sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Crimes da ditadura: 52 anos do assassinato de José Carlos da Mata Machado

Há 52 anos, em 28 de outubro de 1973, o líder estudantil José Carlos da Mata Machado era assassinado por agentes da ditadura militar brasileira.

José Carlos se juntou à luta contra a ditadura logo após o golpe de 1964, quando era estudante de direito da UFMG. Vice-presidente da UNE, ele foi um dos mais de 900 estudantes presos pelo regime durante o ataque ao Congresso de Ibiúna.

Líder estudantil foi traído pelo cunhado e assassinado por agentes militares brasileiros em 1973

Ligado aos setores progressistas da Igreja Católica, José Carlos se filiou à Ação Popular Marxista-Leninista e tentou organizar o movimento de resistência em Fortaleza.

O militante foi traído e entregue aos militares pelo próprio cunhado, morrendo após 10 dias seguidos de tortura. O regime tentou ocultar a responsabilidade pela sua morte armando a farsa do “Teatro de Caxangá”.

<><> Juventude e atuação no movimento estudantil

José Carlos Novaes da Mata Machado nasceu em 20 de março de 1946 no Rio de Janeiro. Era filho da dona de casa Yedda Novaes e do jornalista e jurista Edgar Godoy da Mata Machado. Seu pai era um intelectual ativo na vida política do país.

Colunista do jornal O Diário, Edgar foi um dos principais opositores do Estado Novo, denunciando os abusos autoritários do regime de Getúlio Vargas. Também foi um dos fundadores da Faculdade Mineira de Direito e deputado pela União Democrática Nacional (UDN).

A família se mudou para Belo Horizonte quando José Carlos ainda era criança, instalando-se no bairro de Funcionários. Ele frequentou o ensino primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e concluiu o curso clássico no Colégio Estadual de Minas Gerais. Estudante aplicado, passou em primeiro lugar para o curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1964.

O ingresso de José Carlos na universidade coincidiu com o advento do golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. A instauração da ditadura militar foi seguida pela suspensão dos direitos políticos, pela cassação dos parlamentares de oposição e pela intervenção nos sindicatos, nas universidades e nos meios de comunicação.

José Carlos se envolveu ativamente no movimento estudantil, que então fervilhava com protestos contra a ditadura. Ele participou de debates, assembleias e protestos exigindo a redemocratização e a restauração dos direitos e garantias constitucionais. O jovem foi um dos fundadores do Grupo de Alunos da Turma de 1964 (GAT-64), uma agremiação que exerceu um importante papel de coordenação política dos estudantes.

A militância no movimento estudantil era uma atividade cada vez mais arriscada. Ainda em 1964, a ditadura havia ordenado o fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE) e banido as atividades políticas no ambiente universitário. A repressão ao movimento estudantil se agravou continuamente desde então, resultando em violentas invasões às universidades, prisões em massa, torturas e assassinatos.

A truculência do regime não intimidou José Carlos. Politizado e eloquente, ele se destacou como um dos principais líderes do movimento estudantil em Minas Gerais. Em 1967, tornou-se presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), órgão de representação dos discentes de Direito da UFMG.

No mesmo ano, José Carlos foi eleito vice-presidente da UNE, assumindo o comando de diversas tarefas da entidade, então relegada à atuação clandestina. Ele chegou a ser preso em maio de 1968, acusado de “subversão”, e ficou detido por mais de um mês.

<><> Queda de Ibiúna e a Ação Popular

Os embates entre a UNE e a ditadura militar chegaram ao ápice justamente no período em que José Carlos integrava a cúpula da instituição.

O assassinato do estudante secundarista Edson Luís Lima Souto em março de 1968 desatou uma onda de protestos por todo o Brasil, atingindo o seu paroxismo com a Passeata dos Cem Mil, uma gigantesca manifestação organizada pelos estudantes no centro do Rio de Janeiro.

Preocupados com o vigor da resistência, os militares intensificaram a repressão ao movimento estudantil. Em agosto de 1968, um protesto de alunos da UnB foi violentamente esmagado por agentes da ditadura, resultando em mais de 60 prisões.

Dois meses depois, os militares reprimiram o 30º Congresso da UNE, que estava sendo realizado secretamente em um sítio em Ibiúna, no interior paulista. José Carlos foi um dos mais de 900 estudantes presos na operação. Ele foi levado para a sede do DOPS em Belo Horizonte e depois transferido para o Presídio Tiradentes, em São Paulo, ficando encarcerado por oito meses.

Edgar, o pai de José Carlos, também se tornou alvo do regime. Opositor da ditadura, ele havia sido eleito deputado federal pelo MDB em 1966. Após a promulgação do AI-5 em dezembro de 1968, Edgar teve seu mandato parlamentar cassado. Ele também perdeu os direitos políticos, teve sua cátedra revogada e foi afastado das funções na Faculdade de Direito.

José Carlos foi libertado em junho de 1969, retomando imediatamente sua atuação política. A exemplo de seu pai, José se perfilava aos setores progressistas da Igreja Católica. Durante sua atuação no movimento estudantil, ele se filiou à Ação Popular (AP), uma agremiação vinculada à esquerda católica, defensora do socialismo humanista.

Em resposta às ofensivas violentas da ditadura, a AP radicalizaria progressivamente sua linha política, adotando uma postura revolucionária e passando a apoiar a luta armada contra o regime.

As divergências internas sobre as estratégias adotadas pela organização ocasionaram a cisão da AP em 1971. José Carlos permaneceu ligado ao grupo intitulado Ação Popular Marxista-Leninista (APML), uma facção mais próxima do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), integrada por nomes como Renato Rabelo, Aldo Arantes, Haroldo Lima e Duarte Pereira.

Fugindo do monitoramento dos órgãos repressivos, José Carlos deixou Belo Horizonte e iniciou um périplo pelo Brasil usando nomes falsos. Em 1970, ele se casou com Maria Madalena Prata Soares, também militante da AP. O casal teve um filho em 1972, batizado de Dorival.

Pouco após o nascimento da criança, José Carlos e Maria Madalena se mudaram para Fortaleza, onde viveram em uma favela. O bebê foi entregue à custódia dos avós paternos, para evitar que fosse exposto aos riscos da militância política.

<><> Prisão e assassinato

José Carlos havia recebido a missão de tentar rearticular a Ação Popular em Fortaleza, mas a falta de recursos e a intensa vigilância do regime tornaram a tarefa inexequível. Sem quaisquer fontes de financiamento, ele e a esposa passaram fome e tiveram de ser socorridos por familiares.

A APML agora estava na mira da repressão. Desde a promulgação do AI-5, a ditadura havia iniciado o ataque sistemático às organizações da luta armada e assassinado os principais líderes da guerrilha. Consciente de que era uma questão de tempo até ser descoberto e capturado, José Carlos resolveu sair de Fortaleza.

Seus passos, no entanto, já estavam sendo monitorados. José Carlos foi traído por seu cunhado, Gilberto Prata Soares, um ex-militante da APML que se tornou colaborador do regime. As informações repassadas por Gilberto ao Centro de Inteligência do Exército serviram de base para uma série de operações que levaram à captura e assassinato de vários membros da Ação Popular.

José Carlos foi capturado em São Paulo em 19 de outubro de 1973. Ele estava na cidade em busca de ajuda jurídica para seus companheiros que foram presos. A operação foi coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mais infame dos assassinos e torturadores do DOPS.

Encapuzado e algemado, José Carlos foi levado para a sede do DOI-Codi em São Paulo, onde foi interrogado por três dias. Depois, foi transferido para o DOI-Codi de Recife.

Sua esposa, Maria Madalena, foi presa em um sítio de Minas Gerais no dia 22 de outubro, junto com Eduardo, um filho do primeiro casamento. Também no dia 22, os agentes da ditadura prenderam Gildo Macedo, outro militante da APML. Ele foi capturado em Salvador e transferido para Recife.

José Carlos foi submetido a torturas brutais que se estenderam por vários dias. Foi espancado, sofreu choques elétricos, teve seus dedos quebrados e o couro cabeludo arrancado. Fernanda Gomes e Melânia Albuquerque, duas estudantes presas no mesmo recinto, testemunharam as agressões.

Agonizando, com os ouvidos e a boca sangrando, José Carlos ainda conseguiu pedir um favor para Rubens Lemos, prisioneiro da cela vizinha: “Companheiro, meu nome é Mata Machado. Sou dirigente nacional da Ação Popular. Estou morrendo. Se puder, avise aos companheiros que eu não abri nada”.

José Carlos Novaes da Mata Machado faleceu sob tortura no dia 28 de outubro de 1973. Ele tinha 27 anos. Seu companheiro de organização, Gildo Macedo, foi assassinado nesse mesmo dia.

<><> “Teatro de Caxangá”

Para justificar a morte dos militantes, os agentes da ditadura divulgaram uma explicação farsesca, em um episódio que ficou conhecido como “Teatro de Caxangá”. Segundo a versão do governo, José e Gildo teriam sido assassinados por um militante da própria APML de codinome “Antônio”, que estaria desconfiado que os colegas estavam colaborando com o regime.

Além de atribuir a autoria dos assassinatos à própria esquerda, a justificativa serviria para rotular José e Gildo como traidores, gerando tensão e desconfiança entre os membros da APML. Ao mesmo tempo, a farsa daria aos militares um pretexto para justificar o desaparecimento de Paulo Stuart Wright, o “Antônio”. Paulo era outro militante da AP que havia sido capturado, torturado e morto pelo regime.

A nota oficial foi divulgada no dia 31 de outubro, sendo amplamente repercutida pela imprensa. José e Gildo foram sepultados como indigentes no Cemitério da Várzea, no Recife.

Sabendo que a explicação dos militares era uma fraude, o pai de José Carlos, Edgar, apresentou uma denúncia junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Ele também encaminhou uma petição para a Secretaria de Segurança de Pernambuco solicitando informações sobre o paradeiro do corpo do filho. Conduzindo uma investigação paralela, a advogada Mércia Albuquerque conseguiu localizar o corpo.

Edgar fez o assunto chegar na imprensa internacional, levando jornais como o New York Times e o Le Monde a publicarem matérias sobre os assassinatos. O advogado também conquistou o apoio de parlamentares de oposição, incluindo o deputado Aldo Fagundes e o senador Nelson Carneiro.

Pressionada pela repercussão negativa do caso, a ditadura acabou permitindo a exumação e o traslado do corpo de José Carlos para Belo Horizonte. Impôs, no entanto, a condição de que o caixão com os restos mortais teria de ser lacrado e não poderia ser aberto “sob hipótese nenhuma”. Os militares também proibiram a cobertura da imprensa.

José Carlos foi sepultado em novembro de 1973 no Cemitério Parque da Colina, em Belo Horizonte. A identidade do militante, no entanto, só foi confirmada em 1990, após a família solicitar a exumação dos restos mortais e realizar exames. O pedido foi motivado pela descoberta da vala clandestina de Perus, contendo ossadas de centenas de vítimas da ditadura.

O governo brasileiro reconheceu formalmente responsabilidade do Estado pela morte de José Carlos em 1996, quando seu nome foi incluso na lista de vítimas da ditadura elaborado pela Comissão Especial do Ministério da Justiça. A viúva de José Carlos entrou com pedido de indenização em 1999. O pagamento somente ocorreu em 2023, após uma série de recursos interpostos pela União.

A vida do dirigente da APML foi retratada no livro “Zé – José Carlos Novais da Mata Machado”, escrito por Samarone Lima. O livro serviu de base para o filme “Zé”, dirigido por Rafael Conde e lançado em 2023, no aniversário de 50 anos da morte de José Carlos.

 

Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

 

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