Luiz
Marques: Imaginação revolucionária
Os Exercícios
espirituais, de santo Inácio de Loyola (1491-1556), buscam preparar
cenários que recendem um espetáculo teatral. Na primeira semana, “a composição
consistirá em ver com os olhos da imaginação o lugar físico onde se encontra
aquilo que desejo contemplar”. Na segunda, o exercício inicia com uma visão
panorâmica. “Ver e considerar como as três pessoas divinas veem a face e a
redondez da terra e as gentes que vivem na cegueira e como morrem e descem ao
inferno”.
O
fundador da Companhia de Jesus não liga para o fato de que o Deus, de Moisés,
não tolera ser representado em imagem. O catolicismo da Contrarreforma abusa
das sugestões emotivas na arte sacra, enquanto para Lutero é o que vislumbra na
visita a Roma (1511) que choca seu ascetismo monacal comparado ao esplendor e
luxo da Corte Papal; mais do que as famosas “Indulgências”.
José
Saramago (1922-2010) também usa a palavra no Ensaio sobre a cegueira para
falar sobre o egoísmo e a responsabilidade dos que ainda têm olhos para
enxergar os problemas sociais, criticar as desigualdades várias e o desprezo
atávico aos pobres – aporofobia. No quadro do totalitarismo da mercadoria se
articula a humanização das coisas e a coisificação do humano. Cuidado com o
andor.
O
escritor português tem o mérito de situar a personagem feminina – mulher do
médico – no papel de guia daqueles que estão “cegos” para o real. Trata-se de
um alegórico reconhecimento à posição de vanguarda assumida pelo feminismo, que
não é um simples acréscimo vindo de fora. É uma parte integrante do autêntico
projeto de transformação do establishment capitalista, na
atualidade.
Quem
são então aqueles que vivem na escuridão? Para o religioso renascentista, são
os que caem no pecado. Para o romancista moderno, os resignados às engrenagens
do consumo e os que extraem a mais-valia alheia. Num a imaginação se dirige
para a salvação individual; noutro incita a libertação coletiva dos grilhões da
alienação e da apatia políticas. Como um cineasta, com as fotografias em
movimento, tanto é possível pedir perdão por respirar quanto disputar o lídimo
direito a ter direitos.
“L’imagination
au pouvoir” (“A imaginação ao poder”) é inscrita pelos estudantes do Maio
de 1968 nos muros de Paris para substituir as forças conservadoras, na
administração das universidades e no governo francês. Acredita-se que imaginar
seja suficiente para riscar a burocracia do mapa-múndi. Les enfants
terribles ecoam o idealismo hegeliano: libertar a consciência para
mudar a sociedade, apesar de a práxis desmistificar a normativa. A realidade
concreta se encarrega de demonstrar que a única forma de emancipação é por via
da autoemancipação, sem uma tutela cesarista ou populista.
Com
efeito, chama atenção a capacidade do capitalismo absorver os protestos e
regurgitá-los com narrativas comerciais de terror e ficção científica. Filmes
que utilizam recursos técnicos milionários não separam a humanidade em
categorias geracionais; agora catalogam os padrões civilizacionais. Nunca o
passado ficou tão para trás, como nos últimos quarenta anos. A meteórica
ascensão do neoliberalismo, a ciranda financeira, as inovações tecnológicas
digitais e os magos algoritmos das Big Techs reinventam as regras
do jogo para o futuro distante caber no celular, guardado no bolso.
As
obras clássicas de Mary Shelley (Frankenstein, 1818) e Jules Verne (A
volta ao mundo em 80 dias, 1872), que despertam um fascínio mesclado com um
medo logo que lançadas, hoje pertencem à estante de qualquer escola do Jardim
de Infância. O temor é que, com a inflação da imagética pré-fabricada, se
confine nas nuvens o poder da imaginação. Esse receio paira sobre o debate
acerca dos limites éticos e morais do mercado na aplicação extensiva da
Inteligência artificial. O antídoto está em fazer a IA acessível a todos, na
condição de uma propriedade pública inalienável da espécie.
A
imaginação exerce função importante, não demiúrgica, na luta política. Com
fórmulas inusitadas de enfrentamento ao autoritarismo, recicla modalidades de
manifestações nas ruas e redimensiona cultural e afetivamente demandas
socioeconômicas, ao pregar a diminuição na jornada de trabalho para que cada um
potencialize o convívio com a família, os amigos e se dedique ao lazer e outras
atividades. Como na canção dos Titãs: “A gente não quer só comida /
a gente quer bebida, diversão balé / a gente não quer só comida / a gente quer
a vida como a vida quer”. Não à toa, o hit single estoura nas
rádios durante as discussões preliminares para a promulgação da Constituição de
1988.
Quando
a Rede Globo põe no ar o icônico programa televisivo Fantástico (1973),
com a proposta de reunir jornalismo, entretenimento e dramaturgia o título soa
superlativo ao que entrega. A nave espacial Apolo 11 já tinha profanado a Lua.
O poderoso exército dos Estados Unidos era derrotado no Vietnã. Emílio
Garrastazu Médici impunha “anos de chumbo” no território nacional. Nada podia
ser mais extraordinário do que a verdade sob férrea censura na TV. Nascia o
quietismo das pessoas na sala de jantar, aos domingos. Para piorar, o
Corinthians amargava décadas de notáveis tristezas.
As
sociedades desigualitárias são erguidas com base em hierarquias sociais
rígidas. A intervenção dos partidos no leque de esquerda é o que faz pesar a
balança em favor dos setores vulneráveis. A Suécia, tida como igualitária, era
uma nação injusta até adotar uma série de medidas redistributivas. Uma vontade
política cidadã calcada na mobilização e conscientização dos trabalhadores a
torna uma referência cidadã para a Europa central. Evitando, aqui, uma acusação
de paroquialismo não focamos incontestáveis e simbólicos avanços sob a
liderança positiva do presidente Lula e do PT.
Para
evocar o nome de um livro sobre política, literatura e cinema no México, a
pressão conformista interdita a “imaginação revolucionária”. Reduz uma corrente
de esquerda – o anarquismo – a prefixo de um anarcocapitalismo serviçal do
imperialismo estadunidense. Em democracias inconclusas toca ao povo a tarefa de
suprir as lacunas que afastam por léguas os ideais do Estado de bem-estar
social e a sociedade formada por produtores associados livremente,
reconciliados com o ambiente natural.
Resgatar
a trajetória dos oprimidos e explorados, os vencidos na trama do progresso,
passa por valorizar os sonhos, qual os surrealistas. Em Marxismo
modernidade utopia, Michael Löwy acerta ao postular que “devemos dar ao
mesmo tempo rédea livre à imaginação criativa, aos devaneios, à esperança ativa
e ao espírito visionário vermelho”. A modificação do sistema hegemônico não
rima com o fetichismo das startups. É mentira que a
tecnologia, por si, conduza a uma ordem social da fraternidade sem alterar a
essência mercantil das desequilibradas relações entre capital e trabalho.
No Dicionário
dos negacionismos no Brasil, coordenado por José Szwako e José Luiz Ratton,
falta o verbete “negacionismo da mudança”. As dissonâncias cognitivas convergem
na defesa do status quo. O liberalismo crê em um teto
limítrofe de possibilidades que param na economia de mercado e na democracia
representativa. A crença exprime a atitude refratária de uma ideologia démodé que
teme a organização das classes laboriosas e sua conversão em um sujeito
participativo da história, construído no bojo da revolução democrática e
socialista. O bom combate forja um novo mundo.
¨
A miséria presente. Por Bruno Boncompagno
Muito
pressupõe simultaneidade. Deixemos de lado o “ao mesmo tempo”. Tanta coisa
acontecendo por aí, agora, esforço-me para centrar meu pensamento. Setembro
caminhei na penumbra. Agosto foi bom, pena que terminou. Outubro, terra das
novas lembranças. Ano acabando, e que ano. Não sei nem como começar textos.
Testo inúmeras frases, associações. Algumas fogem, outras se escondem. Por isso
a maneira fácil é introduzir o clima, o humor, um jogo de palavra: artífices.
O fim
pelo menos é próximo. Vemos no horizonte. Estrelas capotando de sono. Sol
alaranjado de desgraça. Nuvens tóxicas, bebendo a poluição. Uma humanidade
mórbida. Quanta felicidade já dediquei nestes textos. A paciência, porém, anda
embriagada. Gravita entre a euforia e a desolação. Sua constante é o fracasso,
interminável nas profundezas destas palavras.
Afinal,
temos ou não poder sobre o futuro? Assistia ontem um filme do John Woo, Better
Tommorrow”. Uma frase distinta, olhando para buda: “-Você acredita em Deus?
– Eu sou Deus… Quem consegue controlar seu próprio futuro é Deus – Há situações
incontroláveis. – Nessas existem duas opções: perder ou ganhar”.
A mesma
discussão presente numa crônica de Charles Bukowski, presente no Notas
de um velho safado. Penso que está presente em tudo, desde o renascimento
italiano, traduzido pelos conceitos de fortuna e virtú de
Nicolau Maquiavel, até a predisposição dos reels no instagram,
quando nos deparamos com uma sequência virtuosa de memes e nos dizemos
afortunados pela sorte.
Brincadeiras
fazem parte. A nossa história vai ser escrita pela inteligência artificial.
Historiadores atualmente são substituídos por ignorantes que fazem uma pesquisa
de três segundos no Chat e se imaginam conhecedores do assunto. É
impressionante o quão absurdo se tornaram as conversas cotidianas.
Independentemente da idade, as pessoas se perdem na ilusão do conhecimento.
Dizem cobras e lagartos, sem se importar com os fatos, nem com o próximo. A
falta de respeito é cada vez mais generalizada e, concomitantemente, gente
estúpida ganha relevância.
Eis os
espólios da liberdade de expressão. Todos podem manufaturar acontecimentos, se
utilizando da inteligência artificial para embelezarem suas mentiras. Podem
compartilhar desinformações. Podem expressar, sem pena alguma, seus
preconceitos mais pútridos e nefastos, como se fosse mais um passeio no parque.
A
verdade é que essa geração de adultos, que tiveram acesso à internet, redes
sociais e afins, na casa dos trinta ou quarenta anos, não perceberam o quão
ridículo são suas atitudes no meio digital. Não reconhecem o quanto suas vidas
foram pioradas pelo uso obstinado de celulares e computadores. Se acham
inteligentes por natureza; por terem vivido numa época “sem mimimi” ou
internet, na qual todos podiam falar o que queriam e ninguém se ofendia (sic).
O
fenômeno é deveras interessante. Deixaram de ler desde que introduziram tais
aparatos massificadamente. Os dados brasileiros não mentem: a média de livros
lidos por ano (per capita) é inferior a um. Agora, façamos uma conta rápida: a
população brasileira tem uma maioria maior de 25 anos. Portanto, quem pesa mais
na conta são vocês, gerações mais velhas, que deixaram o Brasil do jeito que
está para nós, jovens.
A
ignorância só existe enquanto, na contraparte, existir e subsistir a
arrogância. A dinâmica é simples: esses velhos que deixaram de estudar sobre os
temas correntes no mundo aumentaram exponencialmente o quanto falam entre si
nas redes sociais; a polarização e a degradação do discurso, consequente da
ausência de informações úteis, só encontradas em livros e assimiladas com o
devido tempo reflexivo – impossível no aceleradíssimo espaço das redes –,
causam uma insegurança crescente dentro deles.
Há aqui
uma bifurcação: o adulto pode notar tamanha esquisitice e deixar de lado sua
ignorância, voltando ao espaço público que havia isolado, estudando e escutando
respeitosamente o próximo; ou, perceberá o quão menor está se tornando e, a
partir daí, aceita um destino mesquinho, pequeno, alimentando unicamente por
arrogância, que o cega.
A
segunda alternativa é a mais comum. São inúmeros vetores que influenciam o
processo decisório. Todavia, não podemos subestimar a estupidez humana. Ainda
mais num país como o Brasil, no qual a elite econômica é, em suma maioria,
iletrada, aculturada, gananciosa e tem horror à espécie. Os mais ricos são os
primeiros a reclamarem da “falta de educação do povo”, enquanto roubam o futuro
dessa nação, escutam uma gama de músicas indiferenciáveis (sempre no hype do
momento), sem ler um livro que não tenha sido escrito por outro CEO ou rico da
faria lima; sem conhecimento algum sobre a história brasileira ou
internacional, e de valores nitidamente desumanos.
Eis o
simples: se aqueles com mais tempo livre não procuram se educar sobre a vida,
podemos fechar o caderno e pararmos de analisar o tempo presente da sociedade
brasileira. Nosso povo é esmagado. Ganham o mínimo possível para sobreviverem.
Nossos professores recebem uma vergonha pelo árduo trabalho feito, além de
serem constantemente desrespeitados e humilhados.
O
transporte público, a saúde, os serviços governamentais foram depredados por
uma agenda liberal, que quer a privatização por um único motivo: querem que o
povo sirva como escravos, para sempre. Como escutei um dia desses: o Estado não
deve ser assistencialista…
Trabalham
incansavelmente, seis dias por semana, demoram mais de três horas para irem e
voltarem do trabalho e no final do dia estão tão cansados que só aguentam ficar
no celular. Essa é a realidade da maioria do povo brasileiro, que nos últimos
40 anos não teve chances reais de ascenderem socialmente por via da educação e
do trabalho honrado. Daí escuto de ricos que o problema está nessa juventude
“viciada” em funk, em aposta, e almejam a vida dos influenciadores.
Lógico,
há enormes problemas sociais que devem ser solucionados para ontem, como o
crime organizado, as apostas, a lavagem de dinheiro, a corrupção. Porém,
sejamos francos, quem mais lucra nessa história está sentado num escritório
gelado na fria lima, não na favela. O filho desse bandido estuda nos Estados
Unidos, fará um MBA e se tornará executivo em algum fundo na Faria Lima.
Esse
filho, tal como o pai, nunca lerá algo decente, não irá atrás de conhecimentos
culturais fora do amplo paulistano, ou seja: do Beach Tennis, do Golf, dos
bares superfaturados e daquela escrotidão à mostra para todos observarem.
Há
certo erotismo nessa situação. Essa classe quer demonstrar sua escrotidão, sua
falta de escrúpulos, a ausência de solidariedade e compaixão. Como no
filme O discreto charme da burguesia do diretor espanhol Luis
Buñuel, a classe rica brasileira, parasitária, rentista, não tem medo de
mostrar em público o quão desconectados estão da realidade humana no geral.
Continuam
andando de jatos, comprando carros de superluxo, bolsas de superluxo, viajando
para fora semanalmente, torrando dinheiro em mercadorias absurdas,
completamente absurdas. Continuam privilegiando um pensamento “ocidental”,
liberal, que quer o menor estado possível pois essa é a atitude “racional” dos
brancos europeus. Não pagam seus impostos, contratando escritórios bilionários
que fazem uma “consultoria tributária”, para manejar da melhor forma possível
os gastos. Mandam seus recursos para fora. Isso tudo sem nunca ter pego num
livro na vida.
Isso
que mais me impressiona. Como podem continuar sendo tão rasos. São assim desde
que começaram os tempos modernos, mas havia ainda, na França por exemplo, um
culto à ciência, ao intelecto, à modernidade. Mesmo no século XVIII as coisas
funcionavam numa maneira mais harmoniosa. Essa classe sempre dependeu do
sofrimento alheio para seu benefício privado.
Mas
esse capitalismo tardio metamorfoseou as próprias vontades destes indivíduos.
Querem agora o fim da espécie humana. Se acham escolhidos, diferentes dos
demais. A tendência natural deste sistema em que vivemos é a miséria coletiva,
para o superluxo de pouquíssimos, cada vez mais concentrados, como uma ficção
científica distópica.
Como no
livro Não verás país nenhum de Ignácio de Loyola Brandão, o
Brasil está cada vez mais paupérrimo. Intencionam destruir as florestas que
restam. Terras férteis são roubadas por grileiros e legalizadas por um estado
sequestrado por interesses privados. A qualidade de vida das pessoas piora a
cada ano que passa. Enquanto isso, os super-ricos continuam se igualando aos
europeus, falando menos português, se isolando culturalmente de nós e, melhor,
achando tudo isso uma farra. O deserto do livro, o êxodo capitalista, a falta
de bons empregos, uma mídia e uma indústria de entretenimento cada vez mais
pobre em conteúdo e cultura.
Essa
realidade ficcional, ao passar das páginas, se torna presente aos olhos do
interlocutor. E quem devia estar ao lado do povo, que nasceu com boas condições
e tem conhecimento da realidade alheia, prefere lutar ao lado do inimigo,
vestindo suas roupas, repetindo suas frases, imitando o sotaque, os termos em
inglês, sendo tão ignorante quanto.
Essa
traição é facilmente notada nas faculdades. O sistema escolhido por Fernando
Collor e depois por Fernando Henrique Cardoso, seguido pelo governo Lula, a
saber, o neoliberalismo, não deu certo em nenhum lugar do mundo. Apenas
aprofundou desigualdades, piorou as condições de 90% da população, e só causa
miséria.
Miséria
material e miséria intelectual. Minha geração não consegue pensar no futuro. Só
olham para o próprio umbigo. Não são capazes de refletirem longamente,
calmamente, sem correrem para a primeira resposta que sai da boca de um rico.
Consomem, diariamente, tiktoks, jogam jogos de celular, coisas aceleradíssimas,
cada vez mais rápidas, extorquindo do ser a capacidade crítica.
Acordem,
pois já é tarde demais.
Fonte:
A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário