sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A crise da mediação partidária

Este texto pretende olhar de frente o arranjo político de 2025 no Brasil: como as decisões são tomadas em Brasília, quem pauta, quem trava, quem executa, e qual é o papel que nos cabe na sociedade. Mas antes, quero dar um passo atrás porque sou de uma geração que desprezou a estrutura partidária, e é para essa geração que escrevo.

Para entender quem decide e o que podemos fazer, é preciso nomear as duas esferas e a costura entre elas: “lá em cima”, a institucional, que reúne Executivo, Congresso, Judiciário, cúpulas partidárias e o orçamento; “aqui embaixo”, a social, onde estão bairros, locais de trabalho, sindicatos, igrejas, coletivos, plataformas e movimentos.

Nessa costura entram os partidos, não como fetiche institucional, mas como ferramenta histórica de tradução: transformar conflito em disputa regrada, reunir demandas em programas comparáveis, garantir a oposição institucionalizada como lugar reconhecido para quem discorda, com voz no Parlamento e possibilidade real de alternância, levar reivindicações às decisões de Estado e devolver prestação de contas.

No início da democracia moderna, “partido político” era sinônimo de facção, uma ameaça à unidade da república e à virtude cívica. Herdando da tradição inglesa o horror às dissensões, os fundadores dos Estados Unidos temiam que o conflito organizado levasse à corrupção e à tirania, e por isso desenharam instituições destinadas a dispersar o poder e evitar coalizões duradouras.

No entanto, a prática mostrou-se mais forte que a teoria. Já na década de 1790, a jovem república se dividia entre dois projetos inconciliáveis: de um lado, os federalistas de Alexander Hamilton, defensores de um governo forte, centralizado e voltado ao desenvolvimento econômico; de outro, os republicanos de Thomas Jefferson, que viam na descentralização e na virtude agrária a salvaguarda da liberdade.

Essa polarização, longe de destruir o regime, acabou por estruturá-lo: ao organizar a divergência em torno de programas e lideranças, os partidos converteram o conflito em princípio de estabilidade. A eleição de 1800, em que Jefferson sucedeu pacificamente John Adams, consagrou pela primeira vez a ideia de uma oposição legítima, demonstrando que a alternância no poder podia ocorrer sem ruptura institucional.

A partir daí o que nascera como facção passou a ser reconhecido como instrumento de representação, e a república americana inaugurou a forma moderna de partido: não mais sinal de corrupção ou ambição particular, mas mecanismo de articulação de interesses e de integração do dissenso no interior da ordem democrática.

Nos primeiros anos da República, o Brasil não teve partidos no sentido moderno, mas sim agrupamentos regionais que expressavam o poder das oligarquias locais. A política era organizada em torno de alianças entre estados e coronéis, sustentadas por redes clientelistas e pelo controle do voto, sem projetos nacionais, oposição real ou debate programático.

A Revolução de 1930 desarticulou esse sistema e inaugurou um longo período de centralização sob Getúlio Vargas, em que o Estado substituiu os partidos como mediador dos interesses sociais. Durante o Estado Novo, os partidos foram extintos e, ainda que tenham voltado a existir formalmente após 1945, o período seguinte de ditadura militar repetiu a exclusão da competição efetiva: entre 1964 e 1985, a Arena e o MDB não configuravam um sistema partidário autêntico, pois a oposição não tinha possibilidade de alternância no poder.

Assim, a organização partidária no Brasil pode ser reconhecida apenas em dois períodos: de 1945 a 1964 e de 1989 em diante. No primeiro, o PTB representava trabalhadores urbanos e sindicatos, o PSD articulava elites estaduais e o aparelho administrativo, e a UDN expressava as classes médias com um discurso liberal e moralizador.

No segundo, após a redemocratização, o PT emergiu enraizado em sindicatos e movimentos sociais, prometendo inclusão e redução de desigualdades, enquanto o PSDB se consolidou entre quadros técnicos e classes médias urbanas, priorizando estabilidade e reformas.

Entre esses polos, a maioria das legendas manteve um funcionamento local, dependente de prefeitos, governadores e bancadas parlamentares que negociavam apoio em troca de recursos e cargos, perpetuando a lógica patrimonialista e regionalista herdada do início da República.

Depois da redemocratização, o sistema político brasileiro se organizou em torno de uma engrenagem que equilibrava um Executivo com amplos poderes e um Congresso fragmentado em dezenas de siglas. Para governar, o presidente precisava construir uma base majoritária articulando apoios entre partidos de diferentes orientações e tamanhos, o que exigia uma negociação contínua e institucionalizada.

Ministérios, estatais, comissões e relatorias tornaram-se moedas de troca legítimas, e a liberação de verbas e emendas passou a integrar o funcionamento regular do sistema. Essa engenharia, que Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de coalizão”, era ao mesmo tempo frágil e sofisticada: garantia estabilidade e continuidade de políticas, mas ao custo de compromissos sucessivos que diluíam os projetos originais e retardavam decisões.

As grandes reformas só avançavam quando conseguiam traduzir, em linguagem de conciliação, a soma de interesses de uma maioria heterogênea, e o governo acabava funcionando como mediador permanente entre forças que, sem ele, dificilmente cooperariam.

Com o passar do tempo, essa lógica de composição deixou de ser apenas um mecanismo de governabilidade e se tornou o próprio modo de reprodução do sistema político. A fronteira entre governo e oposição foi se tornando porosa, e o centro parlamentar consolidou-se como o espaço decisivo da política nacional. Não importava quem vencia a eleição: o núcleo real de poder era formado por grupos e lideranças cuja lealdade não se definia por programas, mas pela capacidade de participar da distribuição de recursos e cargos.

O resultado foi um regime em que quase todos estavam, de alguma forma, dentro do governo, e onde o conflito se expressava menos em disputas de projeto do que em negociações de espaço. Essa cultura política de permanência e adaptação que manteve o sistema funcionando e ao mesmo tempo bloqueou transformações profundas.

A partir dos anos 2000, a mediação partidária entrou em crise, refletindo um esgotamento mais amplo das formas tradicionais de representação política. À esquerda, esse processo foi marcado pela emergência de uma nova geração de movimentos que rejeitava a lógica hierárquica dos partidos e sua distância em relação às bases sociais. Inspirados pelas experiências altermundialistas e pelos protestos contra a globalização, esses grupos passaram a apostar na autonomia, na horizontalidade e na ação direta, buscando construir espaços de decisão coletiva fora das instituições.

Assembleias, redes de afinidade e ocupações tornaram-se formas privilegiadas de organização e expressão política, em oposição à mediação eleitoral. No Brasil, essa cultura política se consolidou nas lutas estudantis e urbanas dos anos 2000, especialmente no ciclo de mobilizações pelo transporte público, que combinava prática autônoma, crítica à representação e desconfiança do Estado. Essa trajetória culminou em Junho de 2013, quando a recusa à mediação institucional, já presente em movimentos locais e segmentados, se generalizou e tomou as ruas em escala nacional, revelando tanto a potência quanto os limites de uma política que, ao negar a forma partido, também perdeu o canal de transformação institucional.

Ao mesmo tempo, formou-se à direita uma rede de mobilização conservadora que reagiu aos avanços dos novos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados às pautas feminista, negra e LGBT, percebidos como ameaça à ordem moral e aos valores tradicionais. Essa articulação começou de modo disperso, em espaços religiosos, associações cívicas e grupos digitais, e foi encontrando coesão à medida que as disputas culturais ganharam centralidade no debate público.

No Brasil, esse ecossistema se consolidou ao longo dos anos 2010, impulsionado pela expansão das redes sociais, pelo ativismo moral de lideranças religiosas e pela convergência entre empresários, comunicadores e influenciadores digitais que transformaram o ressentimento cultural em energia política.

O processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, marcou o ponto de virada dessa reorganização da direita, que passou a ocupar as ruas e a dominar a linguagem da indignação. Nos anos seguintes, essa rede encontrou em Jair Bolsonaro seu porta-voz e sua forma de atuação, combinando discurso antipolítico, apelo moral e mobilização digital em torno da promessa de restaurar a autoridade, a família e a nação.

Ao mesmo tempo, formou-se à direita uma rede de mobilização conservadora que reagiu aos avanços dos novos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados às pautas feminista, negra e LGBT, percebidos como ameaça à ordem moral e aos valores tradicionais. Essa articulação começou de modo disperso, em espaços religiosos, associações cívicas e grupos digitais, e foi encontrando coesão à medida que as disputas culturais ganharam centralidade no debate público.

No Brasil, esse ecossistema se consolidou ao longo dos anos 2010, impulsionado pela expansão das redes sociais, pelo ativismo moral de lideranças religiosas e pela convergência entre empresários, comunicadores e influenciadores digitais que transformaram o ressentimento cultural em energia política. O processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, marcou o ponto de virada dessa reorganização da direita, que passou a ocupar as ruas e a dominar a linguagem da indignação. Nos anos seguintes, essa rede encontrou em Jair Bolsonaro seu porta-voz e sua forma de atuação, combinando discurso antipolítico, apelo moral e mobilização digital em torno da promessa de restaurar a autoridade, a família e a nação.

Diferente do campo autônomo, que recusou se institucionalizar como partido, a direita encontrou um canal estável de intermediação entre suas bases e o poder. O que Marcos Nobre e o grupo do Cebrap chamam de Partido Digital Bolsonarista (PDB) funciona como um circuito contínuo que articula redes sociais, igrejas, influenciadores e parlamentares em torno de uma agenda moral e antipolítica.

As pautas emergem das bases digitais e religiosas, ganham forma nas falas de lideranças e influenciadores, transformam-se em pressão coordenada sobre o Congresso e retornam às comunidades em forma de símbolos, discursos e benefícios locais. Essa engrenagem substitui a estrutura territorial e burocrática dos partidos tradicionais por uma rede de nós digitais e políticos interligados, capazes de mobilizar diariamente a base e de operar dentro da máquina estatal por meio do orçamento e das emendas parlamentares. O PDB unifica, assim, a lógica de mobilização contínua típica das redes com a lógica distributiva do sistema político, fundindo a capilaridade social da nova direita com o poder orçamentário do velho centrão.

Esse circuito elegeu Jair Bolsonaro em 2018. No governo, ele não montou uma base estável nem um acordo de longo prazo. Preferiu negociar votação por votação, terceirizando a articulação para chefes do Congresso e trocando apoio por pedaços do orçamento, cargos e controle de relatorias. A lealdade deixou de passar por partidos e passou a passar por entregas orçamentárias feitas diretamente a cada deputado.

Duas mudanças institucionais deram lastro a esse modo de negociar. Em 2015, a Constituição passou a obrigar a execução das emendas individuais de cada parlamentar, o que reduziu a dependência do governo para liberar esses recursos e em 2019, essa obrigatoriedade foi estendida às emendas das bancadas estaduais. Depois, entre 2020 e 2022, ganharam peso as emendas do relator, apelidadas de orçamento secreto, que distribuíram grandes volumes com baixa transparência até serem derrubadas pelo STF. Esses movimentos deslocaram o centro do dinheiro para o Congresso e fortaleceram negociações caso a caso.

Assim, hoje o Brasil opera sob três lógicas de interação entre sociedade e Estado: a programática do PT, que preserva um projeto, mas perdeu grande parte da dimensão participativa de sua gênese; a carismática-digital do PDB, que mobiliza identidades e emoções por redes e lideranças; e a clientelista das siglas que dominam o Congresso, organizadas por verbas e posições.

O antigo polo do PSDB, que estruturava a disputa programática, praticamente desapareceu como referência nacional após a crise, deixando o PT sem contraparte equivalente. Além disso, a relação entre Executivo e Legislativo deixou de se resolver no atacado, por negociação com chefes de bancada, e passou a acontecer no varejo, voto a voto, em torno de entregas individuais.

Quando assumiu seu terceiro mandato, Lula tentou restaurar o arranjo que havia garantido governabilidade nas décadas anteriores. Ampliou o ministério para incluir partidos do centro, reabriu canais de diálogo com conselhos e movimentos sociais, reativou a coordenação de líderes no Congresso e apostou em acordos de longo alcance, como a reforma tributária.

Mas o contexto era outro. As regras do jogo mudaram: com a consolidação das emendas obrigatórias e o fim das emendas do relator, agora mais fiscalizadas, cada deputado passou a dispor de maior autonomia orçamentária, podendo negociar diretamente com o Executivo e com suas bases locais. O resultado foi um sistema ainda mais fragmentado, em que a lealdade partidária perdeu peso diante do poder individual de barganha.

A base social à esquerda enfraqueceu, o PSDB foi substituído à direita pelo Partido Digital Bolsonarista, e o presidencialismo de coalizão perdeu sua capacidade de produzir estabilidade. Nesse novo cenário, em que a mediação partidária se mostra exaurida e o poder se dispersa entre milhares de mandatos autônomos, a questão que se impõe é como a sociedade civil – sindicatos, organizações e movimentos – pode voltar a ter voz e capacidade de influir nas decisões que moldam o país.

 

Fonte: Por Márcio Moretto Ribeiro, em A Terra é Redonda

 

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