Como
é fazer entrevista de emprego com uma inteligência artificial: 'Tempo foi
otimizado, mas desumaniza'
O
economista Everton Freire, de 33 anos, já tinha preenchido algumas dezenas de
formulários em busca de um novo emprego quando finalmente recebeu um e-mail
positivo.
Foi
classificado para a segunda etapa de um processo seletivo em uma empresa de
educação do segmento da saúde.
Ele se
surpreendeu ao descobrir que, nesta fase, seria entrevistado por uma
inteligência artificial (IA), algo que nenhuma outra vaga que aplicou havia
apresentado até então.
Aos
poucos, esse tipo de tecnologia vem sendo implementado em processos seletivos
de diversas empresas brasileiras, de diferentes portes.
As
instruções para a conversa com a IA foram enviadas em texto, por Whatsapp, e as
respostas dele deveriam ser dadas em áudio na mesma plataforma.
O
programa do outro lado respondia rapidamente, mais até do que um humano faria,
e direcionava as perguntas conforme as respostas dadas por Freire, aprofundando
o assunto a cada novo questionamento.
Foram
três ou quatro interações e o processo terminou. A resposta veio na hora e era
positiva: ele se encaixava no perfil da vaga.
"Só
que parou por aí. Nunca fui chamado para nenhuma outra etapa", ele contou
à BBC News Brasil.
Freire
lembra que sentiu um misto de estranhamento e curiosidade com a experiência.
"A
primeira emoção foi de resistência, por não estar falando com uma pessoa. Ainda
mais por ser uma empresa que forma pessoas do ramo da saúde, mas que faz o
processo de forma tão fria. Depois, pensei também que meu tempo foi otimizado e
ao menos tive algum feedback. Talvez só não tenha sido tão bem ranqueado pela
IA como outros candidatos."
Hoje,
já empregado em outra companhia, Freire avalia que esse tipo de tecnologia pode
representar um ganho para as empresas, mas não necessariamente para o
candidato.
"Para
quem está buscando recolocação, quem está desempregado, é algo que desumaniza.
Estar em uma segunda fase, lidando com uma IA, em uma coisa pré-programada, de
dizer se estou apto ou não. Não foi tão positivo para mim."
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Por que empresas estão usando IA em entrevistas?
O uso
de inteligência artificial em processos seletivos não é algo recente, mas
ganhou novo impulso com a popularização da IA generativa, como os modelos de
linguagem que sustentam o ChatGPT.
"O
motivo que levou as empresas a implementar é o grande volume de aplicações,
causado por ferramentas de recrutamento e plataformas como Linkedin, que
fizeram com que pessoas de diferentes lugares pudessem aplicar. Era preciso
controlar esse volume e agilizar o recrutamento", diz Humberta Silva, que
é professora da Hochschule Bremen, na Alemanha, e doutora em administração pela
FEA-USP.
A
especialista diz que a pandemia impulsionou ainda mais essa guinada
tecnológica. E que empresas passaram então a experimentar ferramentas como
chatbots, avaliação de entrevistas automatizada e rankings.
"A
IA vai ter um impacto nas organizações ainda maior do que a internet teve no
início dos anos 2000", avalia o empresário e professor do Insper Edison
Audi Kalaf, que diz ser um defensor da tecnologia.
"Tem
muitas vantagens no uso da IA para recrutamento e seleção. Escalabilidade,
padronização, redução de viés. Muitas vezes o recrutador tem vieses que vêm da
criação dele, da formação, etc., que uma ferramenta bem treinada e utilizada
pode não ter."
O
sucesso da tecnologia, avalia o professor, dependerá de como for usada.
“A
tecnologia nuclear é extremamente útil. Mas você pode usar para fazer uma
máquina que descobre um câncer ou para fazer uma bomba."
A BBC
News Brasil entrevistou representantes de quatro startups brasileiras que
oferecem esse tipo de serviço específico de análise de entrevistas, todas com
poucos anos (ou meses) de vida, mas que já incluem em seus portfolios empresas
com milhares de funcionários.
Também
testamos ferramentas do mercado (mais detalhes abaixo), tanto no papel de
recrutador quanto de candidato.
O
discurso que apresentam a favor das entrevistas automatizadas é semelhante:
redução de custos, otimização de tempo e satisfação no processo, tanto para
clientes quanto para os próprios candidatos.
"Um
processo seletivo pode ter dez candidatos ou 1 mil. É humanamente impossível
fazer tantas análises em tempo hábil, ainda mais quando empresas exigem prazos
cada vez mais curtos por causa de rotatividade. Imagine se pudéssemos ter um
recrutador pra cada candidato", diz Patrick Gouy, CEO da Recrut.AI.
"Por
isso o apelo para as empresas é tão grande, mas não só elas serão beneficiadas.
Imagine o candidato ter acesso direto a uma IA que pudesse qualificar ele na
hora, dar uma resposta mais rápida”, diz o empresário.
A
tecnologia costuma ser aplicada em fases iniciais do processo, com grande
volume de currículos, e não deve substituir a entrevista presencial para uma
decisão final.
"É
um caminho sem volta", diz Christian Pedrosa, fundador e CEO da DigAI.
"Há
uma agenda finita para avaliar candidatos. Isso força o recrutador a olhar para
seus próprios vieses. Um exemplo: priorizar candidatos que fizeram intercâmbio,
mesmo para uma vaga na qual a pessoa nem precisa falar inglês", diz.
"Do outro lado, há também quem usa ChatGPT para exagerar o currículo. A IA
muda isso, porque a todo mundo é dada uma chance de mostrar se sabe do que está
falando ou não."
Augusto
Salomon, CEO da Starmind, que também oferece esse tipo de tecnologia, avalia
que a entrevista por IA julga menos do que um entrevistador humano.
"Você
parte de um cenário com uma avaliação muito mais rica e sem julgamento, porque
a IA não julga se a pessoa tem tal religião, tal aparência. Ela faz uma
entrevista técnica com todo mundo e entrega dados de valor para o recrutador
tomar a decisão."
Pamela
Borges, CEO da startup Coploy, reconhece haver receio das empresas em aderir a
esse tipo de plataforma. E cita o medo de que profissionais de recrutamento
sejam substituídos. "Eu costumo dizer que esse medo tem um remédio, que é
a curiosidade, a vontade de conhecer o que está chegando no mercado."
Ela
avalia que a IA não substitui pessoas no processo de recrutamento, mas
"devolve a humanidade ao ser humano, que faz trabalhos repetitivos e, às
vezes, sem estratégia. A gente potencializa a capacidade daquele ser humano,
deixando de lado tarefas que não trazem valor agregado, para provar o valor de
seu trabalho."
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Quais são as consequências do uso de IA em entrevistas de emprego?
A tese
de doutorado de Humberta Silva, defendida neste ano na FEA-USP, investigou os
usos e consequências do uso da IA em processos seletivos. Concluiu que as
vantagens, como agilizar e padronizar processos, não superam as consequências
indesejadas. E citou algumas delas:
-
Esperam que o candidato saiba usar termos e palavras-chave específicas; em
nosso teste, por exemplo, uma das entrevistas deu foco exagerado a um termo
técnico que não era o ponto mais importante da entrevista (mais detalhes
abaixo)
- Há
expectativa de que candidatos tenham acesso à internet e que preencham
currículos de formas muito específicas para ter destaque; a necessidade de
menção explícita a termos técnicos usados nas descrições das vagas, por
exemplo, é citada por especialistas como uma forma de ser bem avaliado;
-
Muitas empresas não informam que IA é usada em processo de seleção, enquanto
especialistas dizem que é preciso divulgar, por questão de transparência;
"Estamos
vendo muitas empresas adotando a tecnologia, mas sem entender como ela
funciona. E isso traz riscos. Precisamos, como sociedade, entender que o acesso
ao mercado de trabalho é a oportunidade para um indivíduo se tornar cidadão. Se
criamos barreiras pela tecnologia, que tipo de sociedade a gente espera?",
avalia Silva.
Outro
desafio, diz, é um maior desequilíbrio de poder.
"As
empresas têm muito mais acesso às informações do candidato do que o candidato
das empresas. E cria uma atmosfera de que o candidato precisa superar a IA para
poder ser contratado. Quando o candidato não é aprovado, mesmo tendo todos os
requisitos da vaga, percebe o algoritmo como inefetivo. As empresas deveriam
balancear se as expectativas estão sendo atendidas e também a expectativa do
candidato que querem atrair."
As
startups que oferecem o serviço de entrevista por IA apresentam dados que dizem
que a maioria dos entrevistados aprova o processo seletivo. Nos testes feitos
pela BBC News Brasil nessas ferramentas, tal avaliação era feita ao final da
entrevista, na mesma plataforma.
A
professora da FEA-USP Liliana Vasconcellos, que orientou a pesquisa de Silva,
questiona esse método de avaliação.
"É
uma pesquisa bem parcial, de responder no final sem saber se a informação vai
ser usada pela empresa. O candidato pode achar que vai ser caracterizado como
alguém que é contra a tecnologia."
Outro
estudo sobre o tema, um artigo publicado em 2023 por Daniel Blumen e Vanessa
Cepellos na revista Cadernos Ebape, da FGV, se baseou em entrevistas com 12
recrutadores do setor farmacêutico.
Os
entrevistados disseram que a IA pode ajudar a tornar o recrutador mais
eficiente, em um papel mais consultivo do que operacional. Mas reconheceram que
a ferramenta pode acabar excluindo determinados perfis de candidatos, que a
tecnologia poderia não trazer as pessoas certas e perder talentos.
"Os
algoritmos acontecem pela aprendizagem a partir do ser humano. Se estamos
colocando dados que são discriminatórios, a máquina também vai atuar dessa
maneira. As empresas ainda estão entendendo como fazer uso disso, como usar de
uma forma ética," diz Cepellos, uma das autoras da pesquisa e professora
de gestão de pessoas e de carreiras da FGV.
"A
questão é de como a ferramenta vai ser utilizada. A tecnologia é uma
ferramenta, ela não vai ser utilizada em todas as etapas. É importante que o
processo não perca a humanização."
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Ranking de candidatos e retorno imediato: como é a entrevista?
A BBC
News Brasil testou três plataformas que oferecem o serviço, nos papéis de
recrutador e de candidato.
A
primeira etapa do processo para o recrutador é a criação da vaga.
Ao
definir um nome (por exemplo: "jornalista júnior", um dos cargos que
usamos em nossos testes), a própria inteligência artificial sugere uma
descrição de perfil e requerimentos, que depois podem ser alterados pelo
recrutador.
O
jornalista júnior "será responsável por elaborar conteúdos jornalísticos
escritos, com foco em clareza, apuração rigorosa e adequação ao público
alvo", descreveu uma das plataformas.
Em uma
das ferramentas as perguntas eram as mesmas para todos os candidatos,
pré-definidas pelo recrutador, e a entrevista requeria uso de câmera.
Em
outra, os questionamentos pareciam se adaptar de acordo com as respostas
fornecidas, tentando usar o que o candidato disse para aprofundar ou avançar em
algum tema.
O
candidato que aplica a alguma dessas vagas recebe um e-mail com o link para
participar do processo, que pode ser feito por Whatsapp ou algum site. A
depender da plataforma, pode ou não ser necessário ligar a câmera, ou usar o
microfone e um chat por texto.
Por
fim, os resultados chegam ao recrutador em um painel, em forma de ranking, e é
possível ver a gravação da entrevista e como a IA avaliou cada resposta.
É
possível definir se os candidatos receberão ou não uma resposta no fim do
processo. Mas essa resposta não indica se ele foi aprovado ou não. A decisão
caberá ao recrutador humano.
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Robôs dão ênfase a palavras-chave e explicação de conceitos
Um
elemento que se destacou em um dos testes é que o recrutador de IA deu ênfase
exagerada a algumas palavras-chave que estavam na descrição da vaga. Não citar
essa palavra ou não dar exemplos parece ter sido o motivo de redução da nota.
Um
exemplo: apesar de ser uma vaga júnior, cuja descrição dizia que era
"desejável ter noções básicas de SEO" (técnicas para que um texto
tenha mais destaque nas buscas online)", o termo foi citado diversas vezes
na avaliação, quase sempre em contexto crítico.
Na
prática, era como se esperasse que o candidato dominasse o tema. Na avaliação
de uma das respostas, por exemplo, a IA chegou a dizer que o entrevistado
"precisa desenvolver melhor a estruturação e análise de desempenho de
conteúdo para atender às expectativas do cargo".
Na
ferramenta com perguntas pré-programadas, a IA também ignorou habilidades não
previstas na vaga e citadas pelo candidato, mas que também se encaixavam nos
requisitos.
Houve
ainda casos em que a crítica para reduzir uma nota não tinha relação com o que
foi perguntado. Um exemplo: o entrevistador questiona se o candidato já teve de
escrever sobre um assunto fora de sua zona de conforto. Depois, avalia que o
candidato "deve aprimorar conhecimentos em SEO e dados".
Em um
dos testes notamos também que a IA demandava do candidato explicações mais
conceituais de questões práticas.
Ao
questionar sobre quais fontes costuma utilizar na cobertura de economia, e
receber como resposta menções a instituições como IBGE e Banco Central, a
ferramenta diz que ele "não detalhou seis critérios de noticiabilidade
típicos em economia", e atribuiu nota 2/6.
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E se o candidato também usar IA pra responder?
Uma das
descobertas mais curiosas do teste foi que algumas empresas orientam os
candidatos a não usar inteligência artificial nas respostas, sob o argumento de
que conseguem detectar esse tipo de uso.
Para
verificar se isso realmente acontece, e considerando que especialistas dizem
que está cada vez mais difícil diferenciar respostas humanas das geradas por
IA, resolvemos fazer um experimento.
Participamos
de uma entrevista inteira respondendo apenas com textos criados pelo ChatGPT,
mas adaptados para soar o mais naturais possível: falamos com pausas,
hesitações e até alguns vícios de linguagem, como qualquer pessoa faria.
O
retorno do recrutador robótico foi bastante positivo, apesar da
"trapaça".
"É
evidente que você possui uma sólida compreensão do processo de apuração de
notícias e transmite uma abordagem cuidadosa e ética ao lidar com informações
contraditórias, o que é crucial em sua área", dizia a mensagem. A nota
final, em uma escala de 0 a 10, foi 7.
Descobrimos
depois, no entanto, que o sistema havia registrado um alerta sobre esse
candidato para o entrevistador sobre uma "provável leitura", ou seja,
que talvez esse candidato estivesse lendo as respostas ao invés de responder
por conta própria.
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'Algoritmo não pode discriminar; se acontecer, candidato pode buscar
indenização contra empresa'
Empresas
que queiram recrutar candidatos com uso da IA devem adotar uma série de
cuidados para evitar problemas legais, explica o advogado Rafael Bispo de
Filippis, sócio do escritório Mattos Filho.
Embora
ainda não exista uma legislação sobre o tema no Brasil, continuam valendo as
regulamentações que impedem discriminação nesses processos.
"O
algoritmo não pode ter viés discriminatório. Se isso acontecer, o candidato
pode buscar indenização contra a empresa que está fazendo recrutamento",
diz.
Uma boa
forma de evitar processos, diz o advogado, é já se adaptar ao texto do projeto
de lei que regulamenta o uso de IA, aprovado no Senado no fim de 2024.
A
proposta é descrita como tendo o objetivo de proteger direitos fundamentais e
estimular a inovação responsável, "em benefício da pessoa humana, do
regime democrático e do desenvolvimento social, científico, tecnológico e
econômico."
Ela
estabelece uma série de direitos, como o direito à informação sobre interações
com sistemas de IA, privacidade e proteção de dados pessoais, não discriminação
e correção de vieses discriminatórios.
Para
virar lei, o projeto ainda precisa ser aprovado na Câmara.
"É
um PL que fomenta a questão da não discriminação e da transparência. O
candidato tem que ser informado de que aquele processo de recrutamento ou parte
dele vai ser feito com IA. Tem também que poder acessar mais detalhes de como
vai funcionar essa utilização da tecnologia."
Filippis
destaca também que é importante que as empresas assinem um contrato com as
provedoras do serviço de IA com previsão de reparação. "Se der um problema
no recrutamento e o serviço se mostrar discriminatório, aquele candidato vai
buscar indenização contra a empresa, não contra quem vendeu o software."
Sugere
também que é uma boa precaução que as empresas armazenem gravações das
entrevistas feitas por IA e que treinem seus profissionais de RH.
Mas e
os candidatos, como vão conseguir provar que foram discriminados?
"É
um tipo de disputa judicial em que é difícil para o candidato provar que houve
discriminação. Por outro lado, se a empresa não tem mecanismos de
transparência, ela sofre nesse tipo de briga", diz ele. "Não
duvidaria que a Justiça do Trabalho caminhe, no futuro, em um posicionamento de
que cabe à empresa provar que não houve discriminação."
O
advogado explica também que os candidatos podem solicitar, pela via judicial,
acesso aos dados de sua entrevista e avaliação, com base na Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD).
"Embora
seja difícil provar a discriminação, a depender do tipo de pergunta, pode
provar um indício discriminatório. Um exemplo clássico, de antes da IA, é a
pergunta sobre se uma candidata mulher pretende ter filhos."
Fonte:
BBC News Brasil

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