Infância
na mesa: como escapar dos ultraprocessados?
Há
algumas poucas décadas, ali pelos anos 80, o sonho de meninos e meninas — seja
no aniversário ou no Natal — era ganhar uma bicicleta. Até Silvio Santos tinha
a chamada “magrela” como prêmio máximo nos jogos de seu programa de auditório
infantil, o “Domingo no Parque”. Sim, a molecada queria mais era sair pedalando
por aí! Gradualmente, os videogames foram ganhando espaço nessa lista dos
desejos infantis, conectando o cérebro das crianças com um aparelho que não
exigia esforço físico praticamente nenhum. Mas, apesar de não envolver o corpo
nem estimular a capacidade de inventar — já que para utilizá-los era só seguir
o que aparecia na tela —, eles ainda poderiam ser classificados como
brinquedos. Só que o que veio na
sequência (substituindo os antigos e desengonçados consoles nas cartinhas com
pedidos para o Papai Noel), dificilmente pode ser encaixado nessa categoria,
embora permita joguinhos online. Estamos falando dos aparelhos celulares
“inteligentes”, os tais smartphones, sonho de consumo de meninas e meninos, que
parecem ficar hipnotizados ao contato com as pequenas telas luminosas e ter
acesso aos seus poderes mágicos de abrir portais no tempo e no espaço.
Quem
convive com crianças sabe bem como muitas delas simplesmente vão se apropriar
do celular de uma pessoa adulta, caso dê bobeira. Segundo a pesquisa Crianças e
adolescentes com smartphones no Brasil (feita pela Mobile Time, em setembro
deste ano de 2025), a média de tempo que uma criança brasileira da faixa etária
de zero a três anos passa junto a um desses dispositivos corresponde a cerca de
uma hora e meia ao dia! Esse número vai aumentando conforme a idade aumenta e
chega a quase quatro horas na faixa etária de 13 a 16 anos. O mesmo estudo
verificou que é na faixa de 10 anos que brasileirinhos e brasileirinhas ganham
seu primeiro smartphone. Os motivos para mães e pais cederem ao assédio da
criançada são extensos, mas basta dizer que elas parecem se acalmar magicamente
quando pegam o aparelho na mão e mergulham em seu universo pixelado. Já as
consequências desse uso precoce — lembrando que a recomendação é evitar a
interação de crianças pequenas com as telas eletrônicas — são imprevisíveis,
dado que são corpos e mentes em desenvolvimento e tudo isso é muito recente.
Mas, sim, elas já se insinuam, e são bastante preocupantes, como veremos mais à
frente deste artigo.
<><>
Dia dos mini-adultos
Outubro
é o mês das crianças, sendo o dia 12 a data oficial a ser celebrada pela
sociedade brasileira. Celebração que se dá, sobretudo, pelas empresas voltadas
a esse público, cujos bolsos dos acionistas costumam dar uma bela engordada. Só
que, infelizmente, não são só os bolsos capitalistas que ganham “gordura extra”
nesse processo. Se você, como eu, faz
parte de redes de organizações sociais que atuam com comunidades, provavelmente
recebeu uma enxurrada de solicitações financeiras neste período celebrativo
para que contribuísse com as festas das crianças periféricas. Na lista do que
será oferecido, aparecem comes, bebes e prendas que, se são objetos do desejo
delas e vão trazer alegria momentânea, também implicam em efeitos indesejáveis
no longo prazo.
Vamos
dar uma espiada no cardápio festivo… Nitidamente dá para ver que o que impera
são balas, pirulitos, refrigerantes, bolos industriais embalados um a um e o
onipresente cachorro-quente, com suas salsichas e seus molhos artificiais
característicos da sociedade do fast-food. Raramente se encontra uma fruta ou
uma torta caseira. O resultado: crianças felizes e agradecidas, não é? É
verdade que, em sua grande maioria, elas desejam — ou melhor, foram levadas a
desejar — esses alimentos e bebidas. É verdade que eles são mais baratos do que
produtos mais saudáveis e que são inquestionavelmente mais fáceis de “preparar”
e distribuir, já que vêm prontos e embalados, não restando nem a louça para
lavar no “pós-guerra” da festança. Mas não podemos deixar de dizer que são
problemáticos para a saúde delas, a saúde da sociedade e a saúde do planeta,
três esferas indissociáveis e essenciais para nossa sobrevivência.
Vemos
as crianças como o futuro da humanidade, não é? Mas será que elas podem ser
tratadas como mini-adultos? Do ponto de vista da medicina, esse processo já
está em curso, à medida em que elas estão sofrendo cada vez mais com doenças
crônicas típicas de pessoas mais velhas, como diabetes e hipertensão,
comprovadamente relacionadas ao excesso de peso e a uma alimentação
industrializada. Só para dar uma ideia da situação atual no país, um quarto das
crianças e jovens já está com taxas de colesterol maiores do que o valor
padrão. É uma bomba-relógio para a saúde pública e um presente para a big
pharma, que lucra mais cedo com a venda de remédios que seriam apenas para
adultos. Vale lembrar que são medicamentos de uso contínuo e, portanto, somente
atenuam sintomas e não curam, possivelmente gerando efeitos colaterais que
serão tratados com outros remédios, numa espiral infinita.
<><>
Balança desregulada
E 2025
parece mesmo comprovar que estamos diante de um dilema civilizacional, já que,
pela primeira vez, o número de crianças obesas ultrapassou o número de crianças
com peso menor do que o considerado padrão. É o que mostra o Relatório
“Alimentando o Lucro: Como os Ambientes Alimentares Estão Decepcionando as
Crianças”, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF). O levantamento, que avaliou
meninas e meninos de 190 países na faixa etária dos 5 aos 19 anos (portanto,
incluindo adolescentes), revela que 391 milhões estão com excesso de peso,
representando um salto de 100%, considerando o período de 2000 até agora. E,
deste contingente, 188 milhões já sofrem de obesidade, cuja incidência passou
de 3% para 9,4%. Na contramão da tendência de alta, o índice de baixo peso teve
uma redução de 13% para 9,2%, o que significa que, mesmo hoje, 9 em cada 100
ainda sofrem de desnutrição. Mas falar
em números e porcentagens pode ajudar a vislumbrar a dimensão da encrenca na
qual a sociedade humana se meteu, mas não dá ideia do que essas crianças e
jovens vivem e vão viver em sua vida adulta, se medidas efetivas não forem
adotadas. Talvez o drama possa ser percebido quando falamos de câncer, doença
que tem a obesidade como um dos fatores desencadeadores.
O
aumento do câncer infantil, consequência também do contato com substâncias
cancerígenas presentes nos alimentos, na água e no ar, significa que mais e
mais corpos ainda não desenvolvidos serão submetidos a tratamentos agressivos,
como a quimioterapia, alterando seus cotidianos e de suas famílias. No artigo O
Envenenamento da Infância, presente no Relatório de Direitos Humanos no Brasil
de 2013, eu já alertava para essa situação dramática, destacando o papel
inequívoco dos agrotóxicos nesse processo. Aqui, é possível entrar no principal
fator do aumento da obesidade no mundo: os sistemas alimentares totalmente
dominados pelas corporações transnacionais. Da semente geneticamente modificada
ao pacote de salgadinhos do supermercado, a manipulação corporativa do que
deveria ser sagrado — o alimento — faz com que comidas e bebidas tradicionais e
saudáveis estejam cada vez menos disponíveis às populações dos países do
globo. O inverso ocorre com o que faz
mal. Os produtos ultraprocessados, feitos com as commodities das monoculturas
transgênicas e repletas de venenos (como soja e milho), e doses generosas de
sal, açúcar, gordura e aditivos, estão disponíveis por preços acessíveis ao
povão e podem ser adquiridos até em lugares menos urbanizados, como aldeias
indígenas e comunidades ribeirinhas.
<><>
Sistemas obesogênicos
Se
outubro é o mês das crianças, ele também é o mês internacional da alimentação —
ou da Soberania Alimentar, como preferimos denominar nos movimentos sociais do
setor. A data exata celebrada é o dia 16, ocasião em que um conjunto de
pesquisas, programas e debates são divulgados por governos e sociedade civil,
permitindo uma leitura do cenário vivido e uma reflexão sobre os caminhos a
serem buscados. O mote deste ano,
definido pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura), é De mãos dadas por melhores alimentos e um futuro melhor,
enfatizando a necessidade de somarmos esforços na jornada por sistemas
agroalimentares saudáveis, que garantam a qualidade de vida das atuais e das
próximas gerações. Só que me parece impossível ler a frase-tema e não pensar na
avalanche de dietas ultraprocessadas — e das doenças crônicas não
transmissíveis que andam em sua rabeira — que vem desmoronando sobre nossas
crianças.
De
acordo com o Atlas Mundial da Obesidade, o crescimento anual da prevalência da
doença na população do planeta tem sido de 1,8%. Cálculos do Instituto
Desiderata revelam que, em 2060, se esse ritmo continuar, teremos o dobro de
brasileiras e brasileiros entre 5 e 19 anos sofrendo com essa condição, o que
daria um total de cerca de 10 milhões de crianças e jovens e implicaria em um
gasto de 3,6 bilhões até lá. O relatório
Impactos da Obesidade Infantojuvenil no Brasil: Projeções de morbimortalidade e
custos até 2060, lançado esses dias pela organização, faz um alerta para a
sobrecarga que o SUS irá sofrer, destacando que, segundo suas estimativas,
94,4% dos gastos previstos serão com procedimentos hospitalares, deixando
nítido a gravidade da condição na vida de meninas e meninos e a complexidade do
tratamento necessário. Como contraponto, o próprio estudo traz sugestões de
medidas que poderiam evitar esse quadro drástico, projetando alguns dos
consideráveis efeitos benéficos que ações preventivas poderiam gerar no futuro
que se aproxima a galope. Não há dúvida
de que, para enfrentar realmente o problema, tanto aqui no Brasil quanto em
outros países, é necessário combater a crescente obesogenificação dos sistemas
agroalimentares. A expansão das atuais monoculturas, nas quais imperam venenos
que são cancerígenos ou disruptores endócrinos, aliada ao avanço das grandes
corporações da indústria alimentícia, com seus petiscos gordurosos e bebidas
adoçadas carregados de aditivos, compõem a receita perfeita para um colapso na
saúde pública mundial.
<><>
Refri no imposto e não na mamadeira
Se
alguém achou o ano de 2060 uma data longínqua para nos preocuparmos agora,
saiba que a realidade hoje já é bastante distópica. Mesmo entre bebês, o
excesso de peso já se faz consideravelmente presente. Observando sobrepeso e
obesidade juntos, 33% das crianças brasileiras de zero até quatro anos sofrem
com essas condições, de acordo com o levantamento do SISVAN, Sistema de
Vigilância Alimentar e Nutricional, do Ministério da Saúde, em 2025. Isso
significa mais de 1.100 milhão! Embora a
recomendação médica seja de amamentar os bebês pelo menos até os dois anos, não
é incomum que as mães, em geral sobrecarregadas com o trabalho dentro e fora de
casa, não cumpram essa orientação. Podemos ver outras bebidas sendo oferecidas
nas mamadeiras mesmo na fase que vai do primeiro aos seis meses de vida, em que
o leite materno deveria ser o único alimento ingerido.
Veja
que, neste momento, nem estamos falando das tais fórmulas infantis que, como a
Aliança Pela Alimentação Adequada e Saudável vem denunciando, a publicidade
corporativa tenta induzir mães e pais a comprar, alegando serem melhores para o
desenvolvimento dos bebês. Sem dúvida, elas trazem sérios problemas, mas ainda
não tão graves quanto o consumo de outros líquidos industrializados que
circulam em praticamente todos os mercados.
Quando
disparamos o alerta máximo para nos referirmos aos produtos ingeridos por
crianças até os quatro anos, estamos falando dos refrigerantes. Eles estão
entrando precoce e desmedidamente na vida desses pequenos seres em
desenvolvimento e alterando sua percepção gustativa e seu funcionamento
bioquímico em relação ao que ingerem. Em outras palavras: estamos falando de
vício. Viciar crianças desde o berço pode significar a garantia de consumidores
fiéis para o resto da vida — fonte inesgotável de rendimentos. Se as empresas que fabricam essas bebidas,
através de seu marketing agressivo e inescrupuloso, impactam tão negativamente
na saúde de crianças e adultos, elas não se dispõem minimamente a arcar com as
consequências. Mas vão muito além disso, e fazem de tudo para conseguir e
manter benesses financeiras inaceitáveis. Até a elaboração da atual Reforma
Tributária, que está ainda em curso, fabricantes de refrigerantes usufruíram de
isenções fiscais bilionárias. Foi com
muita luta que, na proposta aprovada pelo governo Lula, a sociedade conseguiu
abolir essa aberração, expoente do neoliberalismo mais voraz: aquele que suga a
população sem piedade, embolsa despudoradamente os lucros e deixa o ônus
tenebroso nas costas do poder público. Mesmo assim, o martelo ainda não está
definitivamente batido. Ainda depende de uma postura responsável dos senadores,
sendo preciso seguir firme para que o lobby corporativo não desvirtue seu
conteúdo, inserindo os famosos jabutis.
Para saber mais do que está ocorrendo e contribuir para a implantação de
uma tributação que corrija a indecência que tivemos que aguentar até agora,
vale a pena conhecer o Manifesto por uma Reforma Tributária Saudável: Por um
Imposto Seletivo que reduza o consumo de tabaco, álcool, bebidas açucaradas e
bets, e as doenças e mortes associadas a eles, iniciativa apoiada por mais de 100 organizações da
sociedade civil, e ler a nota divulgada pela ACT Promoção da Saúde contra a
manobra em curso no Senado, que visa reduzir as alíquotas que deveriam ser
cobradas.
<><>
Brincadeira tóxica
E, por
falar em veneno, vamos voltar a falar do Dia das Crianças. No começo deste
texto, dissemos que as festas de celebração da data incluem a distribuição de
guloseimas e de prendas. Das primeiras já tratamos, agora vamos refletir sobre
as segundas, considerando que são basicamente brinquedos industrializados. Na lista do que é oferecido, estão bonecas,
carrinhos, joguinhos, bolas, etc. Na sua quase totalidade, esses produtos são
feitos de plástico, embalados em plástico pela própria indústria e até acondicionados
em saquinhos de presente plastificados distribuídos às crianças. É plástico que
não acaba mais… E isso literalmente, já que sabemos como seus resíduos se
espalham pelos quatro cantos do planeta, se desfazendo em micro pedaços, que,
ao não serem degradados inteiramente pela natureza, acabam se infiltrando no
organismo dos seres vivos. A
contaminação ambiental por microplásticos é uma das questões mais urgentes que
temos que tratar, mas o ponto que quero abordar aqui é a saúde direta das
crianças. Há décadas já se sabe que substâncias presentes em certos tipos de
plástico que compõem embalagens e objetos vendidos no mercado têm efeitos
danosos no organismo. Muitas delas, como bisfenol, ftalatos e parabenos, agem
como disruptores endócrinos, ou seja, interferem no sistema hormonal,
favorecendo o acúmulo de peso, entre outras consequências. Mas não são somente esses componentes
problemáticos que estão presentes nos brinquedos que deveriam nos preocupar. O
estudo Elementos potencialmente tóxicos em brinquedos brasileiros: uma
avaliação de risco à saúde infantil baseada na bioacessibilidade, recentemente
feito pela Universidade de São Paulo junto à Universidade Federal de Alfenas,
com apoio da Fapesp, encontrou resíduos excessivos de outras substâncias
tóxicas em brinquedos plásticos populares vendidos no Brasil.
Os
principais contaminantes (em um total de 21 com potencial danoso encontrados!)
foram bário, cromo, chumbo e antimônio, e os níveis chegaram a ser 15 vezes
maiores do que os que são permitidos. É a mais extensa pesquisa brasileira já
feita no setor e envolveu 70 produtos diferentes, tanto nacionais como
importados, coletados em lojas de bairro e shoppings centers. Os brinquedos analisados são recomendados
para a faixa de zero a 12 anos e vários deles eram facilmente exploráveis pela
via oral, ampliando os riscos de contaminação. Usando um método chamado
biodisponibilidade ou digestão ácida, o estudo pôde simular a reação dos
materiais ao contato com a saliva das crianças, observando as substâncias
químicas liberadas por eles no processo. Os efeitos desses metais pesados no
organismo vão de problemas neurológicos irreversíveis (chumbo) até câncer
(antimônio), passando por arritmias, paralisias e disfunções
gastrointestinais. Considerando que os
brinquedos recebidos pelas crianças em situação financeiramente vulnerável
costumam ser feitos de plástico e que, em boa parte das vezes, são dos poucos
que elas terão para brincar no dia a dia (ficando expostas muito tempo ao seu
contato), podemos perceber os riscos que estão correndo de ter efeitos
negativos em seus corpos, sempre mais frágeis por ainda estarem se
desenvolvendo.
<><>
Aumentar ou reduzir a carga
Infelizmente,
temos que reconhecer que não está nada fácil organizar as celebrações deste mês
da meninada no cenário em que vivemos. Dia das crianças com salsicha, pirulito,
bexiga, boneca e carrinho de plástico, entre outros “presentes”, é o avesso do
que deveríamos oferecer a quem está em pleno florescimento da vida e já está
crescendo em uma sociedade na qual o ar, a água, a terra e os seres vivos já
estão repletos de contaminantes químicos.
Se somarmos a ingestão de alimentos ultraprocessados com a exposição aos
brinquedos industriais feitos com elementos de alta toxicidade, podemos
perceber como a infância, sobretudo a periférica, está sendo bombardeada com
uma carga mais do que alarmante do que não faz bem. Estudos que demonstram os
efeitos danosos que essa carga tóxica causa na saúde humana não faltam. A vida
real, com os atendimentos crescentes de crianças com doenças crônicas no SUS,
também não deixa dúvidas do desastre em curso.
No caso
de crianças que têm acesso ao universo das telas, onde reina a aliança entre as
Big Techs e as Big Foods, ainda acrescentamos a existência de uma exposição
acentuada à publicidade, bem como uma tendência à diminuição das atividades
físicas. Como mencionado no início deste artigo, não sabemos muito bem o efeito
a longo prazo dessa crescente interação com celulares no funcionamento físico e
psicoemocional delas, mas algumas mudanças já são perceptíveis. Entre elas,
temos problemas oculares, perda da coordenação motora e diminuição da
capacidade de socializar com outras crianças.
Felizmente, este ano, as famílias resistiram mais aos apelos e os
smartphones caíram um pouquinho no ranking dos presentes comprados para
celebrar o dia 16. Pode ser um reflexo da proibição desses aparelhos nas
escolas, uma política adotada pelo governo federal. Sabemos que somente com
medidas do poder público iremos começar a reduzir o peso que a infância está
acumulando, seja em quilos, seja em carga tóxica material e imaterial. Cada
medida de combate ao assédio corporativo sobre a população e cada programa de
incentivo a um modelo produtivo de base agroecológica contam nessa
equação. Sem dúvida, uma das esferas
fundamentais no processo de transformação dos sistemas agroalimentares é a
alimentação escolar. No Brasil, quase 50 milhões de estudantes recebem
refeições durante o período de aulas. Muitas dessas crianças e desses jovens
têm na refeição recebida na escola pública a sua base diária de comida, já que
a situação econômica de suas famílias é precária. O que é ou não servido
diariamente tem influência essencial em suas trajetórias de vida. Quanto mais
alimentos in natura ou pouco processados e menos produtos ultraprocessados,
mais saúde.
A
ampliação da proporção de alimentos oriundos da Agricultura Familiar no PNAE, o
Programa Nacional de Alimentação Escolar (que passou de 30% para 45%, de acordo
com a Lei nº 15.226/2025, sancionada no início do mês), e o reajuste no valor
pago por estudante (que, atualmente, é de apenas R$ 0,50 ao dia e, desde 2023,
data do último reajuste, acumula uma perda de 14,25%), têm potencial para
impulsionar a mudança de um sistema obesogênico, destruidor da natureza e
concentrador de riquezas, para um sistema agroecossolidário. E a valorização da Cultura Alimentar dos
nossos povos, com suas relações profundas com a sociobiodiversidade dos
territórios, por meio de políticas públicas adequadas, é outra ação importante.
De mãos dadas a ela, temos que caminhar com a ampliação e o aprimoramento da
EA, a Educação Ambiental, e da EAN, a Educação Alimentar e Nutricional.
<><>
Todo dia é dia das crianças
Por
mais que o Dia das Crianças seja um momento de descontração, dar a elas comes e
bebes ultraprocessados, como se fossem presentes especiais, reforça a
associação desses produtos com algo que é desejado, com valor afetivo e
simbólico. Em uma sociedade em que os marqueteiros já nos bombardeiam
pesadamente com mensagens nessa direção, esse tipo de celebração acaba ajudando
a balança das doenças crônicas a ficar mais pesada. O mesmo vale para os brinquedos plastificados
ou tecnológicos. Mesmo sabendo que é o que elas querem (já que foram induzidas
a isso), será que temos que reforçar esses desejos por algo que não faz bem a
elas, nem à sociedade e nem ao planeta? Será que é possível equilibrar um pouco
essa balança, ao oferecer a possibilidade de criar brincadeiras que conectam
corpos, mentes e natureza?
Mesmo
que não seja possível ter acesso fácil a ambientes ao ar livre, em que existam
plantas e animais, ainda podemos contar com o universo da literatura. Abrir um
livro que traga valores diferentes dos oferecidos pelo mundo publicitário (com
sua exaltação ao consumo, à competição e à vaidade) pode aproximar esses
habitantes das grandes cidades de outras realidades e possibilidades de
existência. Se o preço não for acessível, talvez já exista uma biblioteca
próxima ou, em caso negativo, uma nova possa ser criada na comunidade. Com um
pouco de estímulo, quem sabe as próprias crianças poderiam criar seus livros e
perceber que nem tudo é vendido pronto em lojas ou sites. Talvez o caminho para impulsionar essa
mudança em nossa postura em relação às crianças seja reconhecer que o melhor
presente que podemos dar a elas é a chance de desfrutar de um futuro viável,
algo que o modelo social baseado na multiplicação de “presentes” insustentáveis
está ameaçando impedir. Seja reconhecer que todos os dias são dias em que
devemos celebrar a vida delas e, ao promover frequentemente processos criativos
e atividades lúdicas coletivas, bem como o contato com a terra e com os sabores
das comidas não industrializadas que formam nossa Cultura Alimentar
tradicional, possamos gerar, gradualmente, novas associações emocionais e
padrões gustativos na vida delas. O
processo não é simples, já que toda a estrutura da atual sociedade, baseada no
consumo infinito e no prazer imediato, conspira contra nós. Mas, através da
taxação tributária dessas indústrias, da regulação de sua marquetagem, e de
políticas públicas pró-alimentação adequada e saudável, nossos esforços para
equilibrar essa balança podem ganhar impulso e reduzir a carga —
desproporcionalmente pesada — que a infância aguenta em suas costas frágeis.
Fonte:
Por Suzana Prizendt, em Outras Palavras

Nenhum comentário:
Postar um comentário