Crimes
da ditadura: 52 anos do assassinato de José Carlos da Mata Machado
Há 52
anos, em 28 de outubro de 1973, o líder estudantil José Carlos da Mata Machado
era assassinado por agentes da ditadura militar brasileira.
José
Carlos se juntou à luta contra a ditadura logo após o golpe de 1964, quando era
estudante de direito da UFMG. Vice-presidente da UNE, ele foi um dos mais de
900 estudantes presos pelo regime durante o ataque ao Congresso de Ibiúna.
Líder
estudantil foi traído pelo cunhado e assassinado por agentes militares
brasileiros em 1973
Ligado
aos setores progressistas da Igreja Católica, José Carlos se filiou à Ação
Popular Marxista-Leninista e tentou organizar o movimento de resistência em
Fortaleza.
O
militante foi traído e entregue aos militares pelo próprio cunhado, morrendo
após 10 dias seguidos de tortura. O regime tentou ocultar a responsabilidade
pela sua morte armando a farsa do “Teatro de Caxangá”.
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Juventude e atuação no movimento estudantil
José
Carlos Novaes da Mata Machado nasceu em 20 de março de 1946 no Rio de Janeiro.
Era filho da dona de casa Yedda Novaes e do jornalista e jurista Edgar Godoy da
Mata Machado. Seu pai era um intelectual ativo na vida política do país.
Colunista
do jornal O Diário, Edgar foi um dos principais opositores do Estado Novo,
denunciando os abusos autoritários do regime de Getúlio Vargas. Também foi um
dos fundadores da Faculdade Mineira de Direito e deputado pela União
Democrática Nacional (UDN).
A
família se mudou para Belo Horizonte quando José Carlos ainda era criança,
instalando-se no bairro de Funcionários. Ele frequentou o ensino primário no
Grupo Escolar Barão do Rio Branco e concluiu o curso clássico no Colégio
Estadual de Minas Gerais. Estudante aplicado, passou em primeiro lugar para o
curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1964.
O
ingresso de José Carlos na universidade coincidiu com o advento do golpe de
Estado que derrubou o governo de João Goulart. A instauração da ditadura
militar foi seguida pela suspensão dos direitos políticos, pela cassação dos
parlamentares de oposição e pela intervenção nos sindicatos, nas universidades
e nos meios de comunicação.
José
Carlos se envolveu ativamente no movimento estudantil, que então fervilhava com
protestos contra a ditadura. Ele participou de debates, assembleias e protestos
exigindo a redemocratização e a restauração dos direitos e garantias
constitucionais. O jovem foi um dos fundadores do Grupo de Alunos da Turma de
1964 (GAT-64), uma agremiação que exerceu um importante papel de coordenação
política dos estudantes.
A
militância no movimento estudantil era uma atividade cada vez mais arriscada.
Ainda em 1964, a ditadura havia ordenado o fechamento da União Nacional dos
Estudantes (UNE) e banido as atividades políticas no ambiente universitário. A
repressão ao movimento estudantil se agravou continuamente desde então,
resultando em violentas invasões às universidades, prisões em massa, torturas e
assassinatos.
A
truculência do regime não intimidou José Carlos. Politizado e eloquente, ele se
destacou como um dos principais líderes do movimento estudantil em Minas
Gerais. Em 1967, tornou-se presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP),
órgão de representação dos discentes de Direito da UFMG.
No
mesmo ano, José Carlos foi eleito vice-presidente da UNE, assumindo o comando
de diversas tarefas da entidade, então relegada à atuação clandestina. Ele
chegou a ser preso em maio de 1968, acusado de “subversão”, e ficou detido por
mais de um mês.
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Queda de Ibiúna e a Ação Popular
Os
embates entre a UNE e a ditadura militar chegaram ao ápice justamente no
período em que José Carlos integrava a cúpula da instituição.
O
assassinato do estudante secundarista Edson Luís Lima Souto em março de 1968
desatou uma onda de protestos por todo o Brasil, atingindo o seu paroxismo com
a Passeata dos Cem Mil, uma gigantesca manifestação organizada pelos estudantes
no centro do Rio de Janeiro.
Preocupados
com o vigor da resistência, os militares intensificaram a repressão ao
movimento estudantil. Em agosto de 1968, um protesto de alunos da UnB foi
violentamente esmagado por agentes da ditadura, resultando em mais de 60
prisões.
Dois
meses depois, os militares reprimiram o 30º Congresso da UNE, que estava sendo
realizado secretamente em um sítio em Ibiúna, no interior paulista. José Carlos
foi um dos mais de 900 estudantes presos na operação. Ele foi levado para a
sede do DOPS em Belo Horizonte e depois transferido para o Presídio Tiradentes,
em São Paulo, ficando encarcerado por oito meses.
Edgar,
o pai de José Carlos, também se tornou alvo do regime. Opositor da ditadura,
ele havia sido eleito deputado federal pelo MDB em 1966. Após a promulgação do
AI-5 em dezembro de 1968, Edgar teve seu mandato parlamentar cassado. Ele
também perdeu os direitos políticos, teve sua cátedra revogada e foi afastado
das funções na Faculdade de Direito.
José
Carlos foi libertado em junho de 1969, retomando imediatamente sua atuação
política. A exemplo de seu pai, José se perfilava aos setores progressistas da
Igreja Católica. Durante sua atuação no movimento estudantil, ele se filiou à
Ação Popular (AP), uma agremiação vinculada à esquerda católica, defensora do
socialismo humanista.
Em
resposta às ofensivas violentas da ditadura, a AP radicalizaria
progressivamente sua linha política, adotando uma postura revolucionária e
passando a apoiar a luta armada contra o regime.
As
divergências internas sobre as estratégias adotadas pela organização
ocasionaram a cisão da AP em 1971. José Carlos permaneceu ligado ao grupo
intitulado Ação Popular Marxista-Leninista (APML), uma facção mais próxima do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB), integrada por nomes como Renato Rabelo,
Aldo Arantes, Haroldo Lima e Duarte Pereira.
Fugindo
do monitoramento dos órgãos repressivos, José Carlos deixou Belo Horizonte e
iniciou um périplo pelo Brasil usando nomes falsos. Em 1970, ele se casou com
Maria Madalena Prata Soares, também militante da AP. O casal teve um filho em
1972, batizado de Dorival.
Pouco
após o nascimento da criança, José Carlos e Maria Madalena se mudaram para
Fortaleza, onde viveram em uma favela. O bebê foi entregue à custódia dos avós
paternos, para evitar que fosse exposto aos riscos da militância política.
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Prisão e assassinato
José
Carlos havia recebido a missão de tentar rearticular a Ação Popular em
Fortaleza, mas a falta de recursos e a intensa vigilância do regime tornaram a
tarefa inexequível. Sem quaisquer fontes de financiamento, ele e a esposa
passaram fome e tiveram de ser socorridos por familiares.
A APML
agora estava na mira da repressão. Desde a promulgação do AI-5, a ditadura
havia iniciado o ataque sistemático às organizações da luta armada e
assassinado os principais líderes da guerrilha. Consciente de que era uma
questão de tempo até ser descoberto e capturado, José Carlos resolveu sair de
Fortaleza.
Seus
passos, no entanto, já estavam sendo monitorados. José Carlos foi traído por
seu cunhado, Gilberto Prata Soares, um ex-militante da APML que se tornou
colaborador do regime. As informações repassadas por Gilberto ao Centro de
Inteligência do Exército serviram de base para uma série de operações que
levaram à captura e assassinato de vários membros da Ação Popular.
José
Carlos foi capturado em São Paulo em 19 de outubro de 1973. Ele estava na
cidade em busca de ajuda jurídica para seus companheiros que foram presos. A
operação foi coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mais infame dos
assassinos e torturadores do DOPS.
Encapuzado
e algemado, José Carlos foi levado para a sede do DOI-Codi em São Paulo, onde
foi interrogado por três dias. Depois, foi transferido para o DOI-Codi de
Recife.
Sua
esposa, Maria Madalena, foi presa em um sítio de Minas Gerais no dia 22 de
outubro, junto com Eduardo, um filho do primeiro casamento. Também no dia 22,
os agentes da ditadura prenderam Gildo Macedo, outro militante da APML. Ele foi
capturado em Salvador e transferido para Recife.
José
Carlos foi submetido a torturas brutais que se estenderam por vários dias. Foi
espancado, sofreu choques elétricos, teve seus dedos quebrados e o couro
cabeludo arrancado. Fernanda Gomes e Melânia Albuquerque, duas estudantes
presas no mesmo recinto, testemunharam as agressões.
Agonizando,
com os ouvidos e a boca sangrando, José Carlos ainda conseguiu pedir um favor
para Rubens Lemos, prisioneiro da cela vizinha: “Companheiro, meu nome é Mata
Machado. Sou dirigente nacional da Ação Popular. Estou morrendo. Se puder,
avise aos companheiros que eu não abri nada”.
José
Carlos Novaes da Mata Machado faleceu sob tortura no dia 28 de outubro de 1973.
Ele tinha 27 anos. Seu companheiro de organização, Gildo Macedo, foi
assassinado nesse mesmo dia.
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“Teatro de Caxangá”
Para
justificar a morte dos militantes, os agentes da ditadura divulgaram uma
explicação farsesca, em um episódio que ficou conhecido como “Teatro de
Caxangá”. Segundo a versão do governo, José e Gildo teriam sido assassinados
por um militante da própria APML de codinome “Antônio”, que estaria desconfiado
que os colegas estavam colaborando com o regime.
Além de
atribuir a autoria dos assassinatos à própria esquerda, a justificativa
serviria para rotular José e Gildo como traidores, gerando tensão e
desconfiança entre os membros da APML. Ao mesmo tempo, a farsa daria aos
militares um pretexto para justificar o desaparecimento de Paulo Stuart Wright,
o “Antônio”. Paulo era outro militante da AP que havia sido capturado,
torturado e morto pelo regime.
A nota
oficial foi divulgada no dia 31 de outubro, sendo amplamente repercutida pela
imprensa. José e Gildo foram sepultados como indigentes no Cemitério da Várzea,
no Recife.
Sabendo
que a explicação dos militares era uma fraude, o pai de José Carlos, Edgar,
apresentou uma denúncia junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana. Ele também encaminhou uma petição para a Secretaria de Segurança de
Pernambuco solicitando informações sobre o paradeiro do corpo do filho.
Conduzindo uma investigação paralela, a advogada Mércia Albuquerque conseguiu
localizar o corpo.
Edgar
fez o assunto chegar na imprensa internacional, levando jornais como o New York
Times e o Le Monde a publicarem matérias sobre os assassinatos. O advogado
também conquistou o apoio de parlamentares de oposição, incluindo o deputado
Aldo Fagundes e o senador Nelson Carneiro.
Pressionada
pela repercussão negativa do caso, a ditadura acabou permitindo a exumação e o
traslado do corpo de José Carlos para Belo Horizonte. Impôs, no entanto, a
condição de que o caixão com os restos mortais teria de ser lacrado e não
poderia ser aberto “sob hipótese nenhuma”. Os militares também proibiram a
cobertura da imprensa.
José
Carlos foi sepultado em novembro de 1973 no Cemitério Parque da Colina, em Belo
Horizonte. A identidade do militante, no entanto, só foi confirmada em 1990,
após a família solicitar a exumação dos restos mortais e realizar exames. O
pedido foi motivado pela descoberta da vala clandestina de Perus, contendo
ossadas de centenas de vítimas da ditadura.
O
governo brasileiro reconheceu formalmente responsabilidade do Estado pela morte
de José Carlos em 1996, quando seu nome foi incluso na lista de vítimas da
ditadura elaborado pela Comissão Especial do Ministério da Justiça. A viúva de
José Carlos entrou com pedido de indenização em 1999. O pagamento somente
ocorreu em 2023, após uma série de recursos interpostos pela União.
A vida
do dirigente da APML foi retratada no livro “Zé – José Carlos Novais da Mata
Machado”, escrito por Samarone Lima. O livro serviu de base para o filme “Zé”,
dirigido por Rafael Conde e lançado em 2023, no aniversário de 50 anos da morte
de José Carlos.
Fonte:
Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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