É
sempre necessário tratar a febre? O sintoma que intrigou os médicos durante
milênios
São
três horas da manhã e você não consegue dormir.
Suores
e calafrios comprovam que algo não está bem. Um calor infernal avança até a
cabeça, enquanto os calafrios percorrem a sua espinha.
Você se
sente indefeso, exausto e confuso. "É apenas uma febre", você pensa.
Característica
evolutiva de mais de 600 milhões de anos, a febre é companheira habitual de uma
enorme variedade de infecções por vírus, bactérias e fungos. Muitos de nós já
vivenciamos a febre durante um episódio de gripe, por exemplo.
A febre
também é um sinal de enfermidades sérias, muitas vezes mortais, ao longo da
história humana. E incorporamos seu nome a muitas doenças, como a febre
amarela, febre maculosa, febre tifoide, febre oropouche, febre de Lassa e
outras.
Ainda
assim, os seres humanos só conseguiram compreender totalmente como o nosso
corpo produz a febre no século 20.
Mas por
que temos febre? Devemos sempre tratar dela? E quando ela deixa de ser um
simples desconforto para se tornar um problema mais sério?
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Uma pequena sangria
Nossos
ancestrais tinham total consciência dos perigos da febre e criaram
interessantes ideias sobre o funcionamento do nosso corpo, segundo a
pesquisadora de ciências humanas e assistência médica Sally Frampton,
historiadora da medicina da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
"Hoje,
nós sabemos: 'Oh, você tem febre, alguma coisa está acontecendo'", explica
ela. "Mas, para muitas pessoas do início do mundo moderno, até o século
19, a sensação era que a febre fosse a doença."
Os
gregos antigos tratavam a febre de todas as formas, desde a suspensão da
alimentação até a sangria. Estes dois métodos foram usados até o século 19 para
tentar baixar a febre.
A
grande mudança do nosso conhecimento sobre a febre, segundo Frampton, surgiu
com a teoria dos germes, que nos trouxe maior conhecimento sobre as infecções.
A febre, então, começou a ser considerada um sintoma, não uma doença em si.
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A teoria dos germes
Louis
Pasteur (1822-1895) foi o primeiro a publicar a teoria dos germes, em 1861,
identificando micro-organismos que invadem o nosso corpo como sendo a causa de
doenças.
O
cientista francês abriu o caminho para que pudéssemos compreender as infecções
microbianas como algo que podemos evitar com a higiene.
Em
1875, houve um surto de mortes de mães durante o parto em um hospital de Paris,
na França, devido à "febre puerperal" (hoje conhecida como infecção
pós-parto). Pasteur, então, propôs que a infecção era transmitida pelos médicos
e atendentes do hospital.
Ele
rapidamente orientou os médicos a lavar as mãos e esterilizar seus instrumentos
com o uso de calor.
Sabemos
atualmente que a febre faz parte da reação inata do corpo à infecção.
Todo o
mundo animal, tanto vertebrados de sangue quente quanto de sangue frio, sofre
calafrios causados pela febre, seguidos por suores pegajosos e incessantes. É o
sistema de alarme e ataque contra intrusos do nosso corpo.
A febre
sinaliza que patógenos e outros personagens hostis invadiram nosso corpo e que
estamos começando a lutar contra eles.
Por
mais desagradável que possa ser, a febre ajuda a nos livrarmos desses intrusos.
Mas, quando não é examinada, ela pode ser prejudicial.
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O que é a febre?
A febre
é geralmente caracterizada por temperatura corporal de cerca de 38 °C ou mais.
Ela pode ocorrer quando o nosso corpo reage a infecções, mas também pode ser
gerada por doenças autoimunes, doenças inflamatórias ou após a vacinação.
Quando
o nosso corpo reage à ameaça de um vírus ou micro-organismo patogênico, como
infecções fúngicas ou bacterianas, a nossa temperatura corporal aumenta.
Este é
um mecanismo importante para a nossa reação imunológica, pois faz com que o
corpo fique menos acolhedor para os patógenos nocivos. Eles têm dificuldade de
se reproduzir e desenvolver dentro de nós a essas temperaturas mais altas.
"O
corpo detecta algo estranho, como um vírus ou bactéria. O termostato, então,
sofre um pequeno ajuste para aumentar a temperatura até o nível em que a
resposta a essa ameaça seja mais eficiente", explica o professor de
imunofarmacologia Mauro Perretti, especialista em inflamações da Universidade
Queen Mary, em Londres.
Com
isso, "as células trabalharão melhor; as enzimas funcionarão melhor. É uma
reinicialização que, é claro, será transitória."
No
nosso corpo, existem janelas minúsculas entre o muito frio, o ideal e o muito
quente.
Quando
a nossa temperatura interna cai abaixo de 35 °C (o que é conhecido como
hipotermia), surgem calafrios, desarticulação da fala e respiração lenta.
No lado
oposto da escala, o aumento da temperatura corporal acima da faixa normal por
um período prolongado (hipertermia) pode ser perigoso e prejudicial para os
nossos sistemas internos, incluindo o sistema nervoso central, especialmente
quando ultrapassa 40 °C, podendo gerar alucinações, convulsões e até a morte.
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O lado bom da febre
A febre
envolve o aumento controlado do nosso termostato interno. Mas a hipertermia faz
com que a temperatura corporal aumente descontroladamente, sem o ajuste
termorregulador.
Se a
ameaça percebida pelo corpo for vencida, a febre abaixa.
O fim
de um período de febre surge quando o corpo eliminou a infecção com sucesso,
seja isoladamente ou com o apoio da medicina moderna, como antibióticos para
infecções bacterianas.
O lado
positivo da febre é que ela perdura por curto período, já que os muitos
sistemas do nosso corpo exigem o retorno ao nível adequado de cerca de 37 °C
para sua operação ideal.
A febre
é uma das bases da inflamação, que é a reação natural do nosso corpo a ameaças
como lesões ou infecções.
Ao lado
da dor, vermelhidão e edema (o acúmulo de fluido caracterizado por inchaço) e
da perda das funções normais, a febre ocorre nos sistemas e partes do corpo
afetadas, quando o corpo reage a essas ameaças.
Juntas,
essas reações garantem que o nosso corpo reaja adequadamente ao perigo, seja
ele um risco infeccioso ou não infeccioso, segundo Perretti.
As
crianças têm febre pelas mesmas razões dos adultos. Muitas vezes, elas estão
relacionadas a infecções virais ou bacterianas.
Mas
elas são mais susceptíveis à febre, em grande parte, porque levam mais tempo
para calibrar seu termostato interno.
Além
disso, nas crianças, o hipotálamo (a região do cérebro que produz os hormônios
que regulam a temperatura corporal) ainda está se acostumando a reagir aos
pirógenos — as substâncias que acionam a reação imunológica que gera o aumento
da temperatura.
Os
pirógenos se comunicam com o hipotálamo para elevar a nossa temperatura até um
nível em que os vírus e bactérias enfrentam dificuldades para sobreviver e se
reproduzir.
Esses
micróbios tendem a não se adaptar a temperaturas mais altas durante episódios
de febre, pois a febre não é benéfica para eles a longo prazo. Sua eficiência
para infectar organismos saudáveis, mais frios, seria reduzida.
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Benefícios que já duram milênios
Apesar
de tentarmos nos livrar da febre há séculos, os cientistas agora entendem que,
em muitas circunstâncias, seus benefícios podem superar os riscos.
Quando
uma pessoa tem febre, o aumento da temperatura pode ajudar as células
imunológicas, como os leucócitos, a reagir mais rapidamente à ameaça dos
patógenos. E a febre também pode beneficiar as reações celulares e bioquímicas
que fazem parte da reação inflamatória do corpo, segundo Perretti.
Além de
subir o termostato acima da temperatura que permite a proliferação dos
patógenos, como bactérias, o calor da febre funciona como sistema de alerta,
colocando em ação nossa equipe de vigilância interna, como as vias neurais e os
sistemas fisiológicos. Eles conversam entre si, estabelecendo o melhor plano de
ação.
Nossa
mudança de comportamento durante um período de febre também ajuda a carregar a
reação imunológica do corpo, explica Perretti.
Ao lado
de outros aspectos da luta do corpo contra a infecção, como a redução dos
níveis de ferro e zinco no sangue, redução do apetite e letargia geral, a febre
nos força a permanecer em repouso e recuperação.
Animais
diversos, como peixes e répteis, também elevam sua temperatura interna durante
a infecção para obter melhores resultados de sobrevivência.
Os
animais de sangue frio fazem isso alterando fisicamente seu ambiente para
climas mais quentes. Os peixes, por exemplo, nadam para águas mais quentes e os
lagartos tomam banho de sol.
Descobriu-se
que a febre oferece aos organismos, incluindo às pessoas, melhores chances de
sobreviver a infecções.
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Febre demais
Se os
nossos corpos forem incapazes de estabelecer uma reação inflamatória, como
febre, inchaço ou vermelhidão, não podemos proteger adequadamente o corpo
contra infecções.
Ainda
assim, no caso de febre e inflamações, "um pouco é bom, mas muito é
ruim", explica Perretti.
A febre
certamente pode ser perigosa. Altas temperaturas por muito tempo podem gerar
desidratação, pois o nosso corpo aumenta a produção de suor para nos resfriar.
Se a
nossa temperatura corporal ficar alta demais e permanecer acima de 40 °C por
muito tempo, nossos sistemas vitais deixam de funcionar corretamente. E um
estudo realizado em 2024 com camundongos concluiu que o excesso de calor pode
gerar danos ao DNA.
Outro
motivo de preocupação são as convulsões febris, que atingem principalmente as
crianças. São reações do corpo ao rápido aumento da temperatura interna,
normalmente durante o combate a infecções.
A causa
exata dessas convulsões não é totalmente conhecida. A maioria delas não costuma
causar danos, nem efeitos permanentes, mas é importante consultar um médico a
respeito.
As
complicações sérias ocorrem quando ignoramos a febre alta persistente, como
sinal de alerta de condições prejudiciais como meningite, pneumonia ou sepse.
Por
isso, o tratamento correto das infecções microbianas reduz a necessidade de
produção de pirógenos e ajusta o termostato do corpo, pois ele nos livra dos
corpos estranhos que o nosso sistema imunológico está combatendo.
A febre
é um instrumento poderoso para combater as infecções e nos proteger. Mas, às
vezes, pode ser mortal.
Um
desses casos é a hiperpirexia, a febre extremamente alta e sem controle. Esse
calor descontrolado pode gerar distúrbios no cérebro e até insuficiência de
alguns órgãos. Qualquer uma destas duas condições pode levar à morte.
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Devemos tratar da febre?
Já que
a febre normalmente nos ajuda a combater infecções, o que acontece quando
tentamos nos livrar dela? Certamente existem possíveis desvantagens.
Em
2021, uma análise da febre na era da pandemia de covid-19 concluiu que
"bloquear a febre pode ser prejudicial, pois ela, ao lado de outros
sintomas, evoluiu como defesa contra infecções".
Usar
medicações para reduzir o impacto da febre também pode ser prejudicial para a
população como um todo. Um estudo de 2014, por exemplo, concluiu que suprimir a
febre causada pela gripe pode aumentar o índice de transmissão da doença.
Isso
ocorre porque, se as pessoas infectadas simplesmente tratarem dos seus sintomas
de febre, elas retomarão rapidamente suas atividades diárias, indo ao trabalho
e se socializando. Com isso, elas transmitem mais a doença do que se ficassem
em casa, precisando descansar.
Portanto,
em caso de febre suave, em algumas circunstâncias, é melhor deixar que ela faça
o seu trabalho, segundo Mauro Perretti.
O
professor afirma que, teoricamente, podemos dar ao corpo 24 a 48 horas para
realizar a reação inflamatória necessária. Mas ele alerta que isso ainda pode
ser perigoso em algumas situações. Por isso, é preciso sempre consultar seu
médico, que poderá identificar o melhor tratamento para o seu cenário
específico.
Os
cientistas continuam estudando quando se deve tratar a febre e quando podemos
deixá-la se manifestar.
Mas, na
próxima vez em que você tiver febre, sentir calafrios e o suor pingar do seu
rosto, aproveite a oportunidade para se maravilhar com o sistema imunológico
trabalhando para proteger você de maiores danos. Afinal, ele é o resultado de
milênios de evolução.
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Importante:
Todo o
conteúdo desta reportagem é fornecido apenas como informação geral e não deverá
ser tratado como substituto ao aconselhamento de um médico ou outro
profissional de saúde. A BBC não é responsável por nenhum diagnóstico feito por
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Consulte sempre seu médico sobre qualquer preocupação com a sua saúde.
Fonte:
BBC Future

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