A
urgência de cuidar de quem cuida
“Trabalhar
na saúde te ensinou a salvar vidas, menos a sua”. A frase ecoa o esgotamento
silencioso de milhares de profissionais que, diariamente, sustentam o sistema
de saúde com o corpo e com a alma. No imaginário coletivo, o profissional de
saúde é símbolo de abnegação e força. Contudo, por trás do jaleco e da postura
resiliente, há histórias de exaustão, ansiedade, depressão e perda de sentido.
A
formação em saúde ensina protocolos, técnicas e condutas éticas, mas raramente
ensina o autocuidado. Aprender a lidar com o sofrimento alheio, sem espaço para
processar o próprio, é uma das marcas da cultura profissional no setor. O
cuidado, que deveria ser um ato relacional e humanizador, muitas vezes se
transforma em mecanismo de alienação.
Discute-se
aqui como a estrutura organizacional, a cultura do heroísmo e a precarização do
trabalho em saúde contribuem para o colapso emocional e ético de quem cuida.
O
cuidado, na tradição filosófica e ética, é entendido como uma atitude de
atenção, responsabilidade e solidariedade para com o outro. O filósofo alemão
Martin Heidegger via no “cuidar” uma dimensão constitutiva do ser humano,
enquanto o sanitarista brasileiro José Ricardo Ayres o compreende como prática
relacional, que articula técnica, ética e afeto.
Contudo,
o modo como o cuidado é institucionalizado nas organizações de saúde
frequentemente o transforma em trabalho mecânico e exaustivo, mediado por
protocolos, metas e indicadores de produtividade. Essa redução do cuidado a uma
técnica gera o que Ayres chama de “empobrecimento do encontro clínico”, que é
quando o sujeito deixa de ser reconhecido como humano para se tornar um caso,
um número, uma tarefa.
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O paradoxo do cuidado: entre a vocação e o sacrifício
Nesse
contexto, o profissional de saúde passa a viver o paradoxo de cuidar do outro
enquanto se desconecta de si. A doação constante, sem reciprocidade simbólica
ou reconhecimento institucional, leva ao desgaste físico e psíquico. A ética do
cuidado é, então, atravessada pela lógica do sacrifício.
Em
1992, Dejours definiu o sofrimento ético como aquele que emerge quando o
trabalhador sabe o que seria o melhor a fazer, mas encontra barreiras que o
impedem de agir segundo seus valores. Em hospitais e unidades de saúde
sobrecarregadas, o profissional se vê obrigado a atender rapidamente, negar
acolhimento, ou omitir gestos de humanidade em nome da eficiência.
Esse
descompasso entre o ideal vocacional e a realidade institucional corrói o
sentido do trabalho. O sofrimento ético, quando não é nomeado nem
compartilhado, transforma-se em sofrimento patogênico: uma dor muda que se
converte em fadiga crônica, apatia e burnout.
A
invisibilidade do sofrimento do cuidador é reforçada pela cultura do heroísmo.
Espera-se que o profissional seja incansável, resiliente, forte. Admitir o
cansaço ou o medo é visto como fraqueza. Essa cultura produz o silenciamento da
dor e impede a construção de redes de apoio.
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Burnout e o colapso emocional da linha de frente
A
síndrome de burnout foi reconhecida pela OMS (2019) como um fenômeno
ocupacional resultante de estresse crônico não administrado. Entre
profissionais de saúde, ela se manifesta por exaustão emocional,
despersonalização e perda de realização profissional.
Pesquisas
brasileiras mostram prevalências de burnout entre 25% e 60% em categorias como
enfermagem e medicina (Lopes et al., 2019; Silva et al., 2021). Durante a
pandemia de COVID-19, a sobrecarga e o medo ampliaram o adoecimento psíquico.
Médicos relataram insônia, ataques de pânico e sentimentos de impotência;
enfermeiros desenvolveram quadros depressivos e ideação suicida (Souza et al.,
2022).
A
lógica produtivista do trabalho em saúde (metas, controle de tempo,
precarização) reforça esse colapso. O tempo do cuidado humano não cabe no tempo
da gestão neoliberal. O trabalhador se vê obrigado a atender 40 pacientes por
turno, a preencher planilhas em vez de conversar, a suportar agressões e perdas
sem espaço de escuta.
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O corpo que adoece: sofrimento, gênero e desigualdade
O
adoecimento dos trabalhadores da saúde não é neutro: tem gênero, raça e classe.
Mulheres representam mais de 70% da força de trabalho em saúde no Brasil,
segundo o IBGE de 2023, concentradas em funções de cuidado direto, como
enfermagem, limpeza e acolhimento.
Essas
funções são historicamente desvalorizadas, associadas ao “instinto feminino” e
à ideia de vocação — o que legitima baixos salários e longas jornadas. Assim, o
cuidado é atravessado por desigualdades estruturais.
As
trabalhadoras vivem o duplo fardo do cuidado profissional e doméstico, muitas
vezes sem apoio. A precarização é mais intensa entre mulheres negras, que
enfrentam jornadas mais longas e menor reconhecimento (Oliveira, 2022).
O corpo
cuidador, nesse contexto, se torna território de exaustão. A saúde de quem
cuida é sacrificada no altar da moral do dever.
Apesar
do cenário adverso, o cuidado também pode ser um ato de resistência. Para
Foucault (1988), o “cuidado de si” é uma prática ética e política: conhecer-se,
escutar-se e cuidar do próprio corpo são gestos de liberdade. No campo da saúde
coletiva, cuidar de si é um modo de reapropriar-se do sentido do trabalho e de
reconstituir vínculos de solidariedade.
Essa
reconstrução passa por três dimensões interdependentes: 1) Subjetiva: o
profissional precisa legitimar suas emoções, reconhecer seus limites e
abandonar o ideal de perfeição. A escuta terapêutica, o descanso e o lazer não
são luxos, mas formas de autopreservação; 2) Coletiva: a saúde mental não se
reconstrói isoladamente. Grupos de escuta, rodas de conversa e espaços de apoio
entre equipes podem transformar o sofrimento em potência compartilhada; 3)
Institucional e política: é urgente que políticas públicas de saúde do
trabalhador sejam efetivamente implementadas — com redução de jornada, apoio
psicológico e valorização salarial. A humanização da gestão é parte do cuidado.
Cuidar
de si, portanto, não é um gesto individualista, mas uma ação política contra a
lógica que transforma o trabalhador em recurso descartável.
Daí,
surgem as políticas públicas e o desafio da saúde do trabalhador. O Programa
Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSST) e a Política
Nacional de Humanização (PNH) são marcos importantes, mas ainda
insuficientemente implementados. Falta transversalidade e continuidade entre os
níveis de gestão.
A
literatura (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997; Paim, 2006) mostra que o
modelo biomédico de gestão do trabalho continua a prevalecer, priorizando metas
e resultados em detrimento do bem-estar do trabalhador.
É
necessário reconhecer que a saúde dos profissionais é parte da qualidade do
cuidado. Um profissional exausto não pode cuidar com empatia; um sistema que
adoece seus trabalhadores é estruturalmente insustentável.
Propor
políticas de cuidado ao cuidador implica repensar a própria ideia de saúde como
bem coletivo, e não como mercadoria ou indicador de produtividade.
Trabalhar
na saúde te ensinou a salvar vidas — mas o sistema, tal como está, te impede de
salvar a sua. Esse paradoxo traduz a crise ética e existencial que atravessa o
trabalho em saúde. Entre o ideal do cuidado e a realidade da precarização, o
trabalhador se vê dividido, adoecido e, muitas vezes, silenciado.
O
cuidado, no entanto, continua sendo força transformadora. É possível
reconstruí-lo a partir do reconhecimento da vulnerabilidade como parte do
humano. Salvar vidas deve incluir salvar quem salva — cuidar de quem cuida. O
futuro da saúde depende de romper o ciclo do sacrifício e instaurar o cuidado
como prática recíproca, afetiva e política.
Reaprender
a cuidar de si é, talvez, o gesto mais radical de resistência.
Fonte:
Por Luís Paulo Souza e Souza, em Outra Saúde

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