Grandezas
e misérias da energia
Esta
história foi iniciada em 1975, quando foram iniciados os estudos de inventário
Hidrelétrico da bacia Hidrográfica do do Xingu. Enquanto a Construtora Camargo
Corrêa instalava seu canteiro para começar a construir a usina de Tucuruí, no
rio Tocantins, a Eletronorte patrocinava os primeiros levantamentos na bacia do
Xingu, mais a oeste, com área só um pouco menor.
A
primeira etapa chegou melancolicamente ao fim em 1989. No auge de uma medição
de forças entre os grupos a favor e contra a usina, em Altamira, no Pará, a
indígena Tuíre (já falecida) ameaçou com um facão o então coordenador (e futuro
presidente, agora ex) da Eletronorte, Muniz Lopes. Muniz tentou se manter firme
diante da lâmina colocada a centímetros de seu rosto, mas seus olhos não
escondiam seu susto e tensão. Tuíre no local, Paulinho Payakan e Kube-í em
Washington, ao lado do etnoantropólogo (já falecido) Darrel Posey, deram o
coup-de-grâce no projeto.
A
reação dos indígenas arrematava, com seu simbolismo forte, constatação mais
prosaica: era inaceitável o projeto original, de um complexo aproveitamento
hidrelétrico, com cinco usinas, que iria inundar quase 22 mil quilômetros
quadrados, área equivalente à do Estado de Sergipe. Só as duas barragens da
Volta Grande, à altura de Altamira, provocariam o afogamento de 14,5 mil
quilômetros quadrados, quase cinco vezes a área do reservatório da usina de
Tucuruí (e quatro vezes o tamanho da região metropolitana de Belém).
O velho
projeto maquiado
A
reanimação do corpo moribundo da hidrelétrica ocorreu em grande estilo, Muniz
Lopes já no comando total do novo projeto, na década de 90. Nessa nova fase, a
área inundada foi reduzida sucessivamente: primeiro para 1.200 quilômetros
quadrados; em seguida, para 440 km2, o tamanho declarado definitivo, qualquer
que viesse a ser a motorização da barragem, porque a usina irá operar
praticamente a fio d’água, sem reservatório.
Essa
transformação miraculosa se devia a dois fatores. O primeiro, a eliminação (ao
menos no projeto) da barragem reguladora de Babaquara, a montante de Kararaô
(designação mudada para Belo Monte porque os indígenas se consideraram
linguisticamente ofendidos), que submergiria mais de 6 mil km2. O segundo fator
derivava da adução direta de água à casa de força, através de dois imensos
canais artificiais, que resultariam da retificação e concretagem de dois
igarapés naturais.
Essa
ligação, estabelecida entre um ponto a montante (anterior) ao início da curva
do rio e um ponto após a curva (a jusante), com desnível natural de 90 metros.
Essa obra teria a vantagem adicional de permitir ao construtor trabalhar a seco
no corpo da barragem e da casa de máquinas, sem qualquer obra de desvio do rio,
economizando dinheiro e tempo.
Reduzido
a 400 quilômetros quadrados (ou 40 mil hectares), correspondente à extensão das
cheias normais do rio, o reservatório do Xingu tem uma área quase cinco vezes
menor do que a do lago da hidrelétrica de Tucuruí. Mas teria um impacto ainda
menor porque, além de uma aldeia indígena, o único remanejamento significativo
de população que ela exigiria seria a de um bairro da cidade de Altamira, a
mais importante do vale. Mas esses moradores não sentiriam tanto a mudança por
já estarem acostumados às inundações periódicas do Xingu.
Maravilha
da engenharia? Os representantes da Eletronorte sempre tentaram transmitir a
imagem de Belo Monte como uma autêntica dádiva da natureza, ou mesmo divina:
seria possível gerar uma enorme quantidade de energia com o menor custo de kw
instalado possível no Brasil, inundando uma área muito pequena, remanejando
pouca gente, usando uma cidade já existente como ponto de apoio, o que
dispensaria construir uma nova vila no canteiro de obras, e construindo a
barragem sem precisar desviar o rio.
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As manipulações da Eletronorte
Enquanto
promovia espetáculos de relações públicas para vender a imagem de Belo Monte,
criava planos de desenvolvimento para o entorno do reservatório, apoiava a
criação de associação dos municípios afetados e realizava debates segmentados,
a Eletronorte concebia um projeto para que a obra fosse executada e operada
pela iniciativa privada. Delegou a si própria, porém, a tarefa de preparar o
projeto básico de engenharia e o EIA-Rima para o licenciamento ambiental da
usina. Espera investir o suficiente na fase de pré-construção para ficar com
30% do capital da empresa vencedora da licitação, que será realizada pela
Aneel, passando em frente essa participação quando a construção estiver
concluída – e, então, completamente privatizada. Esta foi a primeira novidade
de um grande projeto hidrelétrico na Amazônia, até então de integral
responsabilidade estatal. Na verdade, uma meia novidade: a Eletronorte definiu
a viabilidade econômica do empreendimento antes mesmo de haver aparecido o dono
do negócio.
Tradicionalmente,
a participação previsível do poder público em tais situações seria elaborar os
termos de referência da concorrência. Neles, definiria o que pretende da
concessão energética e com o que não concorda. O resto, ficaria sob o encargo
do investidor privado. Inclusive se vale à pena assumir a empreitada.
É
significativo que, adotado esse modelo heterodoxo, pela primeira vez um
empreendimento elétrico foi declarado de interesse estratégico para o país. A
partir de 17 de setembro de 2001, Belo Monte ocupou essa posição inédita,
reconhecida, em resolução assinada pelo presidente do Conselho Nacional de
Política Energética, José Jorge de Vasconcelos Lima, como estratégica “no
planejamento de expansão da hidreletricidade até o ano 2010”. Se dependesse do
governo federal, a usina teria começado a ser construída em 2002.
Ao
reconhecer o interesse estratégico da usina, o presidente do CNPE propôs que
fosse autorizada a continuidade de todos os estudos de viabilidade
econômico-financeira, ambiental e de engenharia do empreendimento. A
Eletronorte, responsável por esses trabalhos, entregou os documentos
necessários para permitir a outra agência estatal, a Aneel, lançar a
concorrência pública.
Mas não
o relatório de impacto ambiental, suspenso pela justiça federal em atendimento
a uma ação civil pública proposta pela Procuradoria da República, em função de
irregularidades no contrato assinado com a executora dos estudos, a Fadesp, a
fundação de pesquisas da Universidade Federal do Pará.
O
governo não ignorava que Belo Monte era uma obra polêmica. Ao conferir-lhe um
status especial, porém, indicou sua disposição de executá-la de qualquer
maneira, num momento em que o balanço energético do país dava sinais de
desequilíbrio (situação que poderia voltar depois da fase awguinte, de
excedente de energia no mercado, em função dos investimentos oficiais
insuficientes na infraestrutura do país). Alegou que para dispensar a
hidrelétrica do Xingu, seria preciso construir usinas térmicas a gás natural
que consumiriam 42 milhões de metros cúbicos por dia. Essa demanda exigiria
dobrar a oferta atual de gás do país. Ou então recorrer a oito usinas nucleares
iguais a Angra II.
A
importância estratégica de Belo Monte decorria das vantagens que, segundo os
argumentos apresentados pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (mantidos por
Lula, seu sucessor e oponente), ela iria incorporar ao sistema interligado
nacional. Como as necessidades adicionais de energia do Pará são mínimas, Belo
Monte poderia transferir quase toda a energia gerada, permitindo às usinas do
Nordeste e do Sudeste armazenar água em seus reservatórios para funcionar a
plena carga no período seco do ano.
Além
disso, como os cálculos da Eletronorte garantem que o custo da energia na
hidrelétrica do Xingu será baixo, Belo Monte permitirá ao governo postergar a
implantação de empreendimentos de custos mais elevados previstos para as
regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Combinando esses atrativos, a nova
hidrelétrica reduziria o risco de déficit no sistema nos próximos anos.
Os
técnicos da Eletronorte não economizam entusiasmo. Eles dizem que Xingó, no
Nordeste, é o único aproveitamento energético melhor do que o de Belo Monte no
Brasil. Queriam começar o logo a obra para que o primeiro dos 20 grandes
geradores a serem instalados na usina pudessem começar a operar em março de
2008. A cada três ou quatro meses uma nova máquina entraria em funcionamento,
gerando energia suficiente para atender a mais da metade da população de Belém,
com 1,2 milhão de habitantes, nos piques de consumo da capital paraense, a 10ª
mais populosa do país.
Não há
dúvida que Belo Monte representa um providencial desafogo às dificuldades de
suprimento energético com que a parte mais antiga e mais desenvolvida do país
deverá se defrontar no horizonte do planejamento energético, que vai até 2010.
Qualquer
que seja o custo de produzir e levar essa enorme quantidade de energia por uma
distância de quase três mil quilômetros, da fronteira amazônica até os grandes
centros consumidores. Mas e para a Amazônia?
O
projeto de inserção regional montado pela Eletronorte para seu novo paquiderme
de megawatts é muito mais sofisticado do que o arranjo da década de 80. A
empresa está mais bem preparada para o confronto de ideias (e não só de ideias,
naturalmente, como esses momentos de choque acabam se tornando). Resta
verificar outros dois componentes da equação de Belo Monte:
1) o
significado real da obra, se de fato é um aprimoramento na abordagem ecológica,
social, de engenharia e social de uma hidrelétrica construída na Amazônia;
2) o
preparo dos que ainda acham que deixar para depois, reduzir o tamanho e alterar
a concepção desses projetos é o melhor que se pode fazer quando a intenção é
usar inteligentemente os recursos naturais dessa vasta e complexa região.
Como o
Brasil precisa acrescentar 4 mil megawatts a cada ano à capacidade instalada de
geração para atender ao crescimento do consumo nacional de energia, não haverá
quem se negue a apoiar o empreendimento proposto pela Eletronorte. Desde,
naturalmente, que a empresa apresente suas planilhas de cálculo e se submeta a
uma auditagem das suas contas, que nem sempre podem ser devidamente apuradas,
conferidas e aprovadas.
Precisará
demonstrar que, não sendo sua conta apenas um efeito da variação do câmbio, a
quanto monta cada um dos itens de redução – redução ainda mais notável porque
obtida na fase de planejamento da obra – de Belo Monte.
Mas não
só em relação às contas específicas da usina. É necessário fazer uma checagem
mais ampla do projeto. Quando exibiu ao público o orçamento consolidado, de US$
6,5 bilhões, só recentemente modificado (mas não adequadamente explicado), a
Eletronorte não previa um acréscimo, que só depois faria: a construção de uma
usina térmica em Belém, a capital do Pará, o Estado no qual a usina será
construída. Essa termelétrica irá gerar 1,5 mil MW (pouco menos de 15% da
potência nominal da hidrelétrica), com investimento de US$ 750 milhões.
Se essa
termelétrica é obra complementar da hidrelétrica, o orçamento geral deixaria de
ser de US$ 4,7 bilhões. Subiria para US$ 5,45 bilhões. Esse “detalhe”, que
representa um razoável encarecimento do projeto, não foi destacado. Mas outros
“pormenores” também permanecem pendentes de esclarecimento. Por que instalar a
usina térmica em Belém, que fica mais de 700 quilômetros a leste da futura
barragem? Seria para abastecer os consumidores próximos, dos quais os
principais seriam a população da capital paraense e a fábrica de alumínio da
Albrás, a maior do continente? Ou seria para assegurar a energização da linha
durante quase metade do ano, quando nenhum megawatt estará saindo de Belo Monte
por falta de ág ua suficiente no Xingu para permitir à usina produzir energia?
Além
dessas dúvidas, há uma outra questão: quem construir Belo Monte terá que
assumir a responsabilidade pela térmica de Belém? O financiamento para essa
obra será negociado como um pacote fechado, nas mesmas condições? Será seguido
o esquema previsto pela Eletronorte, de privatização da obra, mas com
financiamento oficial e com participação da Eletrobrás em até um terço do
capital da empresa particular que vencer a licitação, passando ao mercado essas
ações quando chegar a fase operacional?
Fonte:
Por Lúcio Flávio Pinto, em Amazônia Real

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