CULTURA
E ESPORTE: A escolha de ser uma nação
No dia
9 de setembro, o Clube de Regatas do Flamengo lançou uma campanha para que a
Organização das Nações Unidas, entidade criada 80 anos antes, ao final da
Segunda Guerra Mundial, imbuída da missão de restaurar e preservar a paz entre
todas as nações e povos do mundo, o reconhecesse como representante de uma
“nação simbólica e cultural”.
Na
época, detestei a iniciativa e me sentia envergonhado toda vez que sua campanha
publicitária aparecia na minha timeline. Não porque essa não seja – nem de
perto – a principal preocupação da ONU atualmente, o que é um fato. Certamente
a guerra na Ucrânia, décadas do genocídio de palestinos, agravado nos últimos
dois anos em Gaza, e dezenas de conflitos e tensões ao redor do mundo são
questões mais sérias do que saber se o Flamengo deve ou não ser reconhecido
como nação, ainda que simbólica. Pior ainda é que isso seja pedido num período
em que a humanidade enfrenta uma crise de múltiplas esferas: ambiental,
financeira, cultural e até sanitária, a exemplo da pandemia nos anos de 2020 e
2021, que ceifou 15 milhões de vidas em todo o mundo, segundo a OMS.
O
pedido do Flamengo não me irritou nem mesmo por não haver precedente no órgão
mundial que promove e preserva a paz no mundo, porque há. Desde 1972, a
entidade reconhece patrimônios culturais, materiais e imateriais, a exemplo de
cidades no Brasil como Brasília, Ouro Preto, Rio de Janeiro e regiões como o
Cais do Valongo, o Jardim de Burle Marx e tantas outras preciosidades. Não
seria problema ou vergonha alguma se o Flamengo buscasse reconhecimento
parecido. Somos muitos milhões de torcedores e o time com a torcida mais
nacionalizada e popular do país do futebol. Estamos nas favelas, vielas,
bairros pobres, morros e periferias. Nos interiores dos interiores, onde
ninguém se preocupa em levar alegria, há um time de futebol que, quando entra
em campo, aquece o coração de quem está lá. Morei em alguns destes interiores
nos últimos anos e atesto que, sem o Flamengo no mundo, o desgosto seria
profundo para milhões de brasileiros e brasileiras.
Não é
um problema da diretoria do clube, portanto, querer o reconhecimento do
Flamengo como nação. O problema é a motivação para isso e, consequentemente, a
compreensão extremamente equivocada do que isso significa. É explícito que o
movimento não passa de uma campanha de marketing para internacionalizar a marca
do clube – influencers que repercutem a campanha e a própria diretoria assumem
isso abertamente. Ou seja, não é, de verdade, a defesa de que o Flamengo seja
alçado ao mesmo status para a humanidade da Floresta Amazônica. A diretoria é
consciente de que isso é um completo absurdo.
Mas foi
só nesta semana que eu me vi digerindo e equacionando o porquê da minha
indignação naquela época. A resposta parece contraditória. Eu acredito que o
Clube de Regatas do Flamengo, fundado em 15 de novembro de 1895, que formou não
só um dos times de futebol mais vitoriosos da história do esporte no Brasil,
como também de diversas modalidades esportivas, como ginástica olímpica (de
Luísa Parente, Daniele e Diego Hypólito a Rebeca Andrade), canoagem (com
Isaquias), basquete (de Oscar a Marcelinho) e tantas outras, é, sim, somado à
sua torcida nacional e mundial, espalhada por todo o Brasil e por diversas
partes do mundo onde haja um brasileiro ou uma brasileira, uma nação. Caberia,
sem dúvida, que fosse reconhecida como tal pelos órgãos competentes, no caso, a
ONU. Mas sabe quem não acredita? A própria diretoria do clube.
Fica
claro que a gestão de Luiz Eduardo Baptista, o Bap, não se importa com sua
nação quando coloca o ingresso mais barato para um jogo do time a R$ 300, valor
que corresponde a 20% do salário mínimo, em um país em que cerca de metade da
população vive com essa renda. Estamos falando da exclusão de, pelo menos, 25
milhões de flamenguistas ou mais da oportunidade de assistir ao vivo a um jogo
que seja, em um mês, de seu time do coração. O Flamengo é também o clube que
cobra mais caro pela adesão ao seu programa de sócio-torcedor – uma iniciativa
pensada para incluir, na comunidade rubro-negra, pessoas sem condições de pagar
por uma sede social que jamais frequentariam, muitas vezes por nem viverem no
Rio de Janeiro.
Não faz
sentido almejar o título de nação, ainda que simbólica, para quem trata seus
talentos como “ativos”, como disse o CEO do clube, Reinaldo Belotti, ao se
pronunciar sobre o incêndio do Ninho do Urubu, centro de treinamento do clube,
ocorrido no dia 8 de fevereiro de 2019, que vitimou fatalmente dez crianças das
categorias de base do futebol. Instaladas em um contêiner sem alvará de
funcionamento e com inúmeras violações de segurança, foram tratadas como peças
descartáveis, inclusive os atletas sobreviventes, massacrados psicologicamente
pela dor do trauma e dispensados do clube pouco tempo depois, sem ter tido
nenhum suporte financeiro ou emocional.
Ainda
mais desumano foi o tratamento dispensado pela diretoria de Rodolfo Landim,
presidente à época, que nunca sequer teve a dignidade de olhar nos olhos dos
pais das vítimas do incêndio e pedir desculpas – ainda que nem sinceras fossem.
Mesma vergonha podemos falar de Eduardo Bandeira de Mello, que, como presidente
até o final de 2018, assinou diversas autorizações para seguir com o
funcionamento absurdamente inseguro das instalações em que dormiam crianças e
que afirmou, quando indagado, não saber dos problemas do principal bem
patrimonial do clube, onde treinavam atletas profissionais do futebol
masculino. Somam-se a estes ex-presidentes todos os responsáveis diretos pelo
crime, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, e que foram inocentados
pelo juiz Tiago Fernandes Barros, da 36ª Vara Criminal do estado.
Vossa
Excelência entendeu que Antonio Garotti e Marcelo Maia de Sá, diretores do
clube que intermediaram a relação com a empresa do contêiner incendiado, que
Claudia Rodrigues, representante da empresa fornecedora do container, que
Danilo Duarte, Fábio Hilário da Silva e Wesley Gimenes, engenheiros
responsáveis pela fabricação, montagem e instalação do contêiner, além de Edson
Colman da Silva, o responsável pela manutenção do ar-condicionado cujo
curto-circuito levou ao incêndio, não cometeram nenhum crime ao deixar dezenas
de crianças alojadas, longe da atenção dos pais e da família, em um local com
grades nas janelas, sem extintores de incêndio, repleto de gambiarras e com
notificações e multas diversas dadas pela Prefeitura, pelo Corpo de Bombeiros e
pelo Poder Judiciário. O Ministério Público nesta semana recorreu da decisão em
primeira instância, e o julgamento seguirá outras etapas.
Poderíamos
entender que o acidente do Ninho do Urubu foi, na realidade, um fato isolado,
diante de tantas conquistas do esporte rubro-negro. Um dos clubes com mais
atletas medalhistas olímpicos da história do Brasil deveria ter aprendido com o
erro, embora nem isso tenha sido reconhecido publicamente. Infelizmente, em
reportagem publicada na semana passada pela jornalista Renata Mendonça, vemos
um tratamento parecido com o que foi prestado aos garotos do Ninho às mulheres
do futebol profissional rubro-negro. Uso de contêineres, instalações
improvisadas, campo de treino maltratado. Ao menos, como se tratam de adultas
remuneradas, as atletas não precisam dormir também onde treinam, se banham e se
vestem; caso contrário, seriam mais vidas ameaçadas por imposição do clube que
defende ser igualado às paisagens do Rio. Nada poderia ser mais antagônico.
Outra
triste constatação é que a desumanidade do Flamengo no trato com seus atletas
não é exclusividade do urubu. Recentemente o Clube de Regatas Vasco da Gama foi
denunciado por um de seus maiores ex-atletas, Valdir de Morais Filho. O clube
lhe devia cerca de R$ 4,5 milhões e encaminhou um plano de recuperação judicial
que abatia grande parte dessa dívida como forma de acordo para sua quitação.
Segundo o Ministério Público do RJ, o plano foi tratado como abusivo e com
cláusulas que “afrontam o ordenamento jurídico”. O caso é apenas um exemplo de
que clubes mal pagadores de atletas são mais comuns no Brasil do que
alagamentos em grandes cidades em março.
E o que
dizer dos patrocínios dos clubes? Hoje, dezoito dos vinte clubes que disputam a
Série A do Brasileirão são patrocinados por casas de apostas, somando mais de
R$ 1 bilhão por ano no futebol. Quando não são empresas que sugam as economias
dos trabalhadores com apostas, são companhias que cobram juros abusivos e
coagem idosos, como a Crefisa. Pelo menos as outras agremiações não solicitaram
à ONU um status que sua diretoria sequer compreende – isso só aumenta a
vergonha alheia do clube que eu e minha família escolhemos seguir e torcer.
Porém,
diante de toda essa análise, me ocorreu outra reflexão: como seria possível o
Flamengo reivindicar o título de nação simbólica sem ser uma piada de mau
gosto? Para começo de conversa, precisariam reduzir a zero os casos como os das
atletas do futebol feminino. Todos e todas as atletas do clube teriam acesso a
uma estrutura parecida com a que os atletas do futebol masculino profissional
têm. Em segundo lugar, a política de ingressos deveria mudar radicalmente. Se o
clube é uma nação, então o torcedor mais pobre e vulnerável também deve ter o
direito de ver seu time de perto. Em terceiro lugar, se a ambição do
rubro-negro da Gávea é a de ser uma nação, então, mais do que “garimpar” jovens
talentos esportivos, o clube deve contribuir para a educação de sua nação. As
“Escolinhas Fla”, que prometem ensinar conceitos morais e éticos, devem se
transformar em escolas de verdade, de qualidade e em tempo integral, fazendo do
futebol e de outros esportes uma formação técnica integrada ao ensino básico
completo e, até mesmo, com a oferta de cursos superiores ligados à área do
futebol (gestão, educação física, fisiologia, fisioterapia, administração são
só alguns exemplos). Assim, jovens da base não seriam apenas formados para o
esporte profissional, mas para a vida em sociedade, com cidadania, senso
crítico e formação para seguir em outras áreas profissionais. Isso é uma nação
que cuida de seu povo.
Por
fim, se o sonho do CRF é ser Nação Rubro-Negra frente às Nações Unidas, daqui
para frente é preciso democratizar o clube. Isso pode parecer utópico, mas uma
das maiores empresas do mundo de celulares hoje, a Huawei, deixou de ser de um
só dono e passou a ser de seus funcionários. Seu fundador, Ren Zhengfei, detém
ainda 1% de suas ações, o que constitui mais de US$ 100 milhões. O restante
pertence aos próprios trabalhadores da empresa, o que impede que haja demissões
em massa e violações de suas condições de trabalho. Guardadas as devidas
proporções, não seria nada injusto que os sócios-proprietários do clube atual,
número inferior a 10 mil membros, compartilhassem o controle do clube com o
resto de sua nação ou, pelo menos, com seus sócios-torcedores, dez vezes mais
numerosos.
Sabemos
que, lamentavelmente, por tudo que vimos a diretoria do Flamengo fazer nos
últimos anos, independentemente da gestão, a incompreensão do peso, da
responsabilidade e da magnitude de ser uma nação simbólica tornam todas as
propostas que pensamos aqui uma comovente utopia. Confesso: esse hoje não é o
meu sonho. Não cobro que o clube tenha o mesmo status da Roda de Capoeira ou de
Machu Picchu. Para mim, seria suficiente se nunca mais nossos atletas fossem
cozinhados vivos ou exibissem em suas camisas de jogo empresas voltadas à
destruição das vidas de seus torcedores. Hoje, parece que até isso nos soa um
sonho delirante.
Fonte:
Por Vinicius Almeida, no Le Monde

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