A
reforma administrativa tá chegando. E agora?
O
debate sobre a reforma administrativa (PEC 32/2020) que estava em voga, em um
período histórico mais recente, entre os anos de 2019 e 2022, voltou com força
em 2025, por meio de um grupo de trabalho (GT) no Congresso que avança com
baixa clareza, diálogo público restrito e indefinições sobre vínculos,
estabilidade e carreiras. Conforme noticiado amplamente na mídia no dia 25 de
agosto é anunciado que a reforma administrativa entra na pauta prioritária da
Câmara, afirma Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, é
reforçado o status central dessa agenda política no Congresso e sinaliza um
avanço pressionado, mesmo diante das diversas críticas na atual conjuntura
vivida no Brasil, o que agrava os riscos de avanços legislativos de caráter
austero e tecnobutrocrático, apressados e feitos sem a discussão apropriada e
igualitária com todos os atores envolvidos.
Não nos
enganemos, sobretudo a reforma administrativa, sob a ótica do mercado e da
iniciativa privada, representa um esforço para reconfigurar o Estado brasileiro
em função de interesses econômicos dominantes. Digamos que é uma entrega que
determinados setores da elite vinculados ao setor empresarial e financeiro
estão pedindo ao governo e ao congresso.
A
proposta de reduzir a presença do Estado como executor direto de políticas
sociais e aumentar a sua função reguladora mínima está em consonância com a
lógica neoliberal consolidada desde os anos 1990. Bresser-Pereira, ao discutir
a Reforma Gerencial do Estado, já apontava que a noção de eficiência e a ideia
de administração pública orientada por resultados se tornaram centrais em um
momento de ajuste estrutural e de pressão de organismos internacionais como
Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) etc. Essa lógica de
eficiência, no entanto, se traduziu em redução da estrutura estatal,
flexibilização de vínculos de trabalho e abertura de espaços de mercado para
empresas privadas em setores tradicionalmente públicos como a educação, saúde,
ambiente etc.
David
Harvey, em sua análise sobre o neoliberalismo, destacou que esse modelo não se
limita a um conjunto de medidas econômicas, mas corresponde a um projeto
político de redistribuição de poder e de riqueza em favor de elites políticas e
econômicas. A reforma administrativa brasileira está sendo construída porque,
ao flexibilizar – o quê na verdade é precarizar – a estabilidade e as formas de
acesso ao serviço público, amplia as condições de captura do Estado por
interesses privados e reduz a autonomia técnica de servidores(as). Esse
movimento tem como fim, apesar dos discursos e malabarismos semânticos, o
enfraquecimento da capacidade estatal de regular mercados, manter e fiscalizar
atividades estratégicas e garantir direitos universais a sociedade.
Em
Souza (2017) há uma dimensão sociológica a ser considerada nessa discussão que
é o pacto das elites brasileiras em torno da manutenção de privilégios e da
reprodução de desigualdades históricas e estruturais. Supostas reformas como a
administrativa não atacam os privilégios localizados no topo do funcionalismo e
nos mecanismos de reprodução das classes dominantes, nem mesmo os(as)
servidores(as) que não cumprem suas responsabilidades e obrigações funcionais.
Se concentram na base, onde estão a maioria dos(as) servidores(as) que garantem
direitos sociais fundamentais. Assim, a narrativa da modernização e do combate
a supostos privilégios se revela, na prática, um mecanismo de precarização do
serviço público e de transferência de funções para o setor privado, reforçando
a desigualdade e aprofundando a dependência do Estado em relação a interesses
empresariais e alheios ao conjunto da sociedade que mais necessita de serviços
públicos.
O
mercado e a iniciativa privada objetivam na reforma administrativa uma
oportunidade de expandir a terceirização e as parcerias público-privadas,
capturar fatias do orçamento público e obter maior influência sobre políticas e
regulações. A estabilidade e os concursos, que funcionam como barreiras
republicanas contra o clientelismo, são mais enfraquecidos, abrindo caminho
para contratações temporárias para as carreiras que não são consideradas
típicas de estado. Isso tornará nomeações e seleções no serviço público
tendencialmente mais suscetíveis a pressões políticas e econômicas. Nesse
cenário, o Estado se torna menos capaz de coordenar políticas de longo prazo,
mais vulnerável a ciclos eleitorais, interesses de famílias tradicionais na
política para nomeação em cargos e a interesses privados nacionais e
internacionais de curto prazo, e mais dependente de soluções privadas que,
longe de serem universais, são orientadas pela lógica da lucratividade,
eficiência alheia aos interesses da maioria da sociedade e a manutenção da
desigualdade estrutural.
Ou
seja, a reforma administrativa que está em pauta no Congresso não é algo apenas
de interesse do funcionalismo público, mas da sociedade brasileira no que tange
a acesso e garantia a direitos sociais básicos e a construção de direitos
universais.
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O que notas técnicas de sindicatos, organizações e movimentos sociais trazem?
Além
disso, de imediato o que se percebe é que a justificativa para fazer a reforma
o ponto de vista fiscal, a promessa de “economia estrutural”, que está
alicerçado no projeto do governo Lula 3 que é o arcabouço fiscal, carece de
base consistente: a Nota Técnica nº 69/2021 da Consultoria de Orçamentos do
Senado apontou que os efeitos da PEC 32 eram, na melhor das hipóteses, incertos
e limitados, e sugeriu medidas alternativas mais eficazes para qualificar os
gastos com pessoal. A ANFIP reforçou a crítica, alertando que a proposta
poderia agravar o panorama fiscal ao desorganizar capacidades essenciais de
arrecadação, fiscalização e planejamento.
As
análises do DIEESE apontam que a reforma desloca o foco da gestão pública
consolidada para a precarização dos vínculos e o enfraquecimento de garantias
republicanas. A Nota Técnica nº 254/2021 demonstrou que a combinação de novas
contratações, instabilidade e discricionariedade em carreiras compromete acesso
e qualidade dos serviços, sobretudo nas áreas de saúde, educação e assistência.
Em dois
artigos recentes publicados no site Outras Palavras se aprofundam essa crítica.
Primeiro, o texto “A quem interessa a ‘Reforma’ Administrativa?” expõe que o
discurso de que o serviço público seria “inchado” e ineficiente é um mito que,
repetido insistentemente, legitima cortes e flexibilizações, embora os
desperdícios de fato estejam em segmentos mais privilegiados e não na base do
funcionalismo. No outro artigo “Os riscos da Reforma Administrativa” ainda há o
alerta “A reforma de que o Brasil precisa é aquela que serve à maioria da
população, especialmente às pessoas que dependem de bens e serviços públicos de
qualidade. Em outras palavras, o Brasil necessita de um Estado de bem-estar
social, uma economia verde e digital e uma democracia resiliente.”
Um
outro vetor de preocupação está no uso da remuneração por produtividade como
solução simplista. Em outra análise
publicada no JOTA alerta-se que, ao tentar medir produtividade em serviços
públicos complexos, incentiva-se o “jogo de indicadores”, priorizam-se tarefas
mensuráveis em detrimento do essencial, corroem-se as cooperações e fomentam-se
práticas de curto prazo. Essas medidas tendem a deslocar prioridades públicas,
aprofundar desigualdades territoriais e prejudicar a eficácia do serviço
público.
Ou
seja, somando-se esses elementos, a contradição se torna clara: a proposta de
reforma reflete um ideal de eficiência e economia, mas destrói capacidades
estatais, sem enfrentar privilégios factuais, históricos e estruturais,
oferecendo na prática um Estado desmantelado e menos capaz de coordenar
políticas de longo prazo em um momento em que o país carece de planejamento
para enfrentar crises geopolíticas, sociais, econômicas e climáticas. Isto é,
não faz sentido uma reforma administrativa que não seja no sentido de
fortalecer o Estado em suas diretrizes
para promover práticas de gestão administrativa e de pessoas com foco na
resolução de gargalos reais como políticas públicas orientadas por dados e
indicadores sociais públicos, não por interesses de deputados(as) e
senadores(as) via emendas, por investimento em tecnologia, nos processos, na
execução orçamentária, coordenação e na gestão com base na soberania popular
(vide discussão feita no livro “570 dias no governo Lula 3”).
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E o governo Lula 3 diante da Reforma administrativa?
A
posição do governo Lula 3 diante da reforma administrativa é marcada por
ambiguidade e contradições, o que pode ser visto na recente entrevista recente
concedida por Esther Dweck, ministra do MGI. Desde a transição em 2023, o
governo adotou um discurso de que não retomaria a PEC 32 apresentada no governo
anterior, considerada uma proposta abertamente hostil ao serviço público. O
discurso oficial afirmava que qualquer debate sobre modernização da gestão
pública deveria ser construído com diálogo e com foco na valorização do
servidor. No entanto, com o avanço das negociações no Congresso em 2025, o
Planalto não se colocou frontalmente contra a retomada da reforma e, em
diferentes momentos, ministros da área econômica e da Casa Civil sinalizaram
disposição em negociar pontos com a base congressual.
Esse
movimento revela uma tática para demonstrar compromisso com o projeto de
governo que é o arcabouço fiscal e com a agenda de responsabilidade exigida
pelo mercado, mas cria uma posição ambígua: de um lado, o governo nega a
reforma nos termos originais da PEC 32, de outro aceita discuti-la para atender
pressões políticas e fiscais.
Essa
postura coloca em evidência a contradição entre a base social e a base política
do governo. Os sindicatos, as centrais e os movimentos sociais que foram
pilares históricos de apoio a Lula se manifestam de forma contundente contra a
reforma, denunciando riscos de precarização do serviço público. Por outro lado,
os partidos que compõem o centrão e setores empresariais, fundamentais para a
carcomida governabilidade, pressionam pela aprovação de uma pauta de
modernização do Estado e tratam a reforma administrativa como prioridade. Essa
tensão revela o dilema do governo que já está em modo campanha eleitoral: se
assumir a defesa plena de sua base social pode enfrentar custos no Congresso,
mas se ceder à pressão congressual corre o risco de se distanciar de sindicatos
e movimentos.
O
discurso oficial de modernização busca suavizar o debate, enfatizando termos
como digitalização de processos, carreiras mais atrativas e racionalização
administrativa. Todavia, ao não se posicionar claramente contra a
flexibilização da estabilidade ou contra alterações nos vínculos, o governo se
aproxima de uma reforma precarizante. A ambivalência atual repete contradições
já observadas em outras agendas do Lula 3, como na política ambiental, na
questão agrária e na política fiscal, com a promessa de priorizar direitos
sociais ao mesmo tempo em que se mantém um arcabouço fiscal restritivo que
engessa o orçamento.
As
consequências dessa postura podem ser múltiplas. Para os(as) servidores(as)
públicos(as), o governo pode perder legitimidade relativa ao assumir posturas
ambíguas e contraditórias ao não ter um projeto estratégico de país, inclusive
para o serviço público, além do arcabouço fiscal. Para a governabilidade, a
concessão a pressões do centrão pode garantir vitórias momentâneas, tende a
enfraquecer o capital político diante de sua base social tradicional. Para o
nosso esboço de democracia, há o risco de que um governo eleito com a promessa
de recompor o Estado, após o desmonte bolsonarista, acabe por entregar uma
agenda que mantém e amplia a lógica neoliberal de austeridade e desmonte
institucional.
Chama-se
atenção que os aspectos que têm respaldo da sociedade para mudanças, como as
assimetrias de remuneração entre os três poderes e a aposentadoria dos
militares não são pautados por parte do discurso oficial do governo e muito
menos na relatoria da PEC.
Bom, a
ver os próximos desdobramentos das articulações do governo Lula 3 junto as
bancadas do Congresso Nacional, com a Faria Lima e demais setores privados
interessados na reforma administrativa.
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E as centrais sindicais?
Um
aspecto fundamental do atual debate até o momento pode ser a mobilização
sindical. A oportunidade e o espaço estão aí para serem ocupados. Diferentes
entidades têm se articulado debates e formas de barrar a reforma
administrativa. O Fórum Nacional dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe), a
Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), o
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN),
a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Federação
Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e
Assistência Social (Fenasps), entre outros, têm organizado agendas para
discutir a proposta.
Além da
mobilização de base, os sindicatos têm investido em pressão parlamentar. A
estratégia concentra-se em três frentes: realização de audiências públicas para
expor os riscos da reforma, busca de diálogo com parlamentares de centro (MDB,
PSD e União Brasil) e aproximação com a Frente Parlamentar Mista em Defesa do
Serviço Público. Essa movimentação política reforça o alerta de que, caso a
proposta avance em regime de urgência, o espaço de diálogo poderá ser ainda
mais reduzido do que já está e aumente o risco de passar um texto que traga
sérios revezes ao funcionalismo público.
Centrais
sindicais como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos
Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Intersindical têm promovido
campanhas, a seu jeito e com suas limitações conjunturais e políticas,
debatendo os mitos de que o Estado brasileiro estaria “inchado” ou que os
servidores “ganham muito”. Dados sistematizados mostram que o número de
servidores no Brasil é proporcionalmente menor que a média da OCDE e que a
maioria das carreiras de base recebe salários abaixo da média das ocupações de
nível superior.
O
desafio de construir mobilizações de grande lastro, contudo, permanece: a)
superar a fragmentação e as contradições internas entre categorias e entidades
sindicais devido à proximidade ou distanciamento político e partidário com o
governo; b) disputar a opinião pública contra o discurso de modernização e
privilégios generalizados propagado pela mídia hegemônica; e c) enfrentar a
pressão de setores privados que colocam a reforma como prioridade imediata no
Congresso.
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E agora? O quê fazer?
Parece
que a conjuntura impõe que precisamos nos mobilizar o quanto antes diante da
reforma administrativa porque o processo legislativo relativo a essa proposta
tende a ser rápido, marcado por negociações intensas no Congresso e com baixo
nível de participação popular. A experiência recente com outras reformas
estruturais, como a previdenciária em 2019 e a trabalhista em 2017, mostra que,
quando a mobilização social ocorre apenas depois do avanço do texto, as
possibilidades de barrar retrocessos ou de introduzir mudanças significativas e
de interesse popular ficam muito reduzidas. Fora que nos processos de votação
nos plenários os textos são alterados e podem ser colocados “jabutis” passando
por cima do acúmulo de discussões feitas anteriormente. Por isso da necessidade
de constante articulação e vigilância popular junto ao Congresso antes que
decisões de grande impacto nessa reforma sejam tomadas a portas fechadas.
A
reforma administrativa não é apenas uma questão de gestão tecnocrática ou de
ajuste fiscal, mas um projeto que toca diretamente na estrutura do Estado
brasileiro e o modo como ele pode garantir direitos sociais. Até porque, diante
da desigualdade social estrutural brutal que temos no Brasil, a máquina pública
brasileira necessita ser ampliada para assegurar dignidade à população e
direitos universais como educação, saúde, ambiente, moradia, transporte público
etc.
Parece
que o quanto antes sindicatos, movimentos sociais, entidades acadêmicas e
organizações da sociedade civil se articularem, maior será a capacidade de
disputar narrativas, de esclarecer a população sobre os efeitos concretos da
reforma, de pressionar parlamentares e mobilizar manifestações de peso para que
haja um amplo debate na sociedade sobre a reforma administrativa e os seus
efeitos.
Fonte:
Por Sérgio Botton Barcellos, em Racismo Ambiental

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