quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Luiz Marques: Imaginação revolucionária

Os Exercícios espirituais, de santo Inácio de Loyola (1491-1556), buscam preparar cenários que recendem um espetáculo teatral. Na primeira semana, “a composição consistirá em ver com os olhos da imaginação o lugar físico onde se encontra aquilo que desejo contemplar”. Na segunda, o exercício inicia com uma visão panorâmica. “Ver e considerar como as três pessoas divinas veem a face e a redondez da terra e as gentes que vivem na cegueira e como morrem e descem ao inferno”.

O fundador da Companhia de Jesus não liga para o fato de que o Deus, de Moisés, não tolera ser representado em imagem. O catolicismo da Contrarreforma abusa das sugestões emotivas na arte sacra, enquanto para Lutero é o que vislumbra na visita a Roma (1511) que choca seu ascetismo monacal comparado ao esplendor e luxo da Corte Papal; mais do que as famosas “Indulgências”.

José Saramago (1922-2010) também usa a palavra no Ensaio sobre a cegueira para falar sobre o egoísmo e a responsabilidade dos que ainda têm olhos para enxergar os problemas sociais, criticar as desigualdades várias e o desprezo atávico aos pobres – aporofobia. No quadro do totalitarismo da mercadoria se articula a humanização das coisas e a coisificação do humano. Cuidado com o andor.

O escritor português tem o mérito de situar a personagem feminina – mulher do médico – no papel de guia daqueles que estão “cegos” para o real. Trata-se de um alegórico reconhecimento à posição de vanguarda assumida pelo feminismo, que não é um simples acréscimo vindo de fora. É uma parte integrante do autêntico projeto de transformação do establishment capitalista, na atualidade.

Quem são então aqueles que vivem na escuridão? Para o religioso renascentista, são os que caem no pecado. Para o romancista moderno, os resignados às engrenagens do consumo e os que extraem a mais-valia alheia. Num a imaginação se dirige para a salvação individual; noutro incita a libertação coletiva dos grilhões da alienação e da apatia políticas. Como um cineasta, com as fotografias em movimento, tanto é possível pedir perdão por respirar quanto disputar o lídimo direito a ter direitos.

L’imagination au pouvoir” (“A imaginação ao poder”) é inscrita pelos estudantes do Maio de 1968 nos muros de Paris para substituir as forças conservadoras, na administração das universidades e no governo francês. Acredita-se que imaginar seja suficiente para riscar a burocracia do mapa-múndi. Les enfants terribles ecoam o idealismo hegeliano: libertar a consciência para mudar a sociedade, apesar de a práxis desmistificar a normativa. A realidade concreta se encarrega de demonstrar que a única forma de emancipação é por via da autoemancipação, sem uma tutela cesarista ou populista.

Com efeito, chama atenção a capacidade do capitalismo absorver os protestos e regurgitá-los com narrativas comerciais de terror e ficção científica. Filmes que utilizam recursos técnicos milionários não separam a humanidade em categorias geracionais; agora catalogam os padrões civilizacionais. Nunca o passado ficou tão para trás, como nos últimos quarenta anos. A meteórica ascensão do neoliberalismo, a ciranda financeira, as inovações tecnológicas digitais e os magos algoritmos das Big Techs reinventam as regras do jogo para o futuro distante caber no celular, guardado no bolso.

As obras clássicas de Mary Shelley (Frankenstein, 1818) e Jules Verne (A volta ao mundo em 80 dias, 1872), que despertam um fascínio mesclado com um medo logo que lançadas, hoje pertencem à estante de qualquer escola do Jardim de Infância. O temor é que, com a inflação da imagética pré-fabricada, se confine nas nuvens o poder da imaginação. Esse receio paira sobre o debate acerca dos limites éticos e morais do mercado na aplicação extensiva da Inteligência artificial. O antídoto está em fazer a IA acessível a todos, na condição de uma propriedade pública inalienável da espécie.

A imaginação exerce função importante, não demiúrgica, na luta política. Com fórmulas inusitadas de enfrentamento ao autoritarismo, recicla modalidades de manifestações nas ruas e redimensiona cultural e afetivamente demandas socioeconômicas, ao pregar a diminuição na jornada de trabalho para que cada um potencialize o convívio com a família, os amigos e se dedique ao lazer e outras atividades. Como na canção dos Titãs: “A gente não quer só comida / a gente quer bebida, diversão balé / a gente não quer só comida / a gente quer a vida como a vida quer”. Não à toa, o hit single estoura nas rádios durante as discussões preliminares para a promulgação da Constituição de 1988.

Quando a Rede Globo põe no ar o icônico programa televisivo Fantástico (1973), com a proposta de reunir jornalismo, entretenimento e dramaturgia o título soa superlativo ao que entrega. A nave espacial Apolo 11 já tinha profanado a Lua. O poderoso exército dos Estados Unidos era derrotado no Vietnã. Emílio Garrastazu Médici impunha “anos de chumbo” no território nacional. Nada podia ser mais extraordinário do que a verdade sob férrea censura na TV. Nascia o quietismo das pessoas na sala de jantar, aos domingos. Para piorar, o Corinthians amargava décadas de notáveis tristezas.

As sociedades desigualitárias são erguidas com base em hierarquias sociais rígidas. A intervenção dos partidos no leque de esquerda é o que faz pesar a balança em favor dos setores vulneráveis. A Suécia, tida como igualitária, era uma nação injusta até adotar uma série de medidas redistributivas. Uma vontade política cidadã calcada na mobilização e conscientização dos trabalhadores a torna uma referência cidadã para a Europa central. Evitando, aqui, uma acusação de paroquialismo não focamos incontestáveis e simbólicos avanços sob a liderança positiva do presidente Lula e do PT.

Para evocar o nome de um livro sobre política, literatura e cinema no México, a pressão conformista interdita a “imaginação revolucionária”. Reduz uma corrente de esquerda – o anarquismo – a prefixo de um anarcocapitalismo serviçal do imperialismo estadunidense. Em democracias inconclusas toca ao povo a tarefa de suprir as lacunas que afastam por léguas os ideais do Estado de bem-estar social e a sociedade formada por produtores associados livremente, reconciliados com o ambiente natural.

Resgatar a trajetória dos oprimidos e explorados, os vencidos na trama do progresso, passa por valorizar os sonhos, qual os surrealistas. Em Marxismo modernidade utopia, Michael Löwy acerta ao postular que “devemos dar ao mesmo tempo rédea livre à imaginação criativa, aos devaneios, à esperança ativa e ao espírito visionário vermelho”. A modificação do sistema hegemônico não rima com o fetichismo das startups. É mentira que a tecnologia, por si, conduza a uma ordem social da fraternidade sem alterar a essência mercantil das desequilibradas relações entre capital e trabalho.

No Dicionário dos negacionismos no Brasil, coordenado por José Szwako e José Luiz Ratton, falta o verbete “negacionismo da mudança”. As dissonâncias cognitivas convergem na defesa do status quo. O liberalismo crê em um teto limítrofe de possibilidades que param na economia de mercado e na democracia representativa. A crença exprime a atitude refratária de uma ideologia démodé que teme a organização das classes laboriosas e sua conversão em um sujeito participativo da história, construído no bojo da revolução democrática e socialista. O bom combate forja um novo mundo.

¨      A miséria presente. Por Bruno Boncompagno

Muito pressupõe simultaneidade. Deixemos de lado o “ao mesmo tempo”. Tanta coisa acontecendo por aí, agora, esforço-me para centrar meu pensamento. Setembro caminhei na penumbra. Agosto foi bom, pena que terminou. Outubro, terra das novas lembranças. Ano acabando, e que ano. Não sei nem como começar textos. Testo inúmeras frases, associações. Algumas fogem, outras se escondem. Por isso a maneira fácil é introduzir o clima, o humor, um jogo de palavra: artífices.

O fim pelo menos é próximo. Vemos no horizonte. Estrelas capotando de sono. Sol alaranjado de desgraça. Nuvens tóxicas, bebendo a poluição. Uma humanidade mórbida. Quanta felicidade já dediquei nestes textos. A paciência, porém, anda embriagada. Gravita entre a euforia e a desolação. Sua constante é o fracasso, interminável nas profundezas destas palavras.

Afinal, temos ou não poder sobre o futuro? Assistia ontem um filme do John Woo, Better Tommorrow”. Uma frase distinta, olhando para buda: “-Você acredita em Deus? – Eu sou Deus… Quem consegue controlar seu próprio futuro é Deus – Há situações incontroláveis. – Nessas existem duas opções: perder ou ganhar”.

A mesma discussão presente numa crônica de Charles Bukowski, presente no Notas de um velho safado. Penso que está presente em tudo, desde o renascimento italiano, traduzido pelos conceitos de fortuna e virtú de Nicolau Maquiavel, até a predisposição dos reels no instagram, quando nos deparamos com uma sequência virtuosa de memes e nos dizemos afortunados pela sorte.

Brincadeiras fazem parte. A nossa história vai ser escrita pela inteligência artificial. Historiadores atualmente são substituídos por ignorantes que fazem uma pesquisa de três segundos no Chat e se imaginam conhecedores do assunto. É impressionante o quão absurdo se tornaram as conversas cotidianas. Independentemente da idade, as pessoas se perdem na ilusão do conhecimento. Dizem cobras e lagartos, sem se importar com os fatos, nem com o próximo. A falta de respeito é cada vez mais generalizada e, concomitantemente, gente estúpida ganha relevância.

Eis os espólios da liberdade de expressão. Todos podem manufaturar acontecimentos, se utilizando da inteligência artificial para embelezarem suas mentiras. Podem compartilhar desinformações. Podem expressar, sem pena alguma, seus preconceitos mais pútridos e nefastos, como se fosse mais um passeio no parque.

A verdade é que essa geração de adultos, que tiveram acesso à internet, redes sociais e afins, na casa dos trinta ou quarenta anos, não perceberam o quão ridículo são suas atitudes no meio digital. Não reconhecem o quanto suas vidas foram pioradas pelo uso obstinado de celulares e computadores. Se acham inteligentes por natureza; por terem vivido numa época “sem mimimi” ou internet, na qual todos podiam falar o que queriam e ninguém se ofendia (sic).

O fenômeno é deveras interessante. Deixaram de ler desde que introduziram tais aparatos massificadamente. Os dados brasileiros não mentem: a média de livros lidos por ano (per capita) é inferior a um. Agora, façamos uma conta rápida: a população brasileira tem uma maioria maior de 25 anos. Portanto, quem pesa mais na conta são vocês, gerações mais velhas, que deixaram o Brasil do jeito que está para nós, jovens.

A ignorância só existe enquanto, na contraparte, existir e subsistir a arrogância. A dinâmica é simples: esses velhos que deixaram de estudar sobre os temas correntes no mundo aumentaram exponencialmente o quanto falam entre si nas redes sociais; a polarização e a degradação do discurso, consequente da ausência de informações úteis, só encontradas em livros e assimiladas com o devido tempo reflexivo – impossível no aceleradíssimo espaço das redes –, causam uma insegurança crescente dentro deles.

Há aqui uma bifurcação: o adulto pode notar tamanha esquisitice e deixar de lado sua ignorância, voltando ao espaço público que havia isolado, estudando e escutando respeitosamente o próximo; ou, perceberá o quão menor está se tornando e, a partir daí, aceita um destino mesquinho, pequeno, alimentando unicamente por arrogância, que o cega.

A segunda alternativa é a mais comum. São inúmeros vetores que influenciam o processo decisório. Todavia, não podemos subestimar a estupidez humana. Ainda mais num país como o Brasil, no qual a elite econômica é, em suma maioria, iletrada, aculturada, gananciosa e tem horror à espécie. Os mais ricos são os primeiros a reclamarem da “falta de educação do povo”, enquanto roubam o futuro dessa nação, escutam uma gama de músicas indiferenciáveis (sempre no hype do momento), sem ler um livro que não tenha sido escrito por outro CEO ou rico da faria lima; sem conhecimento algum sobre a história brasileira ou internacional, e de valores nitidamente desumanos.

Eis o simples: se aqueles com mais tempo livre não procuram se educar sobre a vida, podemos fechar o caderno e pararmos de analisar o tempo presente da sociedade brasileira. Nosso povo é esmagado. Ganham o mínimo possível para sobreviverem. Nossos professores recebem uma vergonha pelo árduo trabalho feito, além de serem constantemente desrespeitados e humilhados.

O transporte público, a saúde, os serviços governamentais foram depredados por uma agenda liberal, que quer a privatização por um único motivo: querem que o povo sirva como escravos, para sempre. Como escutei um dia desses: o Estado não deve ser assistencialista…

Trabalham incansavelmente, seis dias por semana, demoram mais de três horas para irem e voltarem do trabalho e no final do dia estão tão cansados que só aguentam ficar no celular. Essa é a realidade da maioria do povo brasileiro, que nos últimos 40 anos não teve chances reais de ascenderem socialmente por via da educação e do trabalho honrado. Daí escuto de ricos que o problema está nessa juventude “viciada” em funk, em aposta, e almejam a vida dos influenciadores.

Lógico, há enormes problemas sociais que devem ser solucionados para ontem, como o crime organizado, as apostas, a lavagem de dinheiro, a corrupção. Porém, sejamos francos, quem mais lucra nessa história está sentado num escritório gelado na fria lima, não na favela. O filho desse bandido estuda nos Estados Unidos, fará um MBA e se tornará executivo em algum fundo na Faria Lima.

Esse filho, tal como o pai, nunca lerá algo decente, não irá atrás de conhecimentos culturais fora do amplo paulistano, ou seja: do Beach Tennis, do Golf, dos bares superfaturados e daquela escrotidão à mostra para todos observarem.

Há certo erotismo nessa situação. Essa classe quer demonstrar sua escrotidão, sua falta de escrúpulos, a ausência de solidariedade e compaixão. Como no filme O discreto charme da burguesia do diretor espanhol Luis Buñuel, a classe rica brasileira, parasitária, rentista, não tem medo de mostrar em público o quão desconectados estão da realidade humana no geral.

Continuam andando de jatos, comprando carros de superluxo, bolsas de superluxo, viajando para fora semanalmente, torrando dinheiro em mercadorias absurdas, completamente absurdas. Continuam privilegiando um pensamento “ocidental”, liberal, que quer o menor estado possível pois essa é a atitude “racional” dos brancos europeus. Não pagam seus impostos, contratando escritórios bilionários que fazem uma “consultoria tributária”, para manejar da melhor forma possível os gastos. Mandam seus recursos para fora. Isso tudo sem nunca ter pego num livro na vida.

Isso que mais me impressiona. Como podem continuar sendo tão rasos. São assim desde que começaram os tempos modernos, mas havia ainda, na França por exemplo, um culto à ciência, ao intelecto, à modernidade. Mesmo no século XVIII as coisas funcionavam numa maneira mais harmoniosa. Essa classe sempre dependeu do sofrimento alheio para seu benefício privado.

Mas esse capitalismo tardio metamorfoseou as próprias vontades destes indivíduos. Querem agora o fim da espécie humana. Se acham escolhidos, diferentes dos demais. A tendência natural deste sistema em que vivemos é a miséria coletiva, para o superluxo de pouquíssimos, cada vez mais concentrados, como uma ficção científica distópica.

Como no livro Não verás país nenhum de Ignácio de Loyola Brandão, o Brasil está cada vez mais paupérrimo. Intencionam destruir as florestas que restam. Terras férteis são roubadas por grileiros e legalizadas por um estado sequestrado por interesses privados. A qualidade de vida das pessoas piora a cada ano que passa. Enquanto isso, os super-ricos continuam se igualando aos europeus, falando menos português, se isolando culturalmente de nós e, melhor, achando tudo isso uma farra. O deserto do livro, o êxodo capitalista, a falta de bons empregos, uma mídia e uma indústria de entretenimento cada vez mais pobre em conteúdo e cultura.

Essa realidade ficcional, ao passar das páginas, se torna presente aos olhos do interlocutor. E quem devia estar ao lado do povo, que nasceu com boas condições e tem conhecimento da realidade alheia, prefere lutar ao lado do inimigo, vestindo suas roupas, repetindo suas frases, imitando o sotaque, os termos em inglês, sendo tão ignorante quanto.

Essa traição é facilmente notada nas faculdades. O sistema escolhido por Fernando Collor e depois por Fernando Henrique Cardoso, seguido pelo governo Lula, a saber, o neoliberalismo, não deu certo em nenhum lugar do mundo. Apenas aprofundou desigualdades, piorou as condições de 90% da população, e só causa miséria.

Miséria material e miséria intelectual. Minha geração não consegue pensar no futuro. Só olham para o próprio umbigo. Não são capazes de refletirem longamente, calmamente, sem correrem para a primeira resposta que sai da boca de um rico. Consomem, diariamente, tiktoks, jogam jogos de celular, coisas aceleradíssimas, cada vez mais rápidas, extorquindo do ser a capacidade crítica.

Acordem, pois já é tarde demais.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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