Bruno
Huberman: Gaza e Rio de Janeiro - duas faces da mesma guerra
Em meio
ao avanço das agressões dos Estados Unidos na América do Sul sob o pretexto do
combate ao narcotráfico e à inconstância do cessar-fogo em Gaza que ainda
provoca a morte de centenas de palestinos, uma ação policial realizada nesta
terça-feira, 28 de outubro, no Rio de Janeiro, provocou a morte de pelo menos
119 pessoas.
O
Brasil tem sua própria história de colonialismo, racismo e genocídio contra os
povos negros e indígenas — história que serve de justificativa para mais essa
chacina contra moradores de favelas cariocas. Não é necessária uma conjuntura
internacional para legitimar o massacre do povo negro brasileiro pelo seu
próprio Estado.
Contudo,
é impossível olhar para as imagens das mortes no Rio sem lembrar do genocídio
do povo palestino em Gaza — que já vitimou ao menos 80 mil pessoas — e do
avanço do imperialismo estadunidense sobre o nosso continente.
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Neoliberalismo e necropolítica: Gaza como laboratório da morte lucrativa
O
filósofo camaronês Achille Mbembe aponta que, no neoliberalismo, as vidas dos
povos racialmente subalternizados e periféricos — como os negros brasileiros e
os palestinos de Gaza — tornam-se cada vez mais descartáveis.
O
Estado neoliberal promove uma necropolítica, isto é, uma política de morte
voltada contra pessoas cujas vidas são consideradas indesejadas. A expansão
dessa necropolítica sobre camadas cada vez maiores das populações mundiais
tornadas supérfluas pelo capital neoliberal estaria constituindo o que Mbembe
chama de “devir negro do mundo”.
Em
outras palavras, cada vez mais povos — como os palestinos — experimentam o
destino historicamente reservado aos negros: escravidão e morte, como se
observou nesta semana no Rio de Janeiro.
As
vidas dos palestinos de Gaza foram tornadas descartáveis após a Intifada de
1987, quando Israel iniciou um processo de restrição de sua mobilidade como
tática de contrainsurgência para destruir o levante popular palestino que
resultaria, posteriormente, no processo de paz dos anos 1990.
As
classes dominantes israelenses decidiram que era preferível abrir mão da
exploração do trabalho dos palestinos de Gaza a deixar o país vulnerável à
mobilização dos trabalhadores palestinos em luta pela libertação nacional.
Tornar o povo palestino redundante era fundamental para a sobrevivência de
Israel como um Estado étnico judaico.
A
burguesia israelense passou, então, a importar trabalhadores da Rússia, China,
Tailândia, Filipinas e outros países, substituindo a mão de obra palestina e
descartando a população local.
O
confinamento de Gaza foi consolidado com o bloqueio total em 2005, quando o
território foi transformado em uma prisão a céu aberto, cercada por terra, ar e
mar. A partir de então, os persistentes palestinos passaram a resistir por meio
de foguetes caseiros que atravessavam os muros e atingiam, aleatoriamente,
localidades israelenses.
Israel
reagiu com brutalidade, realizando bombardeios aéreos com caças e drones de
última geração. O neoliberalismo — que expandiu a mercantilização de tudo —
ofereceu a Israel, no contexto da “guerra ao terror”, uma forma de transformar
em fonte de lucro a própria vida dos palestinos descartáveis de Gaza.
As
corporações de segurança israelenses, atuando em conjunto com empresas
estadunidenses e as forças armadas de ambos os países, passaram a testar
diversas tecnologias de vigilância e combate remoto sobre os palestinos. O
economista libanês Ali Kadri chama esse processo de “acumulação por
desperdício”.
As
guerras permanentes no Oriente Médio contra os povos árabes insurgentes e
considerados supérfluos — de Gaza ao Iraque — produzem não apenas mercadorias
militares testadas em campo, prontas para serem vendidas às forças policiais de
todo o mundo (como a Polícia Militar do Rio de Janeiro), mas também pilhas de
corpos de pessoas indesejadas e um rastro de destruição total.
Nessa
lógica de “acumulação por desperdício”, o desperdício de vidas contribui para a
compressão dos salários dos trabalhadores periféricos, enquanto a destruição
abre espaço para novas formas de acumulação através de projetos infinitos de
reconstrução da sua infraestrutura.
Os
territórios palestinos foram, assim, transformados em um laboratório global de
tecnologias de repressão, depois exportadas para conter os subalternos de
outros lugares — como os moradores das favelas cariocas.
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Do “terror” ao “tráfico”: a guerra aos subalternos e a banalização do genocídio
Nos
primeiros bombardeios israelenses sobre Gaza, em 2009, o número de mortos
ficava na casa das centenas; em pouco tempo, passou para os milhares. Em 2014,
Israel foi amplamente criticado por matar pouco mais de quatro mil palestinos
durante uma ofensiva de um mês. Já em 2023, nos primeiros meses do genocídio em
Gaza, os israelenses chegaram a matar cerca de mil palestinos por dia.
Aos
poucos, a morte de mais de cem palestinos enquanto esperavam ajuda humanitária
foi banalizada. As imagens de destruição tornaram-se naturais, e milhares de
assassinatos passaram a ser encarados como um fato cotidiano.
O
filósofo Vladimir Safatle chamou atenção para a dessensibilização provocada
pelo genocídio em Gaza, transmitido em tempo real pelos celulares. O genocídio
do povo negro brasileiro já é profundamente naturalizado. Contudo, Gaza pode
ter inaugurado um novo grau de indiferença diante da morte.
Sob os
governos de Joe Biden e Donald Trump, a lógica imperialista da guerra como
forma de gestão e acumulação nas periferias do capitalismo neoliberal em crise
permanente fez a necropolítica ampliar a escala dos massacres.
O
Oriente Médio — com as guerras no Iraque, Afeganistão, Iêmen, Palestina e Síria
— consolidou essa ordem fundada na destruição e na morte. O genocídio em Gaza
foi o resultado lógico da racionalidade da “guerra ao terror” somado à
capacidade militar israelense e o seu histórico desejo de eliminar os
palestinos.
Nesse
contexto, não é difícil imaginar que as classes dominantes brasileiras, que
desprezam as favelas e seus moradores — como mostra a obsessão do MBL em
“desfavelizar” o país —, tenham vislumbrado o dia em que poderiam promover o
mesmo nível de destruição realizado por Israel em Gaza.
Trump
reforçou esse desejo ao unir as “guerras” ao terror e às drogas para justificar
agressões imperialistas na América Latina, como ataques a embarcações e ameaças
a governantes da Colômbia e da Venezuela.
Ele
afirmou que os cartéis de drogas seriam o “Estado Islâmico do Ocidente”,
prometendo “erradicar” esses grupos criminosos. No Brasil, os EUA têm buscado
classificar o PCC e o Comando Vermelho como organizações “terroristas”, a fim
de facilitar intervenções diretas contra esses grupos.
A
extrema-direita nacional — representada pelos governadores Cláudio Castro (Rio
de Janeiro) e Tarcísio de Freitas (São Paulo) — apoia essa nova classificação,
que reforça o uso populista da violência e legitima possíveis intervenções
estadunidenses. O senador Flávio Bolsonaro chegou a defender o bombardeio da
Baía de Guanabara para conter supostas embarcações traficantes de drogas.
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Desumanização racial e a pedagogia da barbárie
Diante
do incentivo estadunidense ao uso irrestrito da força em Gaza — que resultou
numa escala de genocídio inédita desde o Holocausto —, era previsível o aumento
da brutalidade em outros lugares do mundo com histórico colonial, como o
Brasil.
Em São
Paulo, a polícia já vinha escalando sua violência, exemplificada pelas remoções
na favela do Moinho, que lembram o roubo de terras palestinas por colonos
israelenses. Essa escalada atingiu o auge com a chacina no Rio de Janeiro — a
maior da história brasileira.
Tanto
no Brasil quanto na Palestina, observamos a mesma desumanização das populações
subalternas como fundamento das ações genocidas. No Rio, os moradores negros
das favelas são classificados como bandidos, criminosos e traficantes; em Gaza,
os palestinos são rotulados de terroristas e fundamentalistas islâmicos.
Em
ambos os casos, essas racializações permitem matar impunemente. Os meios de
comunicação reforçam a desumanização ao ignorar os nomes e as histórias das
vítimas, reduzidas a números em pilhas de corpos.
Por
outro lado, há a mesma humanização dos promotores da barbárie — os policiais
cariocas e os soldados israelenses —, que são os únicos a ter rostos, nomes e
histórias contadas na grande mídia.
“De
vítima lá, só tivemos os policiais”, afirmou o governador Cláudio Castro.
“Estamos
lutando contra animais humanos e agimos de acordo”, declarou o ministro da
Defesa israelense, Yoav Gallant.
Além
disso, repete-se o mesmo discurso de “falhas operacionais” e “vítimas
colaterais” para justificar as ações genocidas.
A
contenção do tráfico de drogas e de grupos políticos insurgentes serve apenas
como pretexto para a promoção de guerras infinitas contra o povo para conter as
contradições provocadas pela crise permanente do capitalismo neoliberal. Tanto
a guerra às drogas quanto a guerra ao terror não fracassaram em seus
verdadeiros objetivos: o controle e o extermínio das populações indesejadas e
racialmente subalternas para preservar e viabilizar os lucros do grande
capital.
• A paz da miséria – enclosures
brasileiros. Por Valéria Guerra Reiter
“Ler
criticamente o mundo é um ato político-pedagógico; é inseparável do
pedagógico-político, ou seja, da ação política que envolve a organização de
grupos e de classes populares para intervir na reinvenção da sociedade.” Paulo
Freire
Os
direitos humanos são um conjunto de direitos inerentes a todos os seres
humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma,
religião ou qualquer outra condição. São direitos que garantem a dignidade
humana e a possibilidade de uma vida livre de opressão e discriminação.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada em 1948 pela
Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece os direitos humanos básicos que
devem ser respeitados por todos os países e indivíduos. A DUDH é um marco
fundamental na história dos direitos humanos, consolidando o conceito de que
todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Nascer
livre — para a população paupérrima — parece até uma ironia. Quando lembramos
de tantas injustiças sociais espalhadas em nossas cidades, recordamos que o
hábito da leitura no Brasil é precário, a começar pela quantidade de livrarias
no país. Se fizermos uma comparação, por exemplo, com a Argentina,
constataremos que apenas na cidade de Buenos Aires existem 734 livrarias,
segundo dados recentes.
O Rio
de Janeiro tem 144 livrarias em funcionamento, de acordo com informações de
dezembro de 2023. Esse número representa uma redução de 60 estabelecimentos em
relação às 204 existentes em 2017, devido ao fechamento de redes e aos efeitos
da pandemia. Apesar da diminuição, o Rio ainda mantém um acervo significativo,
especialmente no Centro, que conta com 43 livrarias, conforme dados de março de
2025.
Fica
claro que a demanda cultural e literária está em baixa na cidade-luz do Brasil,
o Rio de Janeiro. E, se fizermos um levantamento em todas as cidades
brasileiras, poderemos constatar que o grande gigante da América do Sul precisa
reformular seus vínculos e sua malha estrutural, já que a educação de verdade
está em crise. E não serão projetos assistencialistas ou medidas paliativas
invasivas que farão tal reformulação; muito pelo contrário, pois todo o estado
de desigualdade implantado nesta nação advém da colonialidade, que gerou
corrupção.
O
planejamento do capitalismo, após os burgos, se deu objetivamente para criar
uma casta de mendicantes e desvalidos, simplesmente para demonstrar, em doses
cavalares, como seria o novo mundo — um mundo em que a industrialização faria a
diferença em relação ao lucro. Camponeses foram atirados à condição de pedintes
e, depois, enforcados.
O
ludismo provou o quanto Karl Marx esteve certo em suas conjecturas e em seu
materialismo histórico: “A história de todas as sociedades até hoje existentes
é a história das lutas de classes.” Karl Marx ainda não havia nascido, e os
ludistas já faziam “marxismo”, ou seja, exerciam o direito de reagir, de não
capitular diante do status quo. Os ludistas da Inglaterra são muitas vezes
desprezados como tecnófobos excêntricos, mas, na realidade, tratava-se de um
corajoso movimento operário pré-marxista que dava prioridade às pessoas e à
natureza em detrimento da propriedade privada.
O
fenômeno dos enclosures fez brotar na Inglaterra um momento histórico liberal
que deu origem à miséria como alavanca das riquezas. No Brasil, dentro do
padrão organizacional político sistêmico, constatamos atos de tirania, como
revela a notícia a seguir:
“Os deputados estaduais aliados do governo
Cláudio Castro aprovaram, na tarde desta quarta-feira (22/10), na Alerj, o
substitutivo ao Projeto de Lei nº 6.035/2025. A proposta autoriza o governo do
estado a retirar do Rioprevidência os recursos provenientes de royalties e
participações especiais do petróleo para o pagamento da dívida pública do
estado com a União. Atualmente, esses recursos são destinados ao Fundo Único de
Previdência Social do Estado do Rio. Estima-se que cerca de R$ 5 bilhões possam
ser retirados do Rioprevidência.
A
oposição conseguiu aprovar uma emenda ao substitutivo, limitando a vigência da
lei até 31 de dezembro de 2026.
O Sepe
se posiciona contra a aprovação do projeto. Mesmo com a limitação conquistada
pela oposição, o governador, na prática, terá permissão para esvaziar o cofre
do Rioprevidência. O sindicato também pretende discutir com outras entidades de
servidores a possibilidade de recorrer ao Judiciário contra a medida.”
A
política hedionda de cercamento (enclosure) continua acontecendo, e o cerco é
feito contra a população mais vulnerável e explorada — professores, alunos,
aposentados, ou seja, o operariado em geral. É necessário que a sociedade
reaja, afinal, a paz da miséria é mortífera.
Fonte:
Palestina em Transe/Brasil 247

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