A
crise da mediação partidária
Este
texto pretende olhar de frente o arranjo político de 2025 no Brasil: como as
decisões são tomadas em Brasília, quem pauta, quem trava, quem executa, e qual
é o papel que nos cabe na sociedade. Mas antes, quero dar um passo atrás porque
sou de uma geração que desprezou a estrutura partidária, e é para essa geração
que escrevo.
Para
entender quem decide e o que podemos fazer, é preciso nomear as duas esferas e
a costura entre elas: “lá em cima”, a institucional, que reúne Executivo,
Congresso, Judiciário, cúpulas partidárias e o orçamento; “aqui embaixo”, a
social, onde estão bairros, locais de trabalho, sindicatos, igrejas, coletivos,
plataformas e movimentos.
Nessa
costura entram os partidos, não como fetiche institucional, mas como ferramenta
histórica de tradução: transformar conflito em disputa regrada, reunir demandas
em programas comparáveis, garantir a oposição institucionalizada como lugar
reconhecido para quem discorda, com voz no Parlamento e possibilidade real de
alternância, levar reivindicações às decisões de Estado e devolver prestação de
contas.
No
início da democracia moderna, “partido político” era sinônimo de facção, uma
ameaça à unidade da república e à virtude cívica. Herdando da tradição inglesa
o horror às dissensões, os fundadores dos Estados Unidos temiam que o conflito
organizado levasse à corrupção e à tirania, e por isso desenharam instituições
destinadas a dispersar o poder e evitar coalizões duradouras.
No
entanto, a prática mostrou-se mais forte que a teoria. Já na década de 1790, a
jovem república se dividia entre dois projetos inconciliáveis: de um lado, os
federalistas de Alexander Hamilton, defensores de um governo forte,
centralizado e voltado ao desenvolvimento econômico; de outro, os republicanos
de Thomas Jefferson, que viam na descentralização e na virtude agrária a
salvaguarda da liberdade.
Essa
polarização, longe de destruir o regime, acabou por estruturá-lo: ao organizar
a divergência em torno de programas e lideranças, os partidos converteram o
conflito em princípio de estabilidade. A eleição de 1800, em que Jefferson
sucedeu pacificamente John Adams, consagrou pela primeira vez a ideia de uma
oposição legítima, demonstrando que a alternância no poder podia ocorrer sem
ruptura institucional.
A
partir daí o que nascera como facção passou a ser reconhecido como instrumento
de representação, e a república americana inaugurou a forma moderna de partido:
não mais sinal de corrupção ou ambição particular, mas mecanismo de articulação
de interesses e de integração do dissenso no interior da ordem democrática.
Nos
primeiros anos da República, o Brasil não teve partidos no sentido moderno, mas
sim agrupamentos regionais que expressavam o poder das oligarquias locais. A
política era organizada em torno de alianças entre estados e coronéis,
sustentadas por redes clientelistas e pelo controle do voto, sem projetos
nacionais, oposição real ou debate programático.
A
Revolução de 1930 desarticulou esse sistema e inaugurou um longo período de
centralização sob Getúlio Vargas, em que o Estado substituiu os partidos como
mediador dos interesses sociais. Durante o Estado Novo, os partidos foram
extintos e, ainda que tenham voltado a existir formalmente após 1945, o período
seguinte de ditadura militar repetiu a exclusão da competição efetiva: entre
1964 e 1985, a Arena e o MDB não configuravam um sistema partidário autêntico,
pois a oposição não tinha possibilidade de alternância no poder.
Assim,
a organização partidária no Brasil pode ser reconhecida apenas em dois
períodos: de 1945 a 1964 e de 1989 em diante. No primeiro, o PTB representava
trabalhadores urbanos e sindicatos, o PSD articulava elites estaduais e o
aparelho administrativo, e a UDN expressava as classes médias com um discurso
liberal e moralizador.
No
segundo, após a redemocratização, o PT emergiu enraizado em sindicatos e
movimentos sociais, prometendo inclusão e redução de desigualdades, enquanto o
PSDB se consolidou entre quadros técnicos e classes médias urbanas, priorizando
estabilidade e reformas.
Entre
esses polos, a maioria das legendas manteve um funcionamento local, dependente
de prefeitos, governadores e bancadas parlamentares que negociavam apoio em
troca de recursos e cargos, perpetuando a lógica patrimonialista e regionalista
herdada do início da República.
Depois
da redemocratização, o sistema político brasileiro se organizou em torno de uma
engrenagem que equilibrava um Executivo com amplos poderes e um Congresso
fragmentado em dezenas de siglas. Para governar, o presidente precisava
construir uma base majoritária articulando apoios entre partidos de diferentes
orientações e tamanhos, o que exigia uma negociação contínua e
institucionalizada.
Ministérios,
estatais, comissões e relatorias tornaram-se moedas de troca legítimas, e a
liberação de verbas e emendas passou a integrar o funcionamento regular do
sistema. Essa engenharia, que Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de
coalizão”, era ao mesmo tempo frágil e sofisticada: garantia estabilidade e
continuidade de políticas, mas ao custo de compromissos sucessivos que diluíam
os projetos originais e retardavam decisões.
As
grandes reformas só avançavam quando conseguiam traduzir, em linguagem de
conciliação, a soma de interesses de uma maioria heterogênea, e o governo
acabava funcionando como mediador permanente entre forças que, sem ele,
dificilmente cooperariam.
Com o
passar do tempo, essa lógica de composição deixou de ser apenas um mecanismo de
governabilidade e se tornou o próprio modo de reprodução do sistema político. A
fronteira entre governo e oposição foi se tornando porosa, e o centro
parlamentar consolidou-se como o espaço decisivo da política nacional. Não
importava quem vencia a eleição: o núcleo real de poder era formado por grupos
e lideranças cuja lealdade não se definia por programas, mas pela capacidade de
participar da distribuição de recursos e cargos.
O
resultado foi um regime em que quase todos estavam, de alguma forma, dentro do
governo, e onde o conflito se expressava menos em disputas de projeto do que em
negociações de espaço. Essa cultura política de permanência e adaptação que
manteve o sistema funcionando e ao mesmo tempo bloqueou transformações
profundas.
A
partir dos anos 2000, a mediação partidária entrou em crise, refletindo um
esgotamento mais amplo das formas tradicionais de representação política. À
esquerda, esse processo foi marcado pela emergência de uma nova geração de
movimentos que rejeitava a lógica hierárquica dos partidos e sua distância em
relação às bases sociais. Inspirados pelas experiências altermundialistas e
pelos protestos contra a globalização, esses grupos passaram a apostar na
autonomia, na horizontalidade e na ação direta, buscando construir espaços de
decisão coletiva fora das instituições.
Assembleias,
redes de afinidade e ocupações tornaram-se formas privilegiadas de organização
e expressão política, em oposição à mediação eleitoral. No Brasil, essa cultura
política se consolidou nas lutas estudantis e urbanas dos anos 2000,
especialmente no ciclo de mobilizações pelo transporte público, que combinava
prática autônoma, crítica à representação e desconfiança do Estado. Essa
trajetória culminou em Junho de 2013, quando a recusa à mediação institucional,
já presente em movimentos locais e segmentados, se generalizou e tomou as ruas
em escala nacional, revelando tanto a potência quanto os limites de uma
política que, ao negar a forma partido, também perdeu o canal de transformação
institucional.
Ao
mesmo tempo, formou-se à direita uma rede de mobilização conservadora que
reagiu aos avanços dos novos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados
às pautas feminista, negra e LGBT, percebidos como ameaça à ordem moral e aos
valores tradicionais. Essa articulação começou de modo disperso, em espaços
religiosos, associações cívicas e grupos digitais, e foi encontrando coesão à
medida que as disputas culturais ganharam centralidade no debate público.
No
Brasil, esse ecossistema se consolidou ao longo dos anos 2010, impulsionado
pela expansão das redes sociais, pelo ativismo moral de lideranças religiosas e
pela convergência entre empresários, comunicadores e influenciadores digitais
que transformaram o ressentimento cultural em energia política.
O
processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, marcou o ponto de
virada dessa reorganização da direita, que passou a ocupar as ruas e a dominar
a linguagem da indignação. Nos anos seguintes, essa rede encontrou em Jair
Bolsonaro seu porta-voz e sua forma de atuação, combinando discurso
antipolítico, apelo moral e mobilização digital em torno da promessa de
restaurar a autoridade, a família e a nação.
Ao
mesmo tempo, formou-se à direita uma rede de mobilização conservadora que
reagiu aos avanços dos novos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados
às pautas feminista, negra e LGBT, percebidos como ameaça à ordem moral e aos
valores tradicionais. Essa articulação começou de modo disperso, em espaços
religiosos, associações cívicas e grupos digitais, e foi encontrando coesão à
medida que as disputas culturais ganharam centralidade no debate público.
No
Brasil, esse ecossistema se consolidou ao longo dos anos 2010, impulsionado
pela expansão das redes sociais, pelo ativismo moral de lideranças religiosas e
pela convergência entre empresários, comunicadores e influenciadores digitais
que transformaram o ressentimento cultural em energia política. O processo que
levou ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, marcou o ponto de virada dessa
reorganização da direita, que passou a ocupar as ruas e a dominar a linguagem
da indignação. Nos anos seguintes, essa rede encontrou em Jair Bolsonaro seu
porta-voz e sua forma de atuação, combinando discurso antipolítico, apelo moral
e mobilização digital em torno da promessa de restaurar a autoridade, a família
e a nação.
Diferente
do campo autônomo, que recusou se institucionalizar como partido, a direita
encontrou um canal estável de intermediação entre suas bases e o poder. O que
Marcos Nobre e o grupo do Cebrap chamam de Partido Digital Bolsonarista (PDB)
funciona como um circuito contínuo que articula redes sociais, igrejas,
influenciadores e parlamentares em torno de uma agenda moral e antipolítica.
As
pautas emergem das bases digitais e religiosas, ganham forma nas falas de
lideranças e influenciadores, transformam-se em pressão coordenada sobre o
Congresso e retornam às comunidades em forma de símbolos, discursos e
benefícios locais. Essa engrenagem substitui a estrutura territorial e
burocrática dos partidos tradicionais por uma rede de nós digitais e políticos
interligados, capazes de mobilizar diariamente a base e de operar dentro da
máquina estatal por meio do orçamento e das emendas parlamentares. O PDB
unifica, assim, a lógica de mobilização contínua típica das redes com a lógica
distributiva do sistema político, fundindo a capilaridade social da nova
direita com o poder orçamentário do velho centrão.
Esse
circuito elegeu Jair Bolsonaro em 2018. No governo, ele não montou uma base
estável nem um acordo de longo prazo. Preferiu negociar votação por votação,
terceirizando a articulação para chefes do Congresso e trocando apoio por
pedaços do orçamento, cargos e controle de relatorias. A lealdade deixou de
passar por partidos e passou a passar por entregas orçamentárias feitas
diretamente a cada deputado.
Duas
mudanças institucionais deram lastro a esse modo de negociar. Em 2015, a
Constituição passou a obrigar a execução das emendas individuais de cada
parlamentar, o que reduziu a dependência do governo para liberar esses recursos
e em 2019, essa obrigatoriedade foi estendida às emendas das bancadas
estaduais. Depois, entre 2020 e 2022, ganharam peso as emendas do relator,
apelidadas de orçamento secreto, que distribuíram grandes volumes com baixa
transparência até serem derrubadas pelo STF. Esses movimentos deslocaram o
centro do dinheiro para o Congresso e fortaleceram negociações caso a caso.
Assim,
hoje o Brasil opera sob três lógicas de interação entre sociedade e Estado: a
programática do PT, que preserva um projeto, mas perdeu grande parte da
dimensão participativa de sua gênese; a carismática-digital do PDB, que
mobiliza identidades e emoções por redes e lideranças; e a clientelista das
siglas que dominam o Congresso, organizadas por verbas e posições.
O
antigo polo do PSDB, que estruturava a disputa programática, praticamente
desapareceu como referência nacional após a crise, deixando o PT sem
contraparte equivalente. Além disso, a relação entre Executivo e Legislativo
deixou de se resolver no atacado, por negociação com chefes de bancada, e
passou a acontecer no varejo, voto a voto, em torno de entregas individuais.
Quando
assumiu seu terceiro mandato, Lula tentou restaurar o arranjo que havia
garantido governabilidade nas décadas anteriores. Ampliou o ministério para
incluir partidos do centro, reabriu canais de diálogo com conselhos e
movimentos sociais, reativou a coordenação de líderes no Congresso e apostou em
acordos de longo alcance, como a reforma tributária.
Mas o
contexto era outro. As regras do jogo mudaram: com a consolidação das emendas
obrigatórias e o fim das emendas do relator, agora mais fiscalizadas, cada
deputado passou a dispor de maior autonomia orçamentária, podendo negociar
diretamente com o Executivo e com suas bases locais. O resultado foi um sistema
ainda mais fragmentado, em que a lealdade partidária perdeu peso diante do
poder individual de barganha.
A base
social à esquerda enfraqueceu, o PSDB foi substituído à direita pelo Partido
Digital Bolsonarista, e o presidencialismo de coalizão perdeu sua capacidade de
produzir estabilidade. Nesse novo cenário, em que a mediação partidária se
mostra exaurida e o poder se dispersa entre milhares de mandatos autônomos, a
questão que se impõe é como a sociedade civil – sindicatos, organizações e
movimentos – pode voltar a ter voz e capacidade de influir nas decisões que
moldam o país.
Fonte:
Por Márcio Moretto Ribeiro, em A Terra é Redonda

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