terça-feira, 28 de outubro de 2025

Erro, manipulação e fake news

O fenômeno da desinformação ganhou centralidade no debate público brasileiro e internacional, especialmente diante do avanço das tecnologias digitais e do aumento exponencial do consumo de notícias em ambientes online.

Nesse cenário, a proliferação de notícias falsas (fake news), erros jornalísticos e manipulação midiática desafiam a credibilidade da imprensa e demanda análise crítica sobre os mecanismos de produção, circulação e consumo de informação. Compreender as diferentes dimensões da manipulação informacional é fundamental à qualidade do debate público e o compromisso com a verdade.

Em 23 de setembro de 2025, à abertura da 80ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o secretário-geral António Guterres foi emblemático e cirúrgico em recorte textual de como estamos neste mundo. Como acentuou: “Cooperação em vez de caos. Lei em vez de ilegalidade. Paz em vez de conflito”.

António Guterres desfilou temas que nos envolvem, das emergências climáticas, utilização dos combustíveis fósseis, defesa dos direitos humanos, genocídio em Gaza, à questão crucial, neste momento: ao faroeste em que se transformou o fluxo informacional nas nossas vidas – online e offline. Sem qualquer licença poética ou querendo desenhar um “outro mundo é possível”, lema caro da esquerda mundial nos anos 2000, o secretário-geral da ONU sentenciou: “A cooperação internacional não é ingenuidade. É pragmatismo realista”.

Estarmos nessa encruzilhada civilizacional liga-se ao tema central deste artigo: as dimensões manipulativas da informação que recebemos via meios tradicionais – mídia hegemônica – e digitais. Ambos os meios, de alguma forma, estão sob o escudo da falta da boa regulação e fiscalização e sob o manto do poder econômico (do capital) e do poder político. No caso do fluxo informacional ou discursivo online, os donos das big techs permanecem sem qualquer tipo, mínimo, de governança legal e fora do espectro do Estado Democrático de Direito.

Para analisar a manipulação midiática, neste momento, é necessário distinguir algumas dimensões fundamentais, em minha opinião, cito três: a notícia errada, a falsa (fake news) e manipulada. Embora muitas vezes utilizadas como sinônimos, elas apresentam diferenças importantes quanto à origem, intenção e impacto.

<><> Notícia errada

Grosso modo, a notícia errada resulta de equívoco factual ou de apuração, sem a intenção deliberada de enganar. Pode ocorrer por falha humana, limitações de tempo ou fontes imprecisas. O jornalismo profissional, em geral, corrige esses equívocos publicamente quando identificados, mas nem sempre.

Recentemente, observei esse tipo de lapso em matéria que indicava o cantor Roberto Carlos como um dos autores da música “É preciso dar um jeito, meu amigo”, tema do premiado filme “Ainda estou aqui”. O próprio cantor respondeu ao repórter meio constrangido, com sorriso entre dentes, e desconversando. A autoria da canção é apenas de Erasmo Carlos.

Todavia, a notícia foi ao ar assim mesmo, o que nos leva a percorrer o caminho: pauta em cima da hora, profissional sem tempo de apurar a informação (porque as redações estão reduzidas e sob as piores condições de trabalho!) e a equipe de produção ainda com menos tempo. Resultado: a notícia foi errada para o ar (talvez para não perder a oportunidade de ter o “rei Roberto Carlos” na telinha? O que importava era ter o personagem, e não a informação correta?).

Fenômeno ganhou relevância nos tempos atuais com a chegada do fluxo enlouquecido de mensagens e discursos em veículos digitais – desde os aplicativos de mensagens aos meios das grandes big techs, as tais redes sociais (ironia chamá-las assim, porque, o que vemos, é o intuito deliberado de romper e destruir exatamente os laços sociais).

A fake news é a fabricação intencional de informações com o objetivo explícito de enganar, manipular ou obter vantagens políticas, econômicas ou sociais. Diferentemente do erro jornalístico, a notícia falsa é construída para parecer verídica, mas é totalmente desprovida de compromisso com a verdade. A proliferação desse tipo é imenso no mundo, e no Brasil, nos tempos atuais das extrema-direita a serviço da guerra, do extermínio e do capital.

Neste caso, vou trazer o exemplo dado por Donald Trump (presidente? Ditador?), na sessão da ONU, de 23 de setembro de 2025. Ele não fez discurso, ele propagou, intencionalmente, mentiras para abastecer a extrema-direita mundo afora. Podemos dizer que Donald Trump é a materialização da fake news, em carne e osso. Como foram muitas as mentiras, vou citar apenas três: (i) Falou que sob o seu comando, os EUA pararam sete conflitos mundiais; (ii) declarou que as emergências climáticas são um delírio; e (iii) Disse que o prefeito de Londres, Sadiq Khan, vai implementar a Lei Sharia.

<><> Notícia manipulada

Este é um campo farto e já mereceu (e continua merecendo) inúmeros e importantes estudos científicos sobre a não inocência da mídia burguesa.

A manipulação midiática dos grandes grupos econômicos é aquela em que elementos verdadeiros são reorganizados, omitidos ou destacados de modo a distorcer o sentido original ou direcionar a interpretação do público. A manipulação pode se manifestar na seleção de fontes, na escolha do enquadramento narrativo e até mesmo na omissão de informações relevantes. Nossa, aqui o material é farto também! Temos exemplos diários nas TVs, rádios e mídia impressa.

Vou citar outro exemplo testemunhado, desta vez no Jornal Hoje, telejornal vespertino da TV Globo. O apresentador do noticioso ao fechar matéria sobre emendas secretas e a decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), de exigir a fiscalização delas, criticou a falta de transparência desse tipo de destinação de recursos drenados do orçamento públicos – ou melhor dizendo, a privatização ou a terceirização de recurso público nas mãos de parlamentares duvidosos.

Não questiono a importância daquele posicionamento do telejornal, mas o que me chamou a atenção é que aquele discurso deveria estar na boca, e está, de parlamentares do campo progressista e de esquerda nos grandes embates no Parlamento. Ao “sequestrar” a fala desse campo, o apresentador pode induzir à audiência que não tem ninguém contra essas emendas secretas no Congresso Nacional.

Em outro artigo, analisei a manipulação informativa do Jornal Nacional sobre mercado e taxa Selic.

Essas distinções são fundamentais para identificarmos práticas antiéticas e promover um jornalismo ou um fluxo informacional mais transparente e responsável. Pensarmos e diferenciarmos o jornalismo privado – da mídia burguesa, hegemônica na nossa sociedade junto com a ascensão do capitalismo – e a necessidade do jornalismo público para falar do que o primeiro não fala ou distorce, é fundamental.

Os discursos institucionais da mídia burguesa trabalham com o discurso ideológico, aquele que não diz nunca o que é. A emissora de televisão mais assistida no país tem focado fortemente no autorreferenciamento do seu jornalismo profissional de qualidade e do caráter ilibado dos seus profissionais. Em peça publicitária sobre si, o telejornalismo global afirma ser “Uma ponte segura entre fatos e pessoas”. Mas notícia é realmente o texto jornalístico que responde “o que aconteceu” às pessoas?

Definição clássica, e ideológica, relaciona notícia ao “relato de um fato recente, de interesse público, apresentado de modo objetivo e neutro”.  A notícia como reflexo “natural” de acontecimentos. Mas é isso mesmo? Ou a notícia é produto social marcado por escolhas, mediações e contextos?

Diferente do que se propala como “jornalismo profissional”, o produto noticioso é fenômeno social, cultural e histórico, carregado de sentidos e enquadrado por valores, interesses e disputas numa sociedade de classes.

A comunicação de massa atua como meio ideológico nas disputas de ideias, sentidos e consensos que permeiam a vida social; ela é “centralidade na arena das lutas ideológicas e de classes” (Moraes, 2020, s/p). Marx e Engels analisam o fator determinante da produção do trabalho intelectual e de seus meios de difusão na dominação ideológica que “conformam os indivíduos em harmonia com o “modo de ser burguês” (Andrade; Motta, 2022, p. 49, grifo original):

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo, os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual […]; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época (Marx e Engels, 2007, p. 47).

O processo pelo qual uma informação ou fato se transforma em notícia envolve seleção, produção, edição e circulação de conteúdo. O jornalista atua como mediador, filtrando fatos e atribuindo-lhes significado. No entanto, cada etapa desse processo está sujeita a vieses, interesses e pressões, que podem alterar a natureza da informação transmitida ao público. A manipulação midiática ocorre justamente quando há interferência intencional ou sistemática nesse fluxo, alterando a percepção dos fatos e, consequentemente, influenciando o debate público e as decisões sociais e políticas.

A mídia hegemônica, composta pelos principais veículos de comunicação do país, desempenha papel central na formação da opinião pública. Em busca de reafirmar sua credibilidade diante da concorrência das redes sociais, esses veículos frequentemente mobilizam o discurso das fake news para destacar a própria prática jornalística como mais confiável, ética e comprometida com a verdade.

No entanto, essa estratégia pode ser ambígua. Ao mesmo tempo em que denuncia a desinformação propagada em ambientes digitais, a mídia tradicional, por vezes, recorre a práticas de manipulação informacional, como a seleção tendenciosa de pautas, enquadramentos que favorecem determinados grupos políticos ou econômicos e a omissão de temas sensíveis. Assim, a distinção entre o “bom jornalismo” e a prática manipuladora nem sempre é evidente (e quase nunca objetiva), exigindo postura crítica e vigilante da sociedade.

O bom jornalismo se caracteriza pela apuração rigorosa dos fatos, transparência em relação às fontes e disposição para corrigir eventuais erros. A credibilidade é construída não apenas pela denúncia das fake news, mas também pela autocrítica e pelo compromisso ético com o público. A manipulação midiática, ao contrário, se sustenta em práticas que buscam direcionar a percepção do público, minimizando o pluralismo e a diversidade de vozes.

A manipulação midiática tem impactos profundos sobre a percepção pública e o debate político. Ao apropriar-se de discursos políticos ou amplificar determinadas narrativas, a mídia pode reforçar polarizações, alimentar preconceitos e dificultar a construção de consensos democráticos. A circulação de notícias manipuladas ou falsas contribui para o descrédito das instituições, o enfraquecimento do debate público e a disseminação de desinformação em larga escala.

O papel da mídia na apropriação de discursos políticos é especialmente sensível em períodos eleitorais ou de crise institucional, quando a disputa pela narrativa se intensifica. A cobertura enviesada, a omissão de perspectivas divergentes e a amplificação seletiva de temas podem influenciar diretamente a opinião pública e, por consequência, o resultado de processos democráticos.

A análise crítica sobre erro jornalístico, fake news e manipulação midiática revela a importância da responsabilidade ética dos profissionais da comunicação e o papel ativo do público na checagem e questionamento das informações consumidas. Em um cenário marcado pela abundância de dados e pela disputa de narrativas, a promoção do jornalismo responsável, plural e transparente é condição essencial para o fortalecimento da democracia e da cidadania.

O saudoso Vito Giannotti e a aguerrida jornalista Claudia Santiago (coordenadora do Núcleo Piratininga de Comunicação, NPC), nos idos de 1997, já ensinavam que toda a imprensa tem lado:

A grande imprensa tem seus objetivos muito bem definidos. Tem sua visão de mundo e defende os interesses de uma só classe. Só que isto não pode transparecer nas linhas do jornal. A grande imprensa age sob o mito da neutralidade. Para ter credibilidade precisa dar a impressão de que todos os setores da sociedade são ouvidos pelo jornal com igual peso (Santiago; Giannotti, 1997, p. 137).

O problema é quando se esconde isso do distinto público. Citando a comunicação sindical ou progressista, por exemplo, ela se assume pertencente a uma classe e em defesa de um projeto econômico e social; já a chamada “grande imprensa” quer que acreditemos ser ela a (única e soberana) porta-voz da verdade e dos fatos, por isso, esconde seus interesses políticos e econômicos e pertencente a uma classe.

 

Fonte: Por Rosângela Ribeiro Gil, em A Terra é Redonda

 

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