O
PNE E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: Um retorno necessário na estrada da vida
A
metáfora do retorno que utilizo no título deste artigo escutei na semana
passada, num colóquio em Natal, do Professor Mateus Nascimento, que também
trabalha com Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Instituto Federal do Rio
Grande do Norte. Peço licença a ele para tomá-la de empréstimo porque dizer que
a EJA é o retorno necessário para que rumos possam ser alterados na estrada da
vida de milhões de jovens, adultos e idosos brasileiros, diz muito sobre o
potencial que tem o acesso e a produção de conhecimentos mediados pela escola.
Mas, é preciso olhar com atenção as rodovias que cortam esse país continental e
buscar entender por que faltam “retornos”? Por que os poucos existentes são
insistentemente fechados? Por que se mantém na história da educação brasileira
“retornos” que não levam ao destino almejado?
Partindo
da metáfora para a realidade da EJA no Brasil, convido os leitores para uma
reflexão acerca da realidade de milhões de brasileiros que, em pleno século
XXI, já tendo 18 anos e mais, ainda não conseguiram concluir a Educação Básica,
que é um direito previsto na Constituição Federal de 1988 e ratificado na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394 de 1996 (LDB). Essa lei que
completará trinta anos em 2026 ainda não viu ser alcançada a sua premissa mais
básica que é a garantia do direito de educação a todas as pessoas.
Os
dados divulgados por órgãos oficiais, como IBGE e Inep, revelam o tamanho do
desafio que ainda enfrentamos em relação a não escolarização da população
jovem, adulta e idosa no Brasil,
O
conjunto compreendido pelas 9,3 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que são
analfabetas e os 70 milhões de jovens, adultos e idosos trabalhadores com 18
anos ou mais que não concluíram a educação básica conforma a demanda potencial
pela educação de jovens e adultos (EJA), modalidade da educação básica
estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (arts. 37
e 38). (Brasil, 2025, p.159)
É um
contingente desafiador que representa quase 7 vezes a população total hoje de
Portugal, país do qual fomos colônia por mais de três séculos e de quem
herdamos, entre outras mazelas, um descaso pela garantia do acesso à escola
para todas as pessoas. O analfabetismo e a baixa escolaridade da população
jovem, adulta e idosa ainda marcam a história deste país, que tendo proclamado
a República em 1889, não tornou ainda republicana a garantia de direitos
fundamentais, como o acesso à educação às pessoas pobres, pretas e periféricas.
Estas são afirmações de órgãos oficiais, como as encontradas no documento Plano
Nacional de Educação (PNE) – Documento Diagnóstico da Educação Nacional[1],
publicado recentemente pelo Ministério da Educação, que confirmam o descaso do
poder público para com a EJA.
Entre
as 122.469 escolas que ofertam educação básica, apenas 30.188 (24,6%) ofertam a
modalidade EJA. A reduzida disponibilidade é justificada por gestores pela
ausência de demanda, supostamente evidenciada pela queda do número de
matrículas, que é observada desde o final da primeira década do milênio. As
matrículas dessa modalidade no ensino fundamental caíram de 2,1 milhões em 2018
para 1,6 milhão em 2023, enquanto a EJA no ensino médio caiu de 1,4 milhão para
1 milhão no mesmo período. Essas matrículas são, em grande parte, de pessoas
pretas e pardas (74%), e, especialmente na EJA no ensino fundamental, há número
considerável de matrículas na zona rural (36%). (Brasil, 2025, p. 159)
Voltando
à metáfora inicial, faltam 92.281 “retornos” para fazer diferença na estrada de
muitas vidas. A abertura dessas escolas para a oferta da EJA seria um gesto
importante de sinalização para a população não escolarizada de que lá é um
lugar para elas também, mas, sem dúvida, isso não seria suficiente. Para abrir
mais escolas noturnas é necessário, abrir escolas no período diurno e nos
finais de semana também, bem como identificar outros espaços onde a EJA possa
ocupar, para estar onde a população necessita dela para fazer um “retorno” em
duas vidas. Sem essa compreensão, não haverá “retornos” e os existentes
seguirão sendo fechados.
A
redução da matrícula na EJA, citada no documento de diagnóstico do PNE, como
argumento dos gestores para o fechamento das escolas, é a prova mais explícita
da falta de prioridade política para com a garantia do direito à educação. Tais
gestores pretendem ignorar a demanda real existente que, comparativamente às
regiões brasileiras, corresponde ao somatório da população de todos os estados
das Regiões Nordeste e Norte do país, para ficar com o exemplo destes
territórios que, infelizmente, ainda concentram os maiores índices de
analfabetismo e baixa escolaridade.
É
fundamental compreender que, em sua imensa maioria, os 70 milhões de
brasileiros sem educação básica, aos quais nos referimos, são trabalhadores
estudantes que precisam da EJA e, por características muito próprias a essa
condição, não podem frequentar tempos e espaços educacionais, nem mesmo estarem
submetidos a propostas pedagógicas projetadas, exclusivamente, para a realidade
de crianças e adolescentes. Insistir na imposição de um modelo de escola e de
currículo que não dialoga com a realidade das pessoas que demandam a EJA é
também parte das razões para a redução das matrículas nessa modalidade. Fechar
as alternativas de “retornos” sem uma avaliação muito precisa dos erros
cometidos nas formas de ofertas da EJA, não ajudam a aprender com a nossa própria
história.
As
pessoas que nasceram entre as décadas de 1940 a 1980 devem ter na memória as
estratégias educativas denominadas Mobral e Ensino Supletivo que, durante os 21
anos da ditadura militar, prometeram resolver a questão do analfabetismo e da
baixa escolaridade entre os brasileiros. Essa processa não se cumpriu e o que
restou no imaginário da população foi a ineficiência dessas alternativas
aligeiradas e compensatórias de escolarização, que viraram motivo de chacota,
pois ao querer se referir, até nos dias atuais, às pessoas que demonstram algum
nível de ignorância, não nos surpreendemos por elas serem chamadas de “mobral”
ou “supletivo”.
Essa
apropriação denota uma concepção negativa que a EJA precisa superar, portanto,
o “retorno” que defendemos não é um atalho, não acreditamos em “retornos” que
não levam ao destino almejado, qual seja, uma educação que se comprometa com a
formação humana integral. Uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade
social que, embora já bastante alardeada nos documentos oficiais, ainda segue
difícil de se concretizar no chão das escolas brasileiras.
Essa
reflexão sobre a importância da EJA, mas não de uma EJA qualquer, me faz
lembrar do slogan que vem sendo utilizado pelo movimento social dos Fóruns de
EJA do Brasil[2]: “A EJA é direito, mas não de qualquer jeito”, principalmente
neste contexto histórico em que debatemos no Congresso Nacional o novo Plano
Nacional de Educação (PNE) que será orientador da política para o próximo
decênio. Infelizmente, os resultados do PNE 2014-2024 não indicaram avanços
significativos e alcance das metas previstas para a EJA, mas nos preocupa a
forma como a modalidade estava presente no Projeto de Lei nº 2614/2024 e como
reaparece no substitutivo apresentado esta semana no Congresso Nacional.
Para a
finalidade deste artigo que enfatiza a importância da EJA como estratégia de
“retorno” na trajetória da vida, os seguintes pontos do substitutivo[3] chamam
a atenção, a começar pelos seus objetivos,
Capítulo
III – Dos Objetivos Gerais
(…)
V – a
superação do analfabetismo absoluto e funcional de jovens e adultos;
VII – a
universalização do atendimento escolar à população de quatro a dezessete anos,
e a oferta de oportunidades educacionais aos que não tiveram acesso na idade
própria;
A
insistência dos formuladores das leis educacionais em manter uma focalização de
demanda da população jovem e adulta para alfabetização, revela a falta de
prioridade para pensar uma escola para a classe trabalhadora que assuma o
compromisso com a oferta, com qualidade, de estratégias de Ensino Fundamental e
Médio, adequados às necessidades dessas pessoas. Traçar como um dos objetivos
gerais, para a próxima década, o alcance de no mínimo quatro anos de estudos
para jovens e adultos, que em tese é o que considera o IBGE alfabetização
funcional, sem estabelecer uma relação direta com a continuidade de estudos
para a conclusão da Educação Básica é repetir a estratégia Mobral, que já
prometia isso, nas décadas de 1970 e 1980, pelo Programa de Alfabetização Funcional
(PAF) e pelo Programa de Educação Integrada (PEI). Com um agravante que precisa
ser destacado: Objetivo V deixa de fora a população idosa do país, justamente
aquela que é a maior demanda para esse atendimento.
O
Objetivo VII reproduz a expressão acesso na idade própria, quando na realidade
se trata de uma referência à faixa etária de matrícula obrigatória, no caso
crianças e adolescentes de 4 aos 17 anos. Jovens, adultos e idosos não podem
ser obrigados a se matricular na escola, mas são detentores do direito de ter
também universalizado o direito de concluir a Educação Básica. Não há uma idade
própria para aprender, porque nascemos e morremos aprendendo, e é da
responsabilidade do Estado garantir que a escolarização esteja ao alcance de
todas as pessoas, independentemente da idade.
Mas, as
questões que nos preocupam em relação à EJA como uma estratégia consequente de
“retorno” para jovens, adultos e idosos, avançam quando analisamos o
detalhamento das metas do Objetivo 11 Educação de Jovens, Adultos e Idosos no
substitutivo:
Meta
11a Elevar a taxa de alfabetização
da população com 15 (quinze) anos ou mais para 97% (noventa e sete por cento)
até o quinto ano de vigência deste PNE e superar o analfabetismo até o final do
decênio.
Meta
11b Elevar para 85% (oitenta e cinco
por cento) o percentual da população com 15 (quinze) anos ou mais que concluiu
o ensino fundamental e universalizar essa etapa para a população de 15 (quinze)
a 29 (vinte e nove) anos.
Meta
11c Elevar para 75% (setenta e cinco
por cento) o percentual da população com 18 (dezoito) anos ou mais que concluiu
o ensino médio e universalizar essa etapa para a população de 18 (dezoito) a 29
(vinte e nove) anos.
Meta
11d Expandir as matrículas na
educação de jovens e adultos, de modo a atender, no mínimo, 10% (dez por cento)
da população com 18 (dezoito) anos ou mais que não concluiu a educação básica
até o quinto ano de vigência deste PNE e 20% (vinte por cento) até o final do
decênio.
Meta
11e Ampliar a oferta da educação de
jovens e adultos, de modo a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) da
demanda manifesta pela modalidade até o quinto ano de vigência deste PNE e 100%
(cem por cento) até o final do decênio.
A
primeira meta praticamente repete o que estava previsto no PNE 2014-2024, cujo
foco é a superação do analfabetismo no país. Essa redação infelizmente
fortalece a perspectiva de que se supera o analfabetismo sem considerar que
alfabetização é parte constitutiva do Ensino Fundamental, portanto,
responsabilidade primeira dos entes federados municipais. Historicamente isso
tem reforçado, no campo das políticas educacionais, a proposta de programas e
campanhas de alfabetização como estratégias para o enfrentamento dessa dívida
histórica, que não têm obtido êxito.
As
metas 11b e 11c reproduzem o equívoco de focalização etária (15 a 29 anos) para
a ampliação de percentuais de conclusão do Ensino Fundamental e Médio na
juventude. A modalidade EJA não tem como existir, seja nas ofertas municipais e
estaduais, onde há maior matrícula, seja na própria oferta na rede federal,
focalizando as matrículas na faixa etária juvenil para o alcance dessas metas,
desconsiderando a população 30 anos e mais, que representa o maior contingente
de pessoas não escolarizadas e que não estão sendo atendidas em nenhuma das
ofertas de EJA atualmente nas redes de ensino.
A meta
11d de expansão das matrículas, tomando novamente como referência o dado
oficial de 70 milhões de brasileiros com 18 anos e mais sem educação básica,
coloca no horizonte de cinco anos atingirmos 7 milhões de matrículas. É um
desafio ambicioso? Sim, se considerarmos que a matrícula na EJA, em 2024,
chegou há pouco mais de 2 milhões de estudantes, o que implicaria triplicar o
esforço até 2030. Não, se relembrarmos que a EJA possuía, em 2014, 3 milhões e
meio de estudantes, que foram sendo perdidos ao longo da década do plano
anterior. Qual o recado que esses 10% de ampliação de matrícula será capaz de
dar aos gestores públicos, para que o movimento de abertura, reabertura e
construção de novos “retornos” na EJA se efetivem e não ocorra exatamente o contrário,
como observado no PNE 2014-2024? Olhando historicamente a política de EJA no
Brasil, não há viabilidade de alcance desta meta sem aportes financeiros muito
significativos do governo federal, para induzir estados e municípios a
ampliarem suas ofertas EJA.
Por
fim, a meta 11e é quase como se estivéssemos diante de uma ilusão de ótica.
Onde no Brasil, em pleno século XXI, existe uma “demanda manifesta” pela EJA? O
que convivemos nos municípios e estados é com uma grande dificuldade de
convencimento da população jovem, adulta e idosa de que a escola é um direito
dela e de que vale a pena retornar ao processo de escolarização. É exatamente
porque essa população tem como prioridade a sobrevivência dela e de suas
famílias e, também, porque, em algumas experiências já se decepcionou com
escola, que as principais questões da EJA estão centradas na mobilização da
demanda e na ressignificação da escola para essas pessoas.
Essas
primeiras impressões do substitutivo ainda são, certamente, insuficientes para
dar conta do imenso desafio que teremos até a aprovação no novo PNE. Mas, já
nos indicam a presença de velhas batalhas no campo da EJA que precisarão ser
revisitadas, não apenas pelo conteúdo aqui apresentado das cinco metas do
Objetivo 11, mas a partir de um diálogo cuidadoso com as 23 estratégias
previstas para o alcance deste objetivo.
Finalizando,
agora realmente, não poderia deixar de trazer ao menos uma das estratégias do
substitutivo, por estar relacionada ao dia das professoras e dos professores,
que comemoramos no dia 15 de outubro. É a Estratégia 11.13 Implementar
políticas de formação continuada de profissionais da educação que atuem na
modalidade da educação de jovens e adultos, em especial por meio de parcerias
com instituições de educação superior públicas, com o objetivo de garantir a
qualidade da educação.
Como
professora da EJA há quase quarenta anos, sou testemunha de que ter tido a
oportunidade de fazer formação continuada, nos níveis de especialização,
mestrado e doutorado, e também ter o privilégio de continuar me formando na EJA
e com a EJA, desde 1996, como professora da Faculdade de Educação da UFG, nas
atividades de ensino, pesquisa e extensão, fez toda a diferença na minha vida.
A EJA foi o “retorno” que me permitiu, na estrada da vida profissional, não
desistir de ser professora. É isso que eu desejo a todas as professoras e
professores do Brasil, que possam encontrar os sentidos para permanecer lutando
na e pela educação brasileira, os meus foram encontrados na EJA.
Fonte:
Maria Margarida Machado, no Le Monde

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