Erro,
manipulação e fake news
O
fenômeno da desinformação ganhou centralidade no debate público brasileiro e
internacional, especialmente diante do avanço das tecnologias digitais e do
aumento exponencial do consumo de notícias em ambientes online.
Nesse
cenário, a proliferação de notícias falsas (fake news), erros jornalísticos e
manipulação midiática desafiam a credibilidade da imprensa e demanda análise
crítica sobre os mecanismos de produção, circulação e consumo de informação.
Compreender as diferentes dimensões da manipulação informacional é fundamental
à qualidade do debate público e o compromisso com a verdade.
Em 23
de setembro de 2025, à abertura da 80ª sessão da Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o secretário-geral António
Guterres foi emblemático e cirúrgico em recorte textual de como estamos neste
mundo. Como acentuou: “Cooperação em vez de caos. Lei em vez de ilegalidade.
Paz em vez de conflito”.
António
Guterres desfilou temas que nos envolvem, das emergências climáticas,
utilização dos combustíveis fósseis, defesa dos direitos humanos, genocídio em
Gaza, à questão crucial, neste momento: ao faroeste em que se transformou o
fluxo informacional nas nossas vidas – online e offline. Sem qualquer licença
poética ou querendo desenhar um “outro mundo é possível”, lema caro da esquerda
mundial nos anos 2000, o secretário-geral da ONU sentenciou: “A cooperação
internacional não é ingenuidade. É pragmatismo realista”.
Estarmos
nessa encruzilhada civilizacional liga-se ao tema central deste artigo: as
dimensões manipulativas da informação que recebemos via meios tradicionais –
mídia hegemônica – e digitais. Ambos os meios, de alguma forma, estão sob o
escudo da falta da boa regulação e fiscalização e sob o manto do poder
econômico (do capital) e do poder político. No caso do fluxo informacional ou
discursivo online, os donos das big techs permanecem sem qualquer tipo, mínimo,
de governança legal e fora do espectro do Estado Democrático de Direito.
Para
analisar a manipulação midiática, neste momento, é necessário distinguir
algumas dimensões fundamentais, em minha opinião, cito três: a notícia errada,
a falsa (fake news) e manipulada. Embora muitas vezes utilizadas como
sinônimos, elas apresentam diferenças importantes quanto à origem, intenção e
impacto.
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Notícia errada
Grosso
modo, a notícia errada resulta de equívoco factual ou de apuração, sem a
intenção deliberada de enganar. Pode ocorrer por falha humana, limitações de
tempo ou fontes imprecisas. O jornalismo profissional, em geral, corrige esses
equívocos publicamente quando identificados, mas nem sempre.
Recentemente,
observei esse tipo de lapso em matéria que indicava o cantor Roberto Carlos
como um dos autores da música “É preciso dar um jeito, meu amigo”, tema do
premiado filme “Ainda estou aqui”. O próprio cantor respondeu ao repórter meio
constrangido, com sorriso entre dentes, e desconversando. A autoria da canção é
apenas de Erasmo Carlos.
Todavia,
a notícia foi ao ar assim mesmo, o que nos leva a percorrer o caminho: pauta em
cima da hora, profissional sem tempo de apurar a informação (porque as redações
estão reduzidas e sob as piores condições de trabalho!) e a equipe de produção
ainda com menos tempo. Resultado: a notícia foi errada para o ar (talvez para
não perder a oportunidade de ter o “rei Roberto Carlos” na telinha? O que
importava era ter o personagem, e não a informação correta?).
Fenômeno
ganhou relevância nos tempos atuais com a chegada do fluxo enlouquecido de
mensagens e discursos em veículos digitais – desde os aplicativos de mensagens
aos meios das grandes big techs, as tais redes sociais (ironia chamá-las assim,
porque, o que vemos, é o intuito deliberado de romper e destruir exatamente os
laços sociais).
A fake
news é a fabricação intencional de informações com o objetivo explícito de
enganar, manipular ou obter vantagens políticas, econômicas ou sociais.
Diferentemente do erro jornalístico, a notícia falsa é construída para parecer
verídica, mas é totalmente desprovida de compromisso com a verdade. A
proliferação desse tipo é imenso no mundo, e no Brasil, nos tempos atuais das
extrema-direita a serviço da guerra, do extermínio e do capital.
Neste
caso, vou trazer o exemplo dado por Donald Trump (presidente? Ditador?), na
sessão da ONU, de 23 de setembro de 2025. Ele não fez discurso, ele propagou,
intencionalmente, mentiras para abastecer a extrema-direita mundo afora.
Podemos dizer que Donald Trump é a materialização da fake news, em carne e
osso. Como foram muitas as mentiras, vou citar apenas três: (i) Falou que sob o
seu comando, os EUA pararam sete conflitos mundiais; (ii) declarou que as
emergências climáticas são um delírio; e (iii) Disse que o prefeito de Londres,
Sadiq Khan, vai implementar a Lei Sharia.
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Notícia manipulada
Este é
um campo farto e já mereceu (e continua merecendo) inúmeros e importantes
estudos científicos sobre a não inocência da mídia burguesa.
A
manipulação midiática dos grandes grupos econômicos é aquela em que elementos
verdadeiros são reorganizados, omitidos ou destacados de modo a distorcer o
sentido original ou direcionar a interpretação do público. A manipulação pode
se manifestar na seleção de fontes, na escolha do enquadramento narrativo e até
mesmo na omissão de informações relevantes. Nossa, aqui o material é farto
também! Temos exemplos diários nas TVs, rádios e mídia impressa.
Vou
citar outro exemplo testemunhado, desta vez no Jornal Hoje, telejornal
vespertino da TV Globo. O apresentador do noticioso ao fechar matéria sobre
emendas secretas e a decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal
Federal (STF), de exigir a fiscalização delas, criticou a falta de
transparência desse tipo de destinação de recursos drenados do orçamento
públicos – ou melhor dizendo, a privatização ou a terceirização de recurso
público nas mãos de parlamentares duvidosos.
Não
questiono a importância daquele posicionamento do telejornal, mas o que me
chamou a atenção é que aquele discurso deveria estar na boca, e está, de
parlamentares do campo progressista e de esquerda nos grandes embates no
Parlamento. Ao “sequestrar” a fala desse campo, o apresentador pode induzir à
audiência que não tem ninguém contra essas emendas secretas no Congresso
Nacional.
Em
outro artigo, analisei a manipulação informativa do Jornal Nacional sobre
mercado e taxa Selic.
Essas
distinções são fundamentais para identificarmos práticas antiéticas e promover
um jornalismo ou um fluxo informacional mais transparente e responsável.
Pensarmos e diferenciarmos o jornalismo privado – da mídia burguesa, hegemônica
na nossa sociedade junto com a ascensão do capitalismo – e a necessidade do
jornalismo público para falar do que o primeiro não fala ou distorce, é
fundamental.
Os
discursos institucionais da mídia burguesa trabalham com o discurso ideológico,
aquele que não diz nunca o que é. A emissora de televisão mais assistida no
país tem focado fortemente no autorreferenciamento do seu jornalismo
profissional de qualidade e do caráter ilibado dos seus profissionais. Em peça
publicitária sobre si, o telejornalismo global afirma ser “Uma ponte segura
entre fatos e pessoas”. Mas notícia é realmente o texto jornalístico que
responde “o que aconteceu” às pessoas?
Definição
clássica, e ideológica, relaciona notícia ao “relato de um fato recente, de
interesse público, apresentado de modo objetivo e neutro”. A notícia como reflexo “natural” de
acontecimentos. Mas é isso mesmo? Ou a notícia é produto social marcado por
escolhas, mediações e contextos?
Diferente
do que se propala como “jornalismo profissional”, o produto noticioso é
fenômeno social, cultural e histórico, carregado de sentidos e enquadrado por
valores, interesses e disputas numa sociedade de classes.
A
comunicação de massa atua como meio ideológico nas disputas de ideias, sentidos
e consensos que permeiam a vida social; ela é “centralidade na arena das lutas
ideológicas e de classes” (Moraes, 2020, s/p). Marx e Engels analisam o fator
determinante da produção do trabalho intelectual e de seus meios de difusão na
dominação ideológica que “conformam os indivíduos em harmonia com o “modo de
ser burguês” (Andrade; Motta, 2022, p. 49, grifo original):
As
ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua
força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da
produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a
ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo, os pensamentos daqueles
aos quais faltam os meios da produção espiritual […]; na medida em que dominam
como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que
eles o fazem em toda sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles
dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a
produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas
ideias são as ideias dominantes da época (Marx e Engels, 2007, p. 47).
O
processo pelo qual uma informação ou fato se transforma em notícia envolve
seleção, produção, edição e circulação de conteúdo. O jornalista atua como
mediador, filtrando fatos e atribuindo-lhes significado. No entanto, cada etapa
desse processo está sujeita a vieses, interesses e pressões, que podem alterar
a natureza da informação transmitida ao público. A manipulação midiática ocorre
justamente quando há interferência intencional ou sistemática nesse fluxo,
alterando a percepção dos fatos e, consequentemente, influenciando o debate
público e as decisões sociais e políticas.
A mídia
hegemônica, composta pelos principais veículos de comunicação do país,
desempenha papel central na formação da opinião pública. Em busca de reafirmar
sua credibilidade diante da concorrência das redes sociais, esses veículos
frequentemente mobilizam o discurso das fake news para destacar a própria
prática jornalística como mais confiável, ética e comprometida com a verdade.
No
entanto, essa estratégia pode ser ambígua. Ao mesmo tempo em que denuncia a
desinformação propagada em ambientes digitais, a mídia tradicional, por vezes,
recorre a práticas de manipulação informacional, como a seleção tendenciosa de
pautas, enquadramentos que favorecem determinados grupos políticos ou
econômicos e a omissão de temas sensíveis. Assim, a distinção entre o “bom
jornalismo” e a prática manipuladora nem sempre é evidente (e quase nunca
objetiva), exigindo postura crítica e vigilante da sociedade.
O bom
jornalismo se caracteriza pela apuração rigorosa dos fatos, transparência em
relação às fontes e disposição para corrigir eventuais erros. A credibilidade é
construída não apenas pela denúncia das fake news, mas também pela autocrítica
e pelo compromisso ético com o público. A manipulação midiática, ao contrário,
se sustenta em práticas que buscam direcionar a percepção do público,
minimizando o pluralismo e a diversidade de vozes.
A
manipulação midiática tem impactos profundos sobre a percepção pública e o
debate político. Ao apropriar-se de discursos políticos ou amplificar
determinadas narrativas, a mídia pode reforçar polarizações, alimentar
preconceitos e dificultar a construção de consensos democráticos. A circulação
de notícias manipuladas ou falsas contribui para o descrédito das instituições,
o enfraquecimento do debate público e a disseminação de desinformação em larga
escala.
O papel
da mídia na apropriação de discursos políticos é especialmente sensível em
períodos eleitorais ou de crise institucional, quando a disputa pela narrativa
se intensifica. A cobertura enviesada, a omissão de perspectivas divergentes e
a amplificação seletiva de temas podem influenciar diretamente a opinião
pública e, por consequência, o resultado de processos democráticos.
A
análise crítica sobre erro jornalístico, fake news e manipulação midiática
revela a importância da responsabilidade ética dos profissionais da comunicação
e o papel ativo do público na checagem e questionamento das informações
consumidas. Em um cenário marcado pela abundância de dados e pela disputa de
narrativas, a promoção do jornalismo responsável, plural e transparente é
condição essencial para o fortalecimento da democracia e da cidadania.
O
saudoso Vito Giannotti e a aguerrida jornalista Claudia Santiago (coordenadora
do Núcleo Piratininga de Comunicação, NPC), nos idos de 1997, já ensinavam que
toda a imprensa tem lado:
A
grande imprensa tem seus objetivos muito bem definidos. Tem sua visão de mundo
e defende os interesses de uma só classe. Só que isto não pode transparecer nas
linhas do jornal. A grande imprensa age sob o mito da neutralidade. Para ter
credibilidade precisa dar a impressão de que todos os setores da sociedade são
ouvidos pelo jornal com igual peso (Santiago; Giannotti, 1997, p. 137).
O
problema é quando se esconde isso do distinto público. Citando a comunicação
sindical ou progressista, por exemplo, ela se assume pertencente a uma classe e
em defesa de um projeto econômico e social; já a chamada “grande imprensa” quer
que acreditemos ser ela a (única e soberana) porta-voz da verdade e dos fatos,
por isso, esconde seus interesses políticos e econômicos e pertencente a uma
classe.
Fonte:
Por Rosângela Ribeiro Gil, em A Terra é Redonda

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