Geraldo
Vandré e Chico Buarque
Do
menestrel ceifado pela ditadura ao cronista das almas femininas, duas
trajetórias que, em tons distintos, consagraram a canção como instrumento de
resistência e de reinvenção da vida íntima
<><>
Geraldo Vandré
Completa
90 anos aquele que compôs o hino nacional da resistência à ditadura. Proibido
em todo o território nacional, “Pra não dizer que não falei de flores” seria
entoado nos eventos da oposição, fosse ato público, comício, enterro de vítimas
e de líderes etc.
Sabe-se
lá que terrores viveu? Notícias de outros perseguidos e exilados contam de
pessoas que, sem estrutura para aguentar os demônios, preferiram morrer. Há
notícia de famoso líder comunista que tentou o suicídio cortando os pulsos com
o único instrumento de que pôde lançar mão, uma tampa de lata de sardinha.
Em
outros, como o de Frei Tito, a ignomínia dos perseguidores foi exponenciada
pelo fato de ele, católico convicto, saber-se condenado pelo suicídio à eterna
danação, sem redenção possível. Outros ainda enlouqueceram, tornaram-se
alcoólatras, converteram-se a cultos messiânicos ou às drogas – enfim, muitas
saídas diferentes para o horror que atravessaram, mas todas destrutivas. E
muitos padeceram de esterilidade intelectual, deixando de produzir.
Geraldo
Vandré, cria do CPC, formou entre os pioneiros da bossa-nova, embora raramente
seja reconhecido. Constituiu sua dupla mais politizada com Carlinhos Lyra. Este
até o fim insistiu que sempre foi politizado, desde o começo, quando coordenou
com Vinicius de Moraes o show Pobre menina rica e foi co-autor de
Subdesenvolvido (1962) com Chico de Assis, célebre sátira em forma de canção
que foi cantada Brasil afora, emblema do CPC e presença em todos os grêmios
estudantis do país.
Pois
Geraldo Vandré e Carlinhos Lyra fizeram parceria que é responsável pelo menos
por duas canções de então: a belíssima Quem quiser encontrar o amor (1961) e
Aruanda (1962). A Geraldo Vandré devemos algumas das mais lindas melodias da
bossa-nova. Mas também há quem prefira Réquiem para Matraga, da trilha sonora
que Geraldo Vandré compôs para A hora e vez de Augusto Matraga, filme de
Roberto Santos
É de se
lamentar que no Brasil não exista a figura do menestrel popular contemporâneo,
que teve exemplares magníficos em outros países, como os chansonniers franceses
que desde a Revolução mantiveram o bom hábito de fustigar os poderosos. Tais
foram, entre tantos outros, Aristide Bruant e George Brassens, que não couberam
no mesmo século.
Em
Portugal, Zeca Afonso fez trabalho quase clandestino durante a ditadura
salazarista, que ajudou a derrubar. Não foi à toa que teve sua canção Grândola
Vila Morena escolhida como senha difundida pelo rádio para deflagrar a
Revolução dos Cravos em 1974. Ele, que infelizmente morreria cedo, percorria o
país com seu violão, cantando em sindicatos, escolas, igrejas, onde desse
enfim, para fazer propaganda da liberdade e da democracia.
Nos
Estados Unidos, sobressaem dois deles, identificados à folk music. O pirmeiro,
Woody Guthrie, marchou junto com os pobres atingidos pela Grande Depressão dos
anos 1930. Deixou canções inolvidáveis, como Where have all the
flowers gone ou If I had a hammer. E foi o divulgador do hoje conhecido hino do
Movimento pelos Direitos Civis, We shall overcome. Depois dele surgiria Pete
Seeger, participante do mesmo Movimento, dos comícios e atos públicos contra o
racismo e contra a Guerra do Vietnã.
Geraldo
Vandré estava a caminho de ocupar seu lugar nesta ilustre galeria de menestréis
populares, quando a ditadura o ceifou. Somos-lhe gratos por ter existido e
brindado seus ouvintes com tão belas canções, as de amor e as de guerra.
Imaginem
Geraldo Vandré no Maracanãzinho, na final do festival da MPB em 1968,
respondendo ao anseio popular ao estrear “Pra não dizer…” Quando a canção
terminou, ouviu-se e pode-se ouvir até hoje na gravação o brado retumbante dos
12 mil opositores do regime que ali estavam em estado de insurgência e que
sancionaram a vitória da canção – que a ditadura proibiria. Mas não conseguiria
impedir sua trajetória histórica.
Basta
ouvir com atenção a progressão da figura do menestrel que Geraldo Vandré vai
construindo em primeira pessoa desde Porta-estandarte, passando por Réquiem
para Matraga, Disparada e Ventania, para culminar em Pra não dizer… Através de
seu canto o menestrel conclama a quem o ouve para mudar o mundo, que está bem
precisado.
<><>
Chico Buarque
Arauto
de uma transformação histórica é Ronda, de Paulo Vanzolini, invertendo
inesperadamente o ângulo de visão e fazendo da mulher traída a narradora. Não
mais um macho ferido em sua vaidade buscando retaliação, mas uma mulher
procurando na boemia seu homem, com a intenção, que só fica clara no último
verso, de lavar sua honra com sangue. Uma notável inversão do lugar-comum.
Mas eis
que surge Chico Buarque e tudo vai mudar na representação do feminino na música
popular, como mostra Adélia Bezerra de Menezes em seus vários livros. Com
açúcar, com afeto, a exemplo de Ronda, opera a mesma inversão, mas, como o
título explicita, sem efusão de sangue. A canção oferece o ponto de vista da
mulher restrita à vida doméstica, enquanto o cabeça do casal se diverte na
boemia. Mas com resultados pacíficos, não sanguinários.
Ela vai
imaginariamente compartilhando as situações que ele vive de fato, com
pertinência e graça – a conversa de botequim, a bebida que jorra, os amigos de
ocasião – e conclui pelo perdão, quando ele volta para casa.
Como é
sabido, a composição atendeu a um pedido de Nara Leão, incrível cabeça pensante
da bossa nova, vanguardeira, e descobridora de talentos e de tendências, que
nada tinha de boazinha e submissa como a protagonista da canção. Mas é boa
amostra da envergadura que o dom de Chico Buarque abarca, embora haja quem
prefira suas transgressoras.
Ele deu
voz a toda uma galeria de mulheres que falam em primeira pessoa, como em
Folhetim” ou Sob medida. Olhando sobranceiras para os homens, são autárquicas e
desabusadas (“Sou bandida/ Sou solta na vida/…/Meu amigo, se ajeite comigo/ E
dê graças a Deus.” – entoa o vozeirão de Fafá de Belém, em Sob medida);
Sempre
atento, com muito respeito e consideração, o compositor sublinha a espinhosa
ambiguidade dos laços que prendem a mulher oprimida ao homem opressor, numa
verdadeira variante da Síndrome de Estocolmo. Em Esse cara, é a mulher do
bandido que se rende a ele: “Ah, que esse cara tem me consumido/com seus
olhinhos infantis/como os olhos de um bandido…”.
Outro exemplo, A qualquer preço, é tão
complexa que só uma cantora genial como Elis Regina modularia todos os seus
tons e semitons de sentido. Para sorte da canção, ela a gravou.
Mas
Chico Buarque também pode pôr em cena uma mulher que se revela esquiva a esses
papéis, nem vítima nem transgressora, mas talvez algo mais, ou ao menos algo
alhures: tal é o etéreo perfil de Beatriz, na parceria com Edu Lobo. O esboço
da personagem é conduzido pela rima rara e difícil de compatibilizar, mas que
imprime extraordinária sofisticação à composição
É
obra-prima que se destaca, mesmo em meio às criações de um artista de tanto
refinamento nas músicas e nas letras. Meio surrealista meio onírica, de beleza
incomparável, quem lhe fez justiça foi Cida Moreira, que soube acentuar suas
delicadezas.
Fonte:
Por Walnice Nogueira Galvão, em A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário