“Esta
terra tem dono”. Assim como no período colonial, segue o cerco ao povo Mbya
Guarani no RS
Com a
comunidade Mbya Guarani sob ameaça e com o Estado entregando uma cifra
milionária para projetos de infraestrutura que não vão beneficiar os povos
indígenas. É assim que o Rio Grande do Sul vai comemorar os 400 anos das
Reduções Jesuíticas-Guaraníticas. À revelia do povo Mbya Guarani e da lei, o
governador Eduardo Leite encaminhou em regime de urgência o Projeto de Lei
280/2025. A proposta prevê a doação da área ocupada pela comunidade indígena ao
município de Viamão. Um projeto nefasto que, segundo o Cacique Eloir Werá
Xondaro, “nada mais é do que um ataque ao povo Guarani”. A área em questão,
cerca de 150 hectares, pertence ao Estado e estava sob responsabilidade da
antiga Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária – Fepagro, extinta em 2017. O
projeto controverso visa doar 88,8 hectares para Viamão. A cidade pretende
entregar o terreno à iniciativa privada para a construção de um Centro
Logístico, Empresarial e Tecnológico. No entanto, na visão do indígena, é mais
um projeto que busca fortalecer a especulação imobiliária por meio de “acordos
políticos” entre políticos do munícipio e Leite. No local vivem 57 famílias
Guarani Mbya, que ocuparam a área na retomada Tekoa Nhe’engatu desde fevereiro
de 2024. Um território ancestral em que a comunidade já está estabelecida: há
residências, plantações, atendimento de saúde, escola e a Opy, a “casa de
reza”. Além disso, o Executivo Federal já manifestou reconhecimento da
prioridade para regularização e a Fundação Nacional dos Povos indígenas –
FUNAI, já qualificou o terreno, conforme aponta Werá Xondaro, na entrevista a
seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A
proposta do governador fere o Acordo de Cooperação Técnico assinado entre a
União, por meio do Ministério dos Povos Indígenas, e o governo gaúcho. Em
audiência de conciliação realizada no dia de 25 de agosto, relata o
entrevistado, mais uma vez a chefia estadual mostrou objeção a um acordo com o
povo Guarani. “O Estado se pôs contra e não quer ceder nada para a comunidade”,
sinaliza.
No
lançamento das comemorações dos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis,
Eduardo Leite destacou a importância das Missões na formação da identidade
gaúcha. No entanto, na hora de destinar os recursos e fazer a devida memória,
esqueceu dos atores principais das Missões: os povos indígenas.
Para o
Cacique Eloir Werá Xondaro, a celebração e o discurso são contraditórios. “Ao
mesmo tempo que o governador lança um programa de celebração dos 400 anos das
Reduções Jesuíticas Guaranis, ele ataca o povo Guarani”, assevera. Conforme o
entrevistado, "para o Estado, é uma data de celebração, mas para nós é uma
data de marcar territórios, de mostrar nossa presença aqui. E, principalmente,
repudiar tudo aquilo que o Estado tem feito em relação ao povo Guarani. Não
dando valor a esse povo, que faz parte do processo e da construção do Rio
Grande do Sul. Inclusive, por meio de trabalho forçado”.
A luta
dos indígenas, conforme explica o Cacique Eloir, é pelo direito à vida. “O
Estado tem um dever muito grande, uma dívida eterna para com os povos que aqui
existem. Não estamos cobrando isso, apenas queremos viver em paz. Queremos
viver tranquilamente em um território seguro, ter direito à saúde, à educação e
à habitação. Ter o direito de viver, na verdade”, argumenta.
Cacique
Eloir Werá Xondaro é Guarani Mbya e lidera a retomada da Tekoa Nhe’engatu,
localizada em Viamão, no Rio Grande do Sul. Acompanhe a página da retomada no
Instagram.
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Confira a entrevista.
• Em fevereiro de 2024, a comunidade
indígena Guarani Mbya iniciou a retomada da Tekoa Nhe’engatu. Pode nos explicar
qual área foi ocupada e a importância dela para a comunidade? A quem pertence o
território?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Em 14-02-2024, iniciamos a retomada Nhe’engatu. A retomada
foi feita aqui na antiga Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária – Fepagro,
em Viamão, a qual já foi extinta. Ocupamos essa área e estamos até agora aqui.
Esse
território é importante porque ainda tem um pouco de natureza disponível, tanto
em termos de água quanto em termos de mata. Sem falar que a terra é muito boa
para plantio.
Tem um
espaço muito importante para nós, para o Povo Guarani, onde podemos viver
tranquilamente. Aqui é possível cultivar as sementes tradicionais, criar os
animais e ter um pouco de espaço para andar; ter liberdade. Então, essa é a
retomada Nhe’engatu.
A área
pertence à Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e
Irrigação – SEAPI, a Secretaria de Agricultura do RS.
• Qual a atual situação da retomada?
Quantas famílias vivem no local? Há no local uma casa de rezas?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – A retomada atualmente tem 57 famílias vivendo no local.
Temos uma Opy [casa de reza], que fizemos quando entramos. Mas agora estamos
fazendo uma maior, que será permanente.
A
retomada está entre as 28 áreas prioritárias do acordo de cooperação técnica
[Termo de Cooperação Técnico assinado entre o estado do RS e a União que visa à
regularização de áreas ocupadas por comunidades indígenas]. Estamos
acompanhando essa situação.
• IHU – A área já foi identificada e
delimitada pela FUNAI? Pode explicar em que fase está o processo de
reconhecimento do território?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – A Fundação Nacional dos Povos indígenas – FUNAI já fez a
qualificação da área desde quando entramos. Não tem o Grupo de Trabalho de
estudo ainda, até porque a área está no acordo de cooperação técnica. Então,
estamos tentando regularizar pelo acordo de cooperação técnica, mas já tem a
qualificação da FUNAI, sim.
• Como está o processo de conciliação,
acordado entre FUNAI e governo do RS, para a regularização da área? Como estão
as coisas hoje?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Como mencionado, a área já foi qualificada pela FUNAI. O
Rio Grande do Sul entrou com o processo de reintegração de posse em julho de
2024. Houve a primeira audiência, onde o juiz indeferiu a liminar que o estado
pediu. Como a retomada está no acordo de cooperação técnica, quem está tratando
direto disso é o Ministério dos Povos Indígenas, não diretamente a FUNAI.
Porém, tem uma grande resistência por parte do Estado de não querer ceder esse
espaço para a aldeia. Tanto é que o governo lançou o Projeto de Lei – PL
280/2025, que cede 88 hectares para o município.
Tivemos
uma audiência de conciliação ontem [25-08-2025], também para ver qual a
possibilidade da permanência da comunidade na área total. O estado se pôs
contra e não quer ceder nada para a comunidade, além de descumprir o acordo de
cooperação técnica.
• IHU – O governo Eduardo Leite entrou com
um pedido judicial para a reintegração de posse da área, o que foi indeferido.
Como foi o impacto na comunidade quando recebeu a solicitação de reintegração
de posse?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Sim, o estado entrou com o processo de reintegração de
posse. Para nós já era algo esperado, pois é de praxe o estado fazer isso, pois
sempre fez e faz. Porém, com a audiência, esperávamos ter uma conciliação
favorável para a aldeia, para a permanência [da comunidade no local]. Mas,
enfim, o estado mantém uma posição de que não quer ceder e prefere dar para o
município. Parte da área vai ficar com a pesquisa e outra com o estado. Então,
essa é a posição do governo do Rio Grande do Sul.
Nos
surpreende isso, porque esperávamos um pouco mais de sensibilidade por parte do
estado em relação à população Guarani, mas vemos que o estado não está nem aí
para o povo Guarani, não considera como povo. Essa é a real situação.
• O senhor conhece o PL 280/2025
apresentado por Eduardo Leite, que prevê destinar parte do território dos
Guarani ao município de Viamão e, com isso, à construção de obras da iniciativa
privada?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Em relação ao Projeto de Lei, sim, temos informações e
entendemos o PL. O principal objetivo é justamente passar parte do território
para o município e, na sequência, a iniciativa privada instalar um centro
logístico. Vemos isso como um ataque contra o povo Guarani, porque esse é um
espaço de preservação também, e mesmo assim o Estado não vê esse lado. Então,
descumpre todos os acordos. O PL nada mais é do que um ataque ao povo Guarani.
• O que Viamão pretende fazer com a área?
Está confirmado o interesse em construir um centro logístico? O que se sabe
sobre o assunto?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – A posição do município é justamente essa: construir o
Centro Logístico e Tecnológico para o desenvolvimento do município. O discurso
deles é esse.
Eles
querem, dizem que é para isso. Mas o certo não se sabe, porque até o próprio PL
não tem uma certa clareza disso. A princípio, é para esse centro tecnológico,
mas não sabemos o que vai ser depois, se a posse chegar ao município.
Então,
a gente não sabe. O discurso é a construção desse centro tecnológico.
• Quais os interesses por trás desse
projeto de lei do governador do estado?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Até onde entendemos, o principal interesse são os acordos
políticos. São acordos políticos entre alguns líderes políticos do município e
o governador. Não é interesse para o desenvolvimento de Viamão, de gerar
emprego e renda. Não. Se fosse, haveria outros lugares para a instalação desse
centro tecnológico. Até porque o centro de Viamão, em termos de extensão
territorial, é muito grande. Então, há terra e outros espaços para [a
instalação do Centro Logístico], se fosse realmente esse o foco. Mas é mais um
acordo político de interesse partidário.
• Como o projeto ignora a legislação
vigente e o acordo estabelecido entre o governo federal, por meio da FUNAI, e o
governo gaúcho para a regularização de terras indígenas no estado?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – O Acordo de Cooperação Técnica foi assinado pela
Secretaria de Justiça do Estado e a União, via Ministério dos Povos Indígenas –
MPI. Para nós foi uma surpresa o governador passar por cima desses acordos.
Tanto a ação judicial correndo via Justiça Federal, a questão da reintegração
de posse, que estava indo para uma conciliação, quanto o Acordo de Cooperação
Técnica. O governador passa por cima de todos os acordos que têm, não respeita
o acordo que ele assinou via secretaria estadual.
Então,
não sei se o governador Leite está ciente do que ele está fazendo, do que
pretende fazer. Mas há de pensarmos e de refletir sobre principalmente esse PL,
que tenta passar por cima de todos os acordos levantados.
Este é
um governo que não está nem aí para a população indígena, nunca esteve
interessado nos povos indígenas. Isso é mais algo de praxe que o estado do Rio
Grande do Sul sempre tem feito e sempre fará.
• Houve uma mobilização Guarani Mbyá na
Assembleia Legislativa. Como os indígenas foram recebidos? Foi firmado algum
compromisso por parte dos parlamentares em relação ao projeto?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Sim, fizemos mobilizações na Assembleia. A oposição nos
recebeu muito bem, firmaram um acordo com a comunidade de votar contra o PL.
Porém, o número dos parlamentares governamentais é maior. Assim, de alguma
forma, se o PL for a votação, vai passar. A oposição tem somente 14 deputados e
a bancada governista tem cerca de 30. Mas a conversa com os parlamentares de
oposição foi muito boa, assim como a postura de cada um deles com quem tivemos
esse diálogo, além de firmarem o compromisso com a população.
Ver
essa foto no Instagram
• Caso o projeto seja aprovado, quais
serão as consequências para a comunidade Guarani Mbyá?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Caso o PL venha a ser aprovado, os impactos serão muito
grandes para à comunidade, porque essa parte que passará à prefeitura é a parte
onde justamente estão instaladas as famílias, com casas, plantações etc. Mas
também estamos cientes de que, mesmo que o PL passe, tem outros meios de barrar
depois, porque o PL 280 é inconstitucional.
Existe
todo um acordo por trás disso, que o Estado tem feito com a União. Então,
precisamos recorrer a isso também. É claro que haverá mais uma esfera
governamental contra os indígenas, que seria o município. Mesmo assim, estamos
firmes, vamos até a última instância para tentar reverter essa situação.
• Em 2026, celebram-se os 400 anos das
Missões Jesuíticas Guaranis. O governo gaúcho já lançou as celebrações oficiais
e anunciou investimentos de R$ 50 milhões. Alguma parte desse recurso virá para
a comunidade Mbyá Guarani?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – Ao mesmo tempo que o governador, o estado do Rio Grande do
Sul, lança um programa de celebração dos 400 anos das Reduções Jesuíticas
Guarani, ele ataca o povo Guarani. Porque é o povo Guarani que está nessa
retomada.
Existe
um investimento de R$ 50 milhões que o governador Leite liberou e lançou para
esse programa, do qual apenas R$ 330 mil serão destinados à população Mbya
Guarani. Porém, não está especificado para qual território ou quais aldeias o
dinheiro será destinado. Muito menos para a nossa retomada em Viamão.
Com
esses R$ 50 milhões, o RS deveria estar investindo em questão de infraestrutura
das aldeias, de educação escolar e saúde também. Infelizmente, o Estado tem
tratado mal a população Guarani, sempre deixando por último, com os restos e
com as migalhas.
É uma
total falta de consideração em relação ao povo Guarani. Para o estado, é uma
data de celebração, mas para nós é uma data de marcar territórios, de mostrar
nossa presença aqui. E, principalmente, um momento para repudiar tudo aquilo
que o estado tem feito para o povo Guarani, não dando valor a esse povo, que
faz parte do processo e da construção do Rio Grande do Sul, inclusive por meio
de trabalho forçado, há tempos, e como cidadão também na atualidade. Então, o
RS precisa ter um olhar com mais atenção em relação ao nosso povo, que tanto
respeito merece.
• Deseja acrescentar algo?
Cacique
Eloir Werá Xondaro – O Rio Grande do Sul tem um dever muito grande, uma dívida
eterna para com os povos que aqui existem. Não estamos cobrando isso, apenas
queremos viver em paz. Queremos viver tranquilamente em um território seguro,
ter direito à saúde, à educação e à habitação. Ter o direito de viver, na
verdade.
O
estado tem o dever de fazer com que nossos direitos sejam cumpridos. Ele não
tem que continuar ignorando esses direitos, principalmente a existência do povo
Guarani. Está mais do que na hora de o governo estadual rever suas ações, sua
posição em relação aos povos indígenas. Nós, tanto quanto a sociedade não
indígena, temos direitos e somos cidadãos. Compomos o Estado com deveres e
direitos. E esses direitos não estão sendo cumpridos. Nossos deveres nós
estamos cumprindo. Porém, nossos direitos não estão sendo cumpridos. O estado
do Rio Grande do Sul precisa rever seus atos em relação ao povo Guarani.
Fonte:
Entrevista especial Eloir Werá Xondaro, em IHU

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