconectar a agricultura aos
ecossistemas, a produção alimentar ao consumo e o alimento à saúde. Em outras
palavras, o seu papel histórico é reconectar o que o agronegócio desconectou.
• E quanto à transformação estrutural que
precisamos para mudar essa lógica? Como avançar diante da força das corporações
e desse sistema econômico que precisa ser superado?
As
transformações necessárias não virão de cima para baixo. A agroecologia é uma
construção que acontece nos territórios. Então a única possibilidade de mudança
estrutural é com uma ampla mobilização social a partir dos territórios. Por
isso, defendemos políticas públicas que fortalecem o tecido associativo, as
cooperativas, as práticas locais de reciprocidade e de solidariedade. Temos
alguns exemplos emblemáticos já conquistamos. Entre eles, podemos citar o
programa Ecoforte de apoio a redes territoriais de agroecologia, o PAA, o PNAE
e o programa de cisternas no semiárido. Todas são iniciativas que convocam as
organizações locais a serem coexecutoras de políticas públicas. Da mesma forma
que não serão os mercados globalizados os portadores das soluções, não será
somente o Estado, por meio de suas políticas, o ator capaz de promover as
transformações estruturais necessárias. Apenas com o reconhecimento dos
sujeitos que atuam nos territórios será possível fomentar a construção de
soluções ajustadas às especificidades locais. Inovações tecnológicas universais
não transformarão a essência do sistema que precisamos superar. No jargão
técnico, chamamos elas de inovações incrementais, feitas dentro do próprio
sistema com o objetivo de perpetuá-lo. Precisamos de inovações disruptivas,
capazes de romper com as relações de dependência e subordinação impostas pelos
agentes do capital. Isso significa que as soluções para os problemas globais
devem nascer da inovação local. Essas inovações são técnicas, sociais e institucionais.
Gosto de definir a agroecologia como a economia solidária dos sistemas
agroalimentares. Por isso ela é democratizadora. Sem mudança nas relações de
poder, não haverá transformações efetivas nos sistemas alimentares. Portanto, a
transformação não é apenas técnica, embora a dimensão técnica seja essencial.
Os sistemas organizados pelos princípios da agroecologia exibem uma eficiência
técnica muito superior aos sistemas dominantes. Embora os defensores destes
últimos se vangloriem das elevadas produtividades físicas obtidas, são
incapazes de dar resposta aos baixos e decrescentes níveis de eficiência
energética, ecológica e social. Desse ponto de vista, a economia do agronegócio
e a da agricultura familiar contrastam em um aspecto central no debate sobre as
crises globais. Enquanto a primeira gera benefícios financeiros capturados na
escala micro pelo empresariado, produz externalidades negativas nas escalas
regional e planetária. Já o trabalho da agricultura familiar gera efeitos
multiplicadores sobre as economias locais, além de produzir externalidades
positivas em benefício do conjunto das sociedades. É exatamente com o intuito
de compensar suas externalidades negativas, entendidas pelo pensamento
econômico convencional como falhas dos mercados, que a agenda climática
dominante tem sido orientada pela tentativa de criação de mercados
compensadores, a chamada “economia verde”.
Criticamos radicalmente essa orientação. Além de reforçar o poder dos
mercados globalizados, coloca novos e poderosos obstáculos às iniciativas das
populações locais na construção de soluções efetivas a partir de suas
capacidades e recursos. Nesse intrincado debate sobre mercados de carbono e de
pagamento de serviços ambientais, importa ressaltar uma obviedade esquecida em
meio aos discursos repletos de siglas e jargões incompreensíveis empregados
pelos negociadores do clima: a agricultura familiar sempre produziu serviços
ambientais e promoveu a saúde coletiva. Embora os frutos de seu trabalho sejam
usufruídos pelo conjunto da sociedade, seu trabalho, especialmente o realizado
pelas mulheres, é invisibilizado pela economia dominante. Portanto, a falha que
precisa ser corrigida não é dos mercados, mas das políticas públicas. Para
corrigi-las, os Estados deveriam reconhecer e valorizar o trabalho produtor de
serviços agroecossistêmicos realizado pela agricultura familiar. Não se trata
de remunerar financeiramente pelos serviços ecossistêmicos. Além de cuidar da
natureza, a agricultura familiar produz e distribui renda, promove ambientes
alimentares saudáveis e gera bem estar e dignidade para as suas comunidades.
Reconhecer esse trabalho é condição para que a agricultura familiar seja
adequadamente posicionada na agenda climática. Não será através do viés
neoliberal que a agricultura familiar poderá dar sua contribuição para nos
livrar do colapso socioecológico. Esse viés, infelizmente dominante na
tecnocracia, destrói o senso de comunidade e cria o fenômeno do “agricultor
familiar empresarial”, ou seja, aquele que opera em livre competição segundo as
normas estabelecidas pelas cadeias de valor do agronegócio. Aliás, temos que
entender porque após décadas de políticas voltadas para a agricultura familiar
fomentadas pelos governos do PT, uma parcela grande desse segmento vota
sistematicamente em candidatos da direita. De onde vem essa contradição? A
verdade é que boa parte dos recursos públicos investidos nessas políticas, em
particular os do crédito rural, induziram a agricultura familiar a altos níveis
de dependência a mercados cada vez mais asfixiantes, com custos de produção
crescentes e preços dos produtos altamente voláteis e com tendência à queda.
Além disso, essas políticas fizeram com que essa parcela da agricultura
familiar passasse a gerar externalidades negativas. Ou seja: travou-se a
possibilidade de geração dos múltiplos benefícios potenciais que a agricultura
familiar poderia gerar para seus próprios territórios e, de forma mais ampla,
para o equacionamento das crises planetárias. Ao ser induzida a ingressar nessa
trajetória do empreendedorismo individual, o comportamento econômico e político
dessa parcela da agricultura familiar acaba reproduzindo em pequena escala o
mesmo padrão adotado pelos agentes do agronegócio, sempre refratários às
mudanças estruturais. Portanto, é essencial que se entenda as crises ecológica,
econômica, social e política estão intimamente conectadas. A superação de uma
não ocorrerá sem a superação das demais. Temos que nos perguntar também, por
que que no semiárido brasileiro o senso de comunidade na agricultura familiar
segue mais preservado. Nessa região, as pessoas afirmam o orgulho de serem
agricultores e agricultoras familiares. Em contraste, no Sul do país, tem sido
cada vez mais frequente escutarmos agricultores familiares se afirmarem como
membros “do agro”. Isso não é um pequeno detalhe. Considero uma derrota
política imensa e com grandes repercussões. Não se trata de uma questão
política reduzida às disputas eleitorais. Trata-se da formação de um bloco
conservador no seio da agricultura familiar com capacidade de exercer força
contrária às necessárias e urgentes transformações nos sistemas alimentares. É
imperativo reverter essa captura das subjetividades por parte do agro se não
quisermos assistir parte importante da agricultura familiar contribuindo para o
colapso climático. Em síntese: as políticas públicas concebidas para inserir a
agricultura familiar nos mercados globalizados contribuem para desenraizá-la de
seus territórios, gerando “sujeitos neoliberais”.
• E nessa perspectiva de enviado especial
da COP 30, como fazer com que as vozes dos territórios cheguem aos espaços
globais de decisão?
Essa é
exatamente a força deste Congresso Brasileiro de Agroecologia: mostrar que os
que não causaram o problema não podem arcar com os seus custos. Essa está sendo
a principal mensagem construída neste congresso para ser direcionada à Belém,
seja da Cúpula dos Povos e dos espaços oficiais da COP 30. A perspectiva da
justiça climática ressalta que os povos e comunidades vulnerabilizadas tenham
protagonismo na construção das soluções. Essa é a mensagem principal a ser
levada.
O Grupo
de Trabalho de Justiça Climática da ANA acaba de concluir a primeira etapa de
uma pesquisa-ação que investiga as múltiplas conexões entre a agroecologia e as
mudanças climáticas. Entre seus objetivos, a pesquisa busca dar visibilidade
exatamente às propostas de transformação construídas desde os territórios, com
o protagonismo dos agricultores, principalmente das agricultoras. Com esse
esforço coletivo, que mobilizou representações de mais de 500 experiências de
agroecologia presentes em todos os estados do Brasil, esperamos deixar claro
que os debates oficiais não podem se limitar às fontes de financiamento das
políticas climáticas. Tão ou mais importante de saber de onde vêm os recursos,
é saber para onde eles serão destinados. Isso significa dizer que não basta
captar 1,3 trilhões de dólares ao ano se essa dinheirama for utilizada para
financiar falsas soluções. Canalizar parte importante desses recursos para a
agricultura familiar de base agroecológica e para a reconstrução de sistemas
descentralizados de abastecimento alimentar é uma condição incontornável para
equacionarmos a crise climática com a urgência necessária. De quebra,
investimentos nessa direção dariam respostas consistentes às crises alimentar e
de saúde pública e aos desafios abordados pelas COPs da biodiversidade e da
desertificação. Para que a agricultura familiar seja devidamente assimilada na
agenda de ação que se seguirá à COP30, é fundamental romper com fragmentação
entre os setores administrativos dos governos. Tomemos o caso brasileiro. A
área da saúde, por exemplo, investe parte expressiva de seus recursos no
tratamento das doenças depois que elas já estão estabelecidas. Um apoio
determinado à agricultura familiar de base agroecológica pelo Ministério da
Saúde, o de maior orçamento na esplanada dos ministérios, seria uma excepcional
medida de promoção da saúde pública, com efeitos fiscais significativos pela
redução dos gastos com medicamentos e tratamentos hospitalares. Integrar o
acesso à alimentação saudável ao SUS, com o apoio à produção pela agricultura
familiar e a manutenção de cozinhas solidárias em periferias urbanas, onde se
formaram os desertos alimentares, seria simultaneamente uma importante política
de fortalecimento da agricultura familiar e combate à pobreza rural, de saúde
pública e de combate às mudanças climáticas. Portanto, a maior dificuldade
encontrada para o enfrentamento de questões sistêmicas complexas, como as
mudanças climáticas, não é a falta de recursos públicos, mas falta de sinergia
entre as políticas. É fundamental combinar os recursos existentes numa direção
coerente. Em que pesem as dificuldades para a inovação institucional nesse
campo, é importante sublinhar que esforços nesse sentido vêm sendo feitos no
Brasil. São eles que deveríamos dar visibilidade como contribuições brasileiras
na agenda climática. O Ministério do Desenvolvimento Social, por exemplo,
lançou aqui no CBA o Marco de Referência de Sistemas Alimentares e Clima para
Políticas Públicas. O Guia Alimentar da População Brasileira e o Programa de
Redução de Agrotóxicos são também conquistas que ajudam a posicionar a
agricultura familiar e a agroecologia na agenda climática. Apesar desses
exemplos positivos, não tem sido simples construir um ambiente de
intersetorialidade e de participação social em um Estado administrativamente
fragmentado e atravessado por disputas internas. Poderosas resistências de
grupos de interesse instalados em diferentes esferas do poder público impedem
avanços mais significativos nessa direção. No entanto, é preciso ressaltar que
com o apoio da academia crítica e a pressão de movimentos sociais, iniciativas
como essas vão ampliando as frestas por onde as disputas políticas são feitas.
• E nesse ponto, Paulo, além da construção
de narrativa para fora, podemos analisar os possíveis impactos dessa narrativa
para dentro do movimento agroecológico. Como avaliar também o cenário de
conquistas e disputas do movimento dentro desse cenário de uma balança de
narrativas?
Em
primeiro lugar, é preciso reconhecer que o contexto é para lá de hostil.
Sabemos dos limites de nossas capacidades políticas e o tamanho das forças que
bloqueiam as transformações sistêmicas estruturais. Temos que analisar a nossa
trajetória com base nesse contexto e não fora dele. Desse ponto de vista,
avalio o movimento agroecológico como altamente vitorioso, capaz de acumular
conquistas importantes. Conquistar o Pronara em um contexto como esse, não é
pouca coisa. O ministro Paulo Teixeira lembrou aqui no CBA que foram 15 anos de
luta para a conquista do Pronara. Nesse período, muita gente de vários setores
foi mobilizada, envolvendo movimentos sociais de várias bandeiras luta,
representações do campo acadêmico, da mídia e gestores públicos. Foi um processo
lento e sofrido, mas que chegou a uma vitória no plano institucional. Vitória
parcial e ainda sem consequências práticas. Mas ainda assim uma vitória a ser
celebrada. Temos que fazer essas análises das conquistas políticas também pelo
lado do copo cheio. Somente com o paulatino acúmulo de forças na sociedade será
possível reverter o quadro crítico em que nos metemos enquanto civilização. Por
outro lado, não estamos na condição de protelar por muito tempo a implementação
de soluções estruturais. A ciência alerta que estamos nos aproximando
perigosamente de alguns pontos de não retorno, o que significa que o colapso
socioecológico é iminente. A cada ano que passa temos um novo recorde
relacionado ao aumento da temperatura média do planeta. E não é só o IPCC que
alerta. Essa é também a percepção de muitas das pessoas de diferentes lugares
do Brasil que participaram da pesquisa-ação conduzida pela ANA. A meta
estabelecida na Eco 92, quando já assistíamos a um aumento médio de 0,7 graus
na temperatura do planeta, seria frear o processo, de forma a limitar o aumento
a 1 grau até o ano 2000. Já naquela oportunidade, na conferência paralela
organizada pela sociedade civil, apresentávamos a agricultura familiar e
agroecologia como parte importante para o equacionamento das questões
ambientais e climáticas em debate. Nos dirigimos para a trigésima COP do clima
e, infelizmente, o quadro só se agravou desde então. As emissões cresceram
significativamente. No ano passado, pela primeira vez na história, verificou-se
aumento de 1,5 graus. Realizar uma COP do clima no Brasil é uma oportunidade
para que as forças negacionistas que bloqueiam as efetivas transformações sejam
expostas e colocadas em xeque.
Fonte:
Paulo Petersen em entrevista a Daniel Lamir, no Brasil de Fato

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