Adultização:
infância negra é negligenciada no Brasil, diz pesquisador
O
YOUTUBER Felca retomou o debate sobre a chamada “adultização” de crianças e
adolescentes — a exposição de pessoas com menos de 18 anos à erotização precoce
e à exploração do trabalho nas redes.
Segundo
o professor João Marcos Bigon, Coordenador Regional do Equidade.Info e Mestre
em Relações Étnico Raciais pelo CEFET-RJ (Centro Federal de Educação
Tecnológica do Rio de Janeiro), há um recorte racial que não tem sido levado
devidamente em conta nesse debate.
“Quando
falamos de adultização, a infância pensada é sempre branca. As crianças negras
quase nunca entram nessa matemática”, diz Bigon, em entrevista exclusiva à
Repórter Brasil para marcar o Dia da Infância.
Além de
serem cobradas a assumir responsabilidades, crianças negras são levadas a
trabalhar desde cedo e também estão mais expostas à sexualização precoce de
seus corpos, um processo marcado pelo racismo estrutural.
Bigon
afirma que a infância negra vem sendo historicamente negligenciada desde as
primeiras leis abolicionistas, como a Lei do Ventre Livre (1871). Embora
declarasse livres os filhos de pessoas escravizadas, a medida deixava as
crianças à própria sorte, sem proteção ou garantia de direitos.
Mais de
100 anos após a abolição da escravidão, as crianças negras ainda estão em uma
posição mais vulnerável do que as brancas. De acordo com a PNAD (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua 2023, embora crianças e
adolescentes pretos e pardos representem 59,9% da população de 5 a 17 anos,
eles correspondem a mais da metade (65,2%) daqueles em situação de trabalho
infantil.
A
desigualdade se repete nas piores formas de trabalho infantil, segundo a PNAD:
67,5% das vítimas são negras. Além disso, crianças negras recebem em média
menos pelo trabalho: R$ 707 por mês, contra R$ 875 das crianças brancas.
“Pessoas
negras são as mais expostas à vulnerabilidade social, à pobreza, à miséria, à
extrema pobreza e às doenças. Consequentemente, as crianças provenientes desses
contextos familiares serão afetadas por isso”, explica Bigon.
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Leia a entrevista na íntegra.
• O vídeo do Felca viralizou e reacendeu o
debate sobre adultização de crianças. O que você pode falar sobre a adultização
das crianças negras nas redes sociais?
A
adultização de crianças negras em redes sociais se difere em alguns pontos
específicos com relação a outras crianças. Por exemplo, não é incomum ver em
redes sociais conteúdo de crianças negras em alguma situação de vulnerabilidade
social, e o conteúdo ser tratado no lugar da superação, da comoção, e não [no
lugar] de um olhar de cuidado com aquela criança, de um olhar para a infância.
Para
além disso, há muito conteúdo também de crianças trabalhando, por exemplo,
vendendo bala na rua, e se criam certos discursos sobre aquela situação, que
não olham que aquilo é um contexto de trabalho infantil.
Há
também a exposição de meninas, sobretudo na fase da infância e adolescência.
Você abre os comentários e vê um abismo muito maior se ampliando: comentários
de hipersexualização e que esbarram muito em comentários relacionados à
pedofilia. Quando se trata de meninos negros, há um fator muito interessante
sobre o corpo, sobre o físico deles. Há comentários clássicos, que as pessoas
também fazem fora das redes sociais, como o “vai dar trabalho”, ou comentários
relacionados à virilidade masculina.
Existe
um universo de comentários, muitas vezes sutis, direcionados a crianças e
adolescentes negros em redes sociais que passam muito despercebidos, sobretudo
porque eles são feitos também na vida real. Não são comentários única e
exclusivamente feitos em rede social, mas são feitos abertamente pelas pessoas
fora das redes sociais.
• Como a adultização de crianças nas redes
sociais afeta as crianças negras? E qual a diferença para as demais crianças?
Quando
se traz a raça para o centro da conversa, trazemos esse diferencial: é preciso
compreender que é um problema que está fora da rede social, que a rede social
incorpora e torna isso ainda mais exponencial.
A
diferença para as crianças negras sendo adultizadas em rede social em relação a
crianças não negras é que há uma comoção diferente, uma naturalização de certas
situações quando essas crianças são negras, e não há a percepção de que esse
problema, que está sendo discutido a princípio como um problema da rede social,
é um problema da sociedade, um problema fora da rede social.
• Por que o recorte racial muitas vezes
fica de fora desse debate?
O
recorte racial muitas vezes fica de fora desse debate porque ele já está de
fora do debate fora das redes sociais. Mesmo quando se discute a adultização,
este é um debate antigo dentro do universo da educação e das paternidades e
maternidades, sobretudo das maternidades. Não é uma conversa nova. Embora o
Felca tenha uma proeminência em debater isso no âmbito de uma análise de rede
social, o debate sobre a adultização em si não é algo inédito.
A
conversa sobre raça fica fora do debate de adultização porque ele já é um
debate feito há muito tempo, a partir de uma mentalidade do “ser universal”,
que é pensar a criança, a infância como uma infância sem cor, sem raça, uma
infância branca. As crianças negras não são enquadradas, e as crianças
indígenas menos ainda, nessa matemática de se pensar a adultização de crianças,
seja dentro ou fora de rede social.
Então,
quando a discussão vai para a rede social, já vai com toda essa carga de
preconceito, discriminação e invisibilização que existe do lado de fora das
redes sociais. As crianças negras não são incluídas na lógica de se debater a
adultização, e quando essa conversa vai para a rede social, vai junto com tudo
que está fora, que é invisibilizar a questão racial, torná-la algo que talvez
orbite o tema, mas que não é central, mesmo considerando que o Brasil tem a
maior população negra fora da África. Esse é um tema que deveria ser central em
todos os debates da sociedade, sobretudo quando se fala de infâncias.
• O IBGE mostra que 65% das crianças em
situação de trabalho infantil são pretas ou pardas. Por que essa realidade
atinge de forma tão desigual as crianças negras?
Essa
realidade atinge as crianças negras de forma tão desigual porque as famílias
negras ou as crianças negras são parte de famílias que estão protagonizando os
índices de vulnerabilidade social no país. Pessoas negras são as mais expostas
à vulnerabilidade social, à pobreza, à miséria, à extrema pobreza e às doenças,
e consequentemente as crianças provenientes desses contextos familiares serão
afetadas por isso. Por esse motivo, há um número expressivíssimo (65% é muita
coisa) de crianças negras em situação de trabalho infantil.
O
segundo ponto é que, na história da cultura e da sociedade brasileira, no
contexto de pós-abolição, as leis de abolição, como a Lei do Ventre Livre,
trouxeram um peso muito grande de “descarrilhamento” da história da infância
negra para o país. É como se fosse o início de um modelo de infância
negligenciada.
Antes
da Lei do Ventre Livre, as crianças negras eram escravizadas, não tinham
infância e não eram reconhecidas como seres humanos, estando diretamente
ligadas ao trabalho duro, pesado, braçal, ou ao trabalho de serviço, de
serventia, utilitarista. Depois, com a Lei do Ventre Livre, essas crianças
teoricamente livres foram “jogadas à própria sorte”, muitas vezes sem seus
responsáveis ou com seus pais ainda escravizados. Essa matemática não encaixa:
se os pais eram escravizados e não livres cidadãos, quem criaria e educaria
essas crianças que estavam livres? Elas eram invisíveis.
Olhando
para a fundação das escolas, as crianças negras demoraram cerca de 200 anos
para estudar de forma organizada nas escolas para todos, para serem inseridas
no contexto da escola em constituição no país.
• O IBGE também aponta que muitas dessas
crianças acabam com frequência escolar menor que a média. Que impactos a
adultização das crianças negras traz para a educação e o desenvolvimento delas?
Temos
uma taxa de 69,1% dos que mais evadem do sistema de educação são negros, com
proeminência no ensino médio. Isso está diretamente ligado ao fato de que são
famílias que vivem em extrema pobreza, em situação de extrema precarização da
vida em todos os aspectos. Moram em casas precárias, com obras intermináveis,
em regiões conflagradas por guerra entre polícia e tráfico, entre vários outros
fatores. Esse é um contexto mais urbano e do Sudeste, mas em contextos do
Nordeste e Norte do país, pode-se falar também de ribeirinhos e quilombolas.
Esse
contexto faz com que a escola perca certo sentido na vida. E isso acontece por
diversos motivos.
A
escola trabalha com uma lógica de média e longa duração (estudar para o futuro)
que não faz sentido para a criança e o adolescente negro. Essas crianças têm
fome hoje,, não sabem o que será da vida delas na semana que vem por causa de
enchentes, guerras e, por conta disso, não podem ir à escola, o que acontece
com uma certa frequência na cidade do Rio de Janeiro.
Todo
esse contexto retira a ingenuidade, retira o mais essencial da infância, que é
não saber o que acontece ao seu entorno e simplesmente descobrir a vida. Quando
essas crianças e adolescentes negros são constantemente lembrados de que têm
que sair com identidade, que não podem andar com determinada roupa em
determinado lugar ou horário, eles perdem a inocência de um momento importante
da vida e passam a ter toda a malícia, a estratégia, o olhar que nós adultos
temos para a realidade. Nesse momento, a adultização ocorre ali constantemente
e se mescla com a relação com a escola.
Quando
a criança olha para a realidade em que toda a sua família trabalha muito, e que
isso é extremamente necessário para ter o que comer e viver, ela começa a não
entender qual a função da escola para ela. Ainda menos quando a escola é longe,
ou quando o currículo escolar não contempla a criança ou o adolescente negro em
seu panorama narrativo, não tem histórias sobre o povo negro, histórias de
sucesso sobre o povo negro, ou uma perspectiva positiva sobre a história negra.
Tudo
isso vira um somatório de coisas que reflete obviamente na evasão escolar. As
crianças vão abandonando a escola, que é um momento importante da vida para
elas entenderem que são crianças e adolescentes, e para entenderem a lógica da
coletividade, conhecer o novo e conviver com o diferente. Ela perde tudo isso e
se aproxima cada vez mais, não necessariamente de um mundo adulto, mas de um
limbo existencial que faz com que a vida adulta seja antecipada não por uma
questão lógica e natural da vida, mas por necessidades que ocorrem ali.
• A sexualização precoce também é uma
forma de adultização. Como isso atinge meninas negras e quais caminhos podem
ajudar a enfrentar o problema?
A
sexualização precoce atinge meninas negras em meio a um assunto maior, que é a
hipersexualização de corpos de pessoas negras, sobretudo de mulheres, no país
que é o país do carnaval. Ao discutir isso, precisamos abordar assuntos
espinhosos como o carnaval, o funk, estilos musicais ou elementos da nossa
cultura que se perdem um pouco na conversa sobre infância e preservação da
inocência.
É um
problema social muito maior de um país que é fruto de violência sexual contra
mulheres, abuso, assédio e pedofilia. Não podemos deixar de trazer esses
assuntos como assuntos que fazem parte do pano de fundo da cultura brasileira.
No período colonial, era muito comum que homens com idade para serem avôs de
uma menina basicamente comprassem essa menina menor de idade para casar. Até
hoje, em determinados locais do país, há turismo sexual para estrangeiros, o
que acontece com certa frequência no Norte e Nordeste do país.
A
sexualização vem muito de mãos dadas com a adultização, não só falando do
corpo, mas partindo do princípio: se a menina já está em casa fazendo comida,
se ela já pode ir aos lugares sozinha, se ela já pode fazer isso e aquilo, logo
ela já é mulher, logo ela já pode ter relações sexuais ou já pode ser olhada
com um olhar malicioso de quem quer ter relações sexuais com essa menina.
O que
precisamos urgentemente criar como caminho para enfrentar o problema é pensar
políticas públicas de proteção à infância com direcionamento específico. Como
políticas de combate à pedofilia, de combate à violência sexual contra crianças
e todo tipo de violência contra crianças negras. É fundamental pensar nesse
contexto, que estamos em um país que foi o último a abolir a escravidão, e que
existem outros mecanismos de violência que se perpetuam até hoje e são frutos
da escravidão.
• Qual o papel da internet hoje, tanto
como risco quanto como ferramenta de proteção, na vida de crianças negras?
A
internet hoje desempenha dois papéis importantes. O primeiro papel, como risco,
está relacionado a um debate em Brasília, até onde eu sei, sobre a
regulamentação da faixa etária para uso de rede social. Qual idade esse
adolescente deve ter para usar rede social? Primeiramente, há um problema sério
de uma geração de pais e responsáveis que não querem lidar com seus filhos e
entregam o celular, deixando a criança sem nenhuma regulamentação, sem controle
de tela, usando sem tempo de vigilância, acessando todo tipo de rede social,
vídeo e conteúdo. É preciso regulamentar uma faixa etária específica que proíba
crianças de criar e usar redes sociais que não são para crianças, por exemplo.
Não se trata de não usar nenhuma rede social, mas de ter um tipo de conteúdo
próprio para criança que seja regulamentado, vigiado, organizado e focal.
Segundo,
a rede social hoje é um espaço público. Diferente da rua, a rede social coloca
o adolescente e a criança em contato com pessoas do outro lado do mundo, sem
que se saiba quem são, qual a intencionalidade ou o uso que farão da rede
social. Se não há uma regulamentação real, estamos falando de crianças que
estão em seus quartos, na sala de casa, na varanda, conversando com pessoas em
outra cidade ou país, sem saber quem são.
A rede
social é, atualmente, um espaço público. Sem uma regulamentação efetiva,
crianças podem estar em seus quartos, salas ou varandas conversando com pessoas
em outras cidades ou países, sem conhecer suas identidades ou intenções.
• Quais políticas públicas ou iniciativas
sociais são fundamentais para garantir o direito de ser criança às crianças
negras?
Atualmente,
eu desconheço política pública para crianças negras. A gente tem leis voltadas
para a educação, mas elas são bem mais direcionadas para a gestão escolar e
para professores e professoras sobre como, de alguma forma, contemplar a
infância negra do que necessariamente para essas crianças. E aí, como
professor, sou bem decepcionado com isso, porque o que a gente precisa é de
política pública direcionada para as crianças, tendo elas como centro, não
tendo elas como um resultado ou como objetivo final da política pública.
Iniciativas
sociais, têm muitas. Então, eu acho que espaços de acolhimento para famílias
negras, de apoio e instrução, para famílias negras ou famílias que têm crianças
negras, são fundamentais. Isso inclui apoio para mães negras, mãe solo, apoio
para paternidade negra. Também são importantes espaços instrucionais com apoio
de psicopedagogas, de pedagogas, de pessoas da educação, da psicologia, que
pensem em infância, que tratem da infância, que tenham um olhar sensível para a
infância.
O meu
sonho, na verdade, é que este país começasse um plano urgente de construção de
política pública para crianças negras. Porque a gente pode discutir tudo: a
gente pode discutir as cotas na universidade, a gente pode discutir as cotas no
serviço público, a gente pode discutir ter o ministro negro no STF. Mas se a
gente não discutir a infância negra, tudo isso vai ser um fim em si mesmo.
Fonte:
Repórter Brasil

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