ONU
afirma estar 'horrorizada' com megaoperação policial no Rio de Janeiro
O
Conselho de Direitos Humanos da ONU rechaçou a megaoperação policial em curso
nos Complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, nesta
terça-feira (28/10). As Nações Unidas pedem que o episódio seja investigado de
forma “rápida e eficaz”.
“Estamos
horrorizados com a operação policial em andamento nas favelas do Rio de
Janeiro, que, segundo relatos, já resultou na morte de mais de 60 pessoas,
incluindo 4 policiais”, afirmou em publicação no X.
A ação,
deflagrada pelo governador do estado do Rio, Cláudio Castro (PL), já é
considerada a mais letal da história do estado e resultou, até o momento, em 64
mortes e 81 prisões.
“Lembramos
às autoridades suas obrigações perante o direito internacional dos direitos
humanos e instamos investigações rápidas e eficazes”, afirmou a ONU. Em
entrevista a repórteres em Genebra, o porta-voz do escritório de Direitos
Humanos, Rupert Colville, reiterou: “estamos profundamente perturbados com os
assassinatos”, informa The Guardian.
“Lembramos
às autoridades brasileiras que o uso da força deve ser aplicado somente quando
estritamente necessário, e que devem sempre respeitar os princípios da
legalidade, da precaução, da necessidade e da proporcionalidade”, acrescentou,
ao destacar que “a força letal deve ser usada como último recurso e somente em
casos em que haja ameaça iminente à vida ou ferimento grave.”
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‘Massacre’
A
megaoperação teve ampla cobertura na imprensa mundial que destacou o grau de
violência, a dimensão da ação policial e o histórico de enfrentamento armado no
Rio.
Sob a
manchete “Brasil: pelo menos 60 mortos no pior dia de violência do Rio, em meio
a operações policiais em favelas”, o britânico The Guardian afirmou que o Rio
está “em guerra”, mencionando as imagens chocantes de algumas vítimas que
circularam nas redes sociais.
A
reportagem destaca que “policiais e seus apoiadores na imprensa sensacionalista
carioca celebraram a missão como um ataque essencial às quadrilhas de
traficantes que há décadas usam as favelas como base”; e ouve vários
especialistas em direitos humanos. Entre eles, o pesquisador Pedro Paulo Santos
Silva, pesquisador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Cidadania do
Rio, que afirmou: “é extermínio — não há outra maneira de descrever. Foi um
massacre.”
O
português Publico também destacou a letalidade da operação e apontou que o uso
de drones por parte do Comando Vermelho. “Levada a cabo por cerca de 2500
membros das polícias militar e civil, a operação foi descrita pelo governo como
a maior já realizada contra o Comando Vermelho. À chegada das forças de
segurança, na madrugada desta terça-feira, os membros do CV utilizaram drones
para lançar granadas sobre a polícia, obstruindo também as ruas para evitar a
aproximação policial”, afirma o texto.
A
francesa RFI, sob o título “Cenário da guerra no Rio de Janeiro: dezenas de
mortos em operação antidrogas“, afirma que “operações policiais pesadas são
comuns no Rio, principal polo turístico do Brasil, especialmente nas favelas,
bairros pobres e densamente povoados, frequentemente dominados por traficantes
de drogas”.
A
reportagem destaca que foram mobilizados 2.500 agentes, dois helicópteros, 32
blindados e 12 veículos de demolição e enfatiza a declaração das Nações Unidas.
Lembra também que, “em 2024, aproximadamente 700 pessoas morreram durante
operações policiais no Rio, ou quase duas por dia.”
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‘Cenas de Guerra’
O
argentino Clarín traz a manchete “Cenas de guerra no Rio de Janeiro: pelo menos
60 mortos e mais de 80 presos em megaoperação em duas favelas“, destacando uso
de drones pelo Comando Vermelho. A reportagem lembra que se trata de “uma das
organizações criminosas mais antigas e conhecidas do Brasil”, surgida nas
prisões do Rio na década de 1970.
A
reportagem destaca a postagem do deputado e pastor evangélico Henrique Vieira
no X, denunciando que o governo estadual do Rio de Janeiro “trata a favela como
território inimigo, com licença para atirar e matar”. Clarín informa que, em
2020, o Supremo Tribunal Federal impôs algumas restrições às operações nas
favelas, mas que a medida foi suspensa este ano pela Corte.
A
agência Reuters trouxe imagens da operação fluminense, apontando-a como “a
maior já realizada contra o Comando Vermelho”. A matéria relata que “50
unidades de saúde e educação tiveram suas rotinas interrompidas pelos
confrontos, e as rotas dos ônibus tiveram que ser alteradas para evitar os
tiros”.
Já o
espanhol El País destacou as críticas do governador bolsonarista Cláudio Castro
ao governo Lula: “o Rio está sozinho nesta guerra”, disse ele. A reportagem
destaca que “um em cada quatro brasileiros, ou 50 milhões de pessoas, vive em
bairros dominados pelo crime organizado”.
Em
coletiva de imprensa na tarde de ontem, o ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski, contestou as declarações, afirmando que o governo federal vem
atendendo todos os pedidos da administração fluminense. “Desde 2023, foram 11
solicitações de renovação da FNSP no território fluminense, todas acatadas”,
afirmou.
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Megaoperação expõe disputa sobre gestão da segurança pública
Com um
saldo oficial de 119 mortos até a tarde desta quarta-feira (29/10), a
megaoperação contra o Comando Vermelho no Complexo do Alemão é a mais letal da
história do Rio de Janeiro. Apesar de seu tamanho inédito, ela repete uma
antiga fórmula de esgotar o combate ao crime organizado no enfrentamento a seu
domínio territorial. A ação ocorre 15 anos após policiais entrarem na mesma
comunidade sob a promessa de livrá-la do tráfico – objetivo que a investida da
terça-feira (28/10) indica que não foi alcançado.
A ação
expôs visões políticas distintas sobre a gestão da segurança pública no Brasil.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, avaliou que a incursão foi um
"sucesso" e afirmou que o estado está "sozinho na luta"
contra o crime, já que, segundo ele, teve pedidos de apoio logístico, como o
fornecimento de blindados, negados pelo governo federal em operações
anteriores. À TV Globo, seu secretário de Segurança, Victor Santos, defendeu
que o Rio vive um "estado de guerra".
O
ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, rebateu. Ele argumenta que a pasta
acatou pedidos feitos por Castro, mas que a responsabilidade pela segurança
pública é "exclusiva dos governadores", conforme prevê a Constituição
Federal. "Combate à criminalidade, seja ela comum, seja ela organizada, se
faz com planejamento, com inteligência, com coordenação das forças",
disse.
Após a
operação, o Congresso se mobilizou para aprovar projetos voltados à segurança
pública. O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, diz que a Casa pauta
"semanalmente" propostas deste tipo, a maioria voltada para o
endurecimento de penas. Na última semana, por exemplo, aumentou a pena para
homicídios de policiais e para crimes vinculados ao domínio territorial das
cidades, prática conhecida como "novo cangaço". A abordagem dos
atores políticos, porém, mostra um impasse na gestão da segurança pública no
Brasil.
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Abordagem sistêmica
Para
especialistas ouvidos pela DW, combater o crime organizado no Brasil e a
violência no Rio de Janeiro exige uma abordagem sistêmica, que mire as cadeias
produtivas como um todo. Isso porque as facções se fortalecem pela
diversificação de sua atuação em outros mercados.
"O
domínio territorial é gravíssimo, mas é uma parte da questão do crime
organizado. A gente precisa ampliar a visão, entender que existem muitas
cadeias produtivas que passam pelo domínio territorial, mas não se esgotam
nele", afirma Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da
Paz.
"O
Comando Vermelho tem conexão com mercados de produção de ouro, garimpo, uso da
terra, pesca. Outros mercados criminais que têm conexão com mercado legal. No
caso do PCC, o mercado de combustível. Não precisa de tanque na rua para fazer
isso", pontua.
Para
isso, o combate à violência precisa partir da ação integrada de outros órgãos,
como a Receita Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(Coaf), além da própria Polícia Federal, argumenta.
Operação
é a mais letal da história do Rio de Janeiro. Governo federal diz que não foi
consultadoFoto: Pablo Porciuncula/AFP/Getty Images
Para
Ricardo, parte deste esforço exige o enfrentamento ao poder bélico das facções,
colocando o tráfico de armas no centro do combate ao crime organizado.
Levantamento do Sou da Paz mostra que as facções no Brasil recorrem cada vez
mais às armas de fogo de estilo militar, como fuzis, submetralhadoras e
metralhadoras.
Para
Janaina Maldonado, socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudos Latino
Americanos do Instituto para Estudos Globais e Regionais (Giga), isso leva à
necessidade de operações centradas em integração e inteligência.
"Precisamos
de operações que desestabilizem as redes de enriquecimento, favorecimento, e
proteção vinculados aos grupos criminais", argumenta. "Uma política
alternativa de segurança pública precisa considerar a regulamentação desses
mercados como forma de debilitar o crescimento e fortalecimento de grupos
criminais."
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Governo aposta em PEC da Segurança e PL "antifacção"
Os
projetos aprovados na Câmara até o momento, porém, têm caráter menos estrutural
do que a principal aposta da União para combater a violência de forma integrada
no Brasil, a PEC da Segurança, que voltou a ser defendida por membros do
governo como saída para a falta de articulação entre atores políticos.
O
Palácio do Planalto apresentou a PEC em abril. O objetivo é ampliar as
atribuições da União sobre o combate à violência. Ela constitucionaliza o
Sistema Único de Segurança Pública (Susp), exige a execução de fundos de
financiamento, amplia a autonomia das corregedorias e fortalece a integração de
inteligência, diante da atuação de facções que ultrapassam fronteiras
estaduais. Também dá mais poder à Polícia Rodoviária Federal e aos guardas
municipais.
Na
prática, a União passaria a coordenar um sistema nacional para padronizar a
atuação das forças de segurança no território nacional, inclusive de policiais
militares, civis e penais, segundo aponta a Agência Senado.
"A
PEC tenta dar forma e normatividade ao conjunto de forças que hoje já atuam no
país de maneira desintegrada e, por vezes, fora dos protocolos, como vimos no
Rio de Janeiro ontem", avalia Janaina Maldonado.
A
proposta, porém, está parada no Congresso e enfrenta resistência de governos
estaduais, entre eles o do próprio Rio de Janeiro, que veem na PEC uma
tentativa de reduzir a autonomia dos estados.
Apesar
de apresentar um desenho jurídico para a cooperação entre os entes federativos,
a PEC não se traduz em uma política nacional de fato. À época de sua
apresentação, Lewandowski assumiu que o projeto não seria a solução, mas
"apenas uma tentativa de organizar o jogo".
"O
que a PEC não nos mostra, como demonstram pesquisas diversas é um conjunto de
políticas públicas que rompa com a lógica bélica de combate ao crime organizado
presente no Brasil há décadas, e, que como vimos ontem, fracassa a cada nova
atualização. Não só fracassa, como aumenta sua letalidade e horror",
argumenta Maldonado.
Na
última semana, Lewandowski também apresentou um projeto de lei
"antifacção", que estabelece um novo tipo penal, o de
"organização criminosa qualificada", endurecendo as penas para o
crime quando há domínio territorial. Também amplia o poder do Ministério
Público para abrir investigações e permite à Polícia criar empresas fictícias
para investigações. O projeto ainda cria um banco nacional de dados de
organizações criminosas.
Após a
operação no Rio de Janeiro, um gabinete de crise foi montado no governo
federal, que passou a considerar o PL prioritário.
O
endurecimento de penas, porém, não leva a uma mudança radical da segurança
pública no país, argumenta Maldonado. "As facções no Brasil nasceram, se
fortaleceram e expandiram dentro e através do sistema prisional. Aumentar penas
e criar novos tipos penais não rompe com essa lógica e está fadado à repetição
do mesmo enquadramento dado ao problema da expansão das facções no país."
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GLOs e "narcoterrorismo" na mira da oposição
A
aposta da oposição no Congresso é a de avançar com um PL que equipara as
organizações criminosas a grupos terroristas. A proposta altera a Lei
Antiterrorismo e aumentaria a pena de comandantes e líderes de facções.
Declarações
de Cláudio Castro após a operação vão na esteira dessa perspectiva. Ele
classificou a resposta dos criminosos, que usaram drones e bombas no confronto
com policiais, como "narcoterrorismo". O governador também apontou
que a ação policial que avançou sobre o Complexo do Alemão em 2010, durante o
segundo governo Lula, recebeu apoio de blindados da Marinha, algo que tem sido
rechaçado pela atual gestão federal.
O
argumento da União é que a ação exigiria uma operação de Garantia da Lei e da
Ordem (GLO), que autoriza o emprego por decreto de tropas das Forças Armadas em
situações excepcionais.
"A
GLO é um dispositivo constitucional previsto, mas está condicionado à
incapacidade dos estados de resolverem seus próprios problemas", afirma
Daniel Hirata, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador
visitante da Sciences Po. "Do ponto de vista do governo federal, isso
oferece muito mais riscos do que possibilidades de obter algum tipo de
vantagem. O governo sabe que a polícia do Rio de Janeiro é extremamente
violenta", afirma.
Em
2010, a operação no Complexo do Alemão ficou marcada por imagens aéreas
captadas pela TV Globo que mostravam dezenas de pessoas fugindo por uma estrada
de terra. A investida fazia parte de um esforço de implementação das Unidades
de Polícia Pacificadora em comunidades no Rio de Janeiro. Apesar do avanço
inicial do projeto, problemas estruturais dificultaram sua continuidade.
Como a
DW mostrou, desde os anos 1990, todos os presidentes fizeram uso das Forças
Armadas para conter violência no Rio de Janeiro, com resultados decepcionantes.
Intervenções
pontuais mais amplas, a nível federal, também não apresentam resultados
duradouros, diz Hirata. "As operações policiais são instrumentos, não são
políticas públicas. Você atua de forma pontual, e não contínua. É diferente de
ter planejamentos e metas", afirma Hirata.
Este
também foi um dos achados do Tribunal de Contas da União (TCU), que avaliou a
intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, em vigor entre fevereiro e
dezembro de 2018.
Segundo
a Corte, a "adoção desse instrumento tem baixa capacidade de geração de
resultados de longo prazo". Isso porque o interventor, em regra, deve
ficar pelo menor período possível, diz o TCU, até cessar a causa que levou à
decretação da medida interventiva. Na prática, a redução da criminalidade se
registrou apenas durante a implementação da medida.
"A
intervenção federal de 2018 foi um fracasso retumbante. O Exército não tem
condições de coordenar as ações policiais, ele não exerce influência dessa
maneira. Pela natureza da instituição, ela não é preparada para atuar no papel
do policiamento", defende Hirata.
Para os
especialistas, a ação contra a violência no Brasil exige uma abordagem
multifatorial, que não se restringe a ações pontuais sobre o território ou
endurecimento de penas .
"Massacres
como o de ontem não deveriam estar no horizonte de plausibilidade de um Estado
democrático de Direito. Combater o crime organizado demanda investimento em
inteligência, esclarecimento de homicídios, regulação de mercados ilegais,
além, de uma atuação fundamental no rompimento das redes de infiltração e de
conluio entre crime e política", conclui Maldonado.
Fonte:
DW Brasil

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