Democracia
sindical, juventude e feminismo no México
Elizabeth
Calvillo Reynoso é sindicalista e especialista em relações trabalhistas.
Atualmente, atua como Coordenadora Nacional do México para a organização Asociadas
por lo Justo (JASS). É formada em Ciências Políticas e Sociais pela
UNAM e possui mestrado em Estudos Sociais (Estudos do Trabalho) pela
Universidade Autônoma Metropolitana de Iztapalapa.
Ela
também possui diploma em Estudos Sociais do Trabalho e especialização em
Estudos sobre Violência de Gênero contra a Mulher, ambos concedidos pelo
Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). É certificada pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) para conduzir Auditorias
Participativas de Igualdade de Gênero no Ambiente de Trabalho.
Há
quatorze anos, atua na sociedade civil e em organizações de trabalhadores em
setores como agricultura, telesserviços, têxtil, autopeças e cuidados
remunerados. Sua experiência combina pesquisa acadêmica com ação direta em
processos de organização coletiva em contextos de alta precariedade, com forte
ênfase em capacitação e estratégias com perspectiva de gênero para a
transformação social e a defesa do cumprimento dos direitos trabalhistas
(individuais e coletivos).
Sua
perspectiva profundamente contextualizada nos permite considerar o sindicalismo
não apenas como uma estrutura, mas como uma experiência vivida, marcada por
conflitos, afetos e desigualdades. Nesta entrevista, Elizabeth Calvillo Reynoso
reflete sobre os limites da democracia trabalhista no México, os obstáculos que
as mulheres enfrentam nos espaços sindicais, as novas formas de violência
contra lideranças femininas e o desafio de construir uma representação coletiva
em um mundo do trabalho cada vez mais fragmentado.
O texto
também analisa com afinco a desconexão entre o sindicalismo tradicional e as
novas gerações de trabalhadores, cuja experiência de trabalho se desenvolve
cada vez mais fora das estruturas formais, em condições de flexibilidade,
intermitência ou isolamento. Nessa perspectiva, levanta a necessidade urgente
de redefinir os espaços organizacionais e resgatar o significado político do
trabalho.
LEIA A
ENTREVISTA:
·
Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre uma nova era
para a democracia sindical no México. Você acha que estamos realmente em um
momento histórico?
ECR -Sim,
sem dúvida há uma mudança, mas também a vejo como um momento perigoso. As
estruturas tradicionais de controle sindical não desapareceram: aprenderam a
simular, a se adaptar. Por exemplo, consultas são realizadas para legitimar
acordos de negociação coletiva, mas muitos trabalhadores nem sabem que estão
participando de uma votação importante. Não basta introduzir mecanismos formais
se eles não forem acompanhados por treinamentos e processos organizacionais que
realmente empoderem as pessoas.
·
O que você quer dizer com “simular”? Poderia dar um
exemplo concreto?
ECR -Frequentemente,
a lei é cumprida formalmente, mas o contexto é manipulado. Em alguns casos,
empregadores ou antigos sindicatos hegemônicos organizam eleições com pouca
divulgação, em momentos que dificultam a participação, ou até mesmo sob
vigilância. Isso gera medo ou desconfiança, especialmente quando não há uma
cultura democrática consolidada. Assim, embora no papel se diga que se trata de
uma “consulta legítima”, na prática não havia condições reais para uma decisão
livre e consciente.
·
Houve algum avanço real em alguma área?
ECR - Sim.
Há setores onde mudanças importantes foram alcançadas, especialmente onde há
sindicatos independentes fortes ou redes de apoio entre os trabalhadores. Há
também uma maior conscientização sobre a necessidade de transformar não apenas
a representação, mas também a forma como entendemos o trabalho e a organização
coletiva. Mas isso não é uniforme. Há muita resistência, tanto do Estado e das
empresas, quanto dentro dos próprios sindicatos.
·
E que lugar o feminismo ocupa nesse processo?
ECR - Acredito
que os caminhos finalmente estão se cruzando. A luta pela democracia sindical
não pode ser separada da luta feminista. Muitas mulheres têm sido protagonistas
desses processos transformadores, mesmo que nem sempre sejam reconhecidas. E
também é urgente reformar o trabalho de cuidado, que é um aspecto completamente
invisível do trabalho. Não podemos falar de justiça trabalhista se continuarmos
ignorando que milhares de mulheres sustentam o trabalho assalariado de outros
em suas casas, sem remuneração, sem direitos.
·
Na sua experiência, qual é a situação atual das mulheres
trabalhadoras no México?
ECR - As
mulheres continuam enfrentando profunda desigualdade. E não me refiro apenas às
disparidades salariais — que, claro, existem e persistem em todos os setores —,
mas sim a uma estrutura que limita as nossas possibilidades desde o início. O
fardo do cuidado, por exemplo, recai quase exclusivamente sobre nós, e isso tem
um impacto direto na nossa vida profissional. Muitas vezes, nos oferecem
horários flexíveis ou de meio período como se fossem um privilégio, quando, na
realidade, é uma forma de precariedade que pressupõe que o nosso tempo está
subordinado às responsabilidades domésticas.
·
E como os sindicatos respondem a esses problemas?
ECR - Em
geral, tem havido muita resistência. Embora haja progresso em algumas áreas, a
maioria dos sindicatos permanece profundamente masculina em sua estrutura e
cultura. Não é que não existam mulheres: há muitas, mas elas são
invisibilizadas ou relegadas a papéis secundários. Quando uma mulher se
manifesta ou propõe uma agenda de gênero, ela enfrenta questionamentos,
ridicularizações ou silêncios constrangedores. É como se falar sobre cuidado,
violência e assédio fosse algo estranho à agenda sindical “séria”.
·
Você acha que há uma falta de compreensão do que uma
perspectiva de gênero implica?
ECR - Em
parte, sim, mas não é apenas ignorância. É uma decisão política. Incluir uma
perspectiva de gênero implica questionar privilégios, mudar prioridades e
redistribuir poder. E isso é desconfortável. É por isso que, mesmo quando
existem cursos ou comissões de gênero, eles muitas vezes permanecem
superficiais, sem orçamento ou apoio real. Por outro lado, quando um grupo de
mulheres consegue se organizar, resistir juntas e propor mudanças, a dinâmica
pode ser transformada. Mas, para isso, muitas barreiras precisam ser quebradas,
tanto internas quanto externas.
·
E em termos de representação formal?
ECR - O
acesso a cargos continua muito limitado. Costuma-se dizer que “não há mulheres
interessadas” ou que “elas não têm experiência”, mas isso é uma armadilha. As
mulheres participam diariamente de seus ambientes de trabalho, resolvem
conflitos e sustentam processos, mas não têm visibilidade. E quando conseguem
um cargo, são submetidas a padrões três vezes mais rigorosos que os homens, são
constantemente escrutinadas e têm suas vidas pessoais questionadas. Esse padrão
duplo é um dos principais obstáculos que impedem que mais mulheres se lancem
nessa empreitada.
·
Você já viu exemplos positivos de transformação?
ECR - Sim,
claro. Alguns sindicatos independentes conseguiram incluir cláusulas de
proteção contra assédio, abrir espaços de treinamento para mulheres e promover
a liderança coletiva. Não são processos fáceis nem lineares, mas mostram que
outro tipo de sindicalismo é possível. Um sindicalismo em que falar sobre
gênero não seja uma concessão, mas uma condição para
a construção de uma verdadeira democracia no local de trabalho.
·
Estávamos falando sobre os obstáculos à participação das
mulheres nos sindicatos. Que formas específicas de violência você observou
contra aquelas que assumem cargos de liderança feminina?
ECR - A
violência é real e cotidiana. Às vezes, é óbvia, como ataques pessoais ou
campanhas de difamação. Mas, muitas vezes, é mais sutil, mais estrutural. Por
exemplo, quando uma mulher é nomeada para um cargo representativo, sua
legitimidade é questionada. As pessoas dizem que ela está lá “porque alguém a
nomeou”, “porque cumpre uma cota” ou atribuem a ela conexões pessoais em vez de
reconhecer sua carreira. Essa desqualificação constante é extremamente
desgastante. Não é o trabalho dela que é julgado, mas sua vida privada, seu
caráter, seu corpo.
·
Essa violência vem apenas dos homens?
ECR - Não,
e isso é importante dizer. Muitas vezes, também vem de outras mulheres. Isso é
doloroso. O patriarcado nos permeia, nos colocando para competir. Algumas
mulheres reproduzem as mesmas estruturas de poder para manter uma posição ou
serem aceitas dentro de uma estrutura masculina. Há líderes femininas que, uma
vez no poder, adotam práticas autoritárias ou excludentes. Só porque são
mulheres não significa que a liderança será automaticamente transformadora. A
sororidade precisa ser construída; ela não surge por decreto.
·
Qual o papel do ambiente social e midiático nessa
dinâmica?
ECR - Ela
desempenha um papel enorme. A sociedade não perdoa uma mulher por ocupar
firmemente uma posição pública. Se ela é forte, é rotulada de autoritária; se é
conciliadora, é fraca. Tudo se torna motivo de julgamento: seu jeito de falar,
seu jeito de se vestir, seu estado civil, se ela tem filhos ou não. Essa
pressão constante é uma forma de violência simbólica que visa disciplinar. E na
mídia, líderes femininas são quase inexistentes, a menos que estejam em crise,
como se só fôssemos visíveis em caso de conflito ou escândalo.
·
E como isso é vivenciado internamente? Como isso impacta
a subjetividade das mulheres sindicalistas?
ECR - O
custo emocional é extremamente alto. Há mulheres que pedem demissão depois de
conquistar um cargo porque simplesmente não aguentam mais. Porque não é só o
emprego: é o isolamento, a falta de redes, a violência institucional. Muitas se
sentem culpadas, sentem que fracassaram, quando na realidade estão diante de um
sistema que não as quer ali. Há também o luto, porque para muitas mulheres, o
sindicato é um espaço que elas amam, um lugar onde atuam há anos. Ter que sair
por causa da violência é profundamente injusto.
·
Que estratégias você encontrou para resistir?
ECR - O
mais importante é a organização entre as mulheres. Quando conseguimos construir
redes de apoio, escuta e capacitação, tudo muda. Saber que você não está
sozinha, que sua experiência é compartilhada, que você tem alguém com quem
conversar quando as coisas ficam difíceis — isso faz uma enorme diferença.
Também acredito que precisamos desafiar os espaços simbólicos: contar nossas
histórias, tornar nossas conquistas visíveis e afirmar a voz feminina como
legítima. Não é fácil, mas cada vez mais mulheres estão fazendo isso, o que me
enche de esperança.
·
No cenário atual, muitas pessoas jovens não se sentem
parte do mundo sindical ou do trabalho formal tradicional. Como você vê esse
fenômeno?
ECR - É
uma realidade inegável. A maioria dos jovens que trabalham hoje não o faz sob
regimes tradicionais. Não têm contrato, seguridade social ou horário fixo.
Trabalham em plataformas digitais, em regimes de subcontratação, em empregos
temporários ou informais. O problema é que muitas vezes não se reconhecem como
trabalhadores porque lhes disseram que estão “fazendo algo temporário” ou
“ganhando algo extra”, e isso os impede de reivindicar direitos. O primeiro
passo é nomear essas práticas pelo que elas são: trabalho.
·
O que essa transformação do mundo do trabalho implica
para o sindicalismo?
ECR - Implica
uma crise, mas também uma oportunidade. As formas tradicionais de sindicalismo
não são mais suficientes para organizar aqueles em condições precárias ou
fragmentadas. Mas isso não significa que não haja desejo de organização. Pelo
contrário: há uma busca por sentido coletivo, por dignidade, por proteção. O
que é necessário é construir formas de representação mais flexíveis, baseadas
na experiência concreta e não em uma estrutura burocrática. Isso requer
criatividade política, mas, acima de tudo, disposição para ouvir.
·
Como podemos lidar com essas novas gerações que, como
você diz, não se identificam como trabalhadores?
ECR - A
primeira coisa é não julgar. Os sindicatos costumam alegar que os jovens “não
estão comprometidos”, “não estão lutando” ou “não estão entendendo”. Mas isso
não é verdade. Eles lutam todos os dias, apenas em condições muito diferentes.
Devemos falar a língua deles, usar os meios que eles usam, mas também respeitar
seus tempos e suas maneiras. O sindicalismo deve se tornar um espaço de
acolhimento, não de cobrança. Se queremos que eles se aproximem, precisamos
mostrar que podem fazer transformações, não apenas se adaptar.
·
Que tipo de demandas estão surgindo desses espaços não
tradicionais?
ECR - Estão
surgindo demandas muito interessantes. Por exemplo, o direito à desconexão, que
antes nem sequer era considerado. Ou a proteção contra assédio digital. Há
também um forte desafio ao modelo de sucesso no trabalho baseado em exigências
excessivas. Os jovens estão dizendo: “Não quero trabalhar 12 horas só para
sobreviver”. Eles querem condições de vida dignas, com tempo livre e saúde
mental. E isso é profundamente político. Eles estão colocando na mesa questões
que o sindicalismo tradicional ignorou.
·
Há alguma experiência organizacional que valha a pena
destacar?
ECR - Sim,
muitos. De coletivos de entregadores a redes de trabalhadoras domésticas e
projetos de economia social liderados por jovens. São espaços que nem sempre se
autodenominam “sindicatos”, mas cumprem uma função de defesa coletiva e
identidade compartilhada. O interessante é que eles rompem hierarquias
tradicionais, propõem lideranças horizontais e utilizam ferramentas
tecnológicas com grande fluidez. O desafio está em desvendar como conectar
essas experiências a processos mais amplos de transformação trabalhista e
política.
·
E que lugar a memória sindical ocupa nesse processo?
ECR - A
memória é fundamental. Muitas vezes, pensa-se que há uma ruptura completa com o
passado, mas, na realidade, há continuidade. As lutas de hoje têm raízes em
outras lutas. As mulheres que se organizam em plataformas ou em setores
informais hoje estão adotando estratégias que suas mães ou avós usaram, mesmo
que não o digam. O desafio é como narrar essa memória sem idealizá-la,
reconhecendo seus limites e violência. Mas sem memória, não há projeto político
duradouro.
·
Como você entrou no mundo sindical? Qual foi sua
trajetória antes de se tornar organizadora?
ECR - Comecei
com uma visão muito idealista. Na minha família, o sindicalismo era visto como
uma força transformadora. Cresci com a ideia de que os sindicatos eram a melhor
coisa que poderia existir para os trabalhadores. Quando comecei a trabalhar no
mundo real, especialmente no setor de call center, essa visão
ganhou mais matizes. Percebi que se organizar é difícil, que nem sempre se
vence e que existem muitas barreiras — internas e externas — que impedem o
sucesso dos sindicatos independentes.
·
Esse desencanto distanciou você do tema?
ECR - Pelo
contrário, levou a me envolver mais. Senti isso como uma necessidade interna.
Queria compreender por que os processos de organização, mesmo quando legítimos
e coletivos, nem sempre conseguiam transformar as condições de trabalho. Me
perguntei: por que é tão difícil para sindicatos independentes vencerem? O que
acontece quando vencem? Que tipo de relações são construídas depois? Isso me
levou a trabalhar com o sindicato dos atendentes, que era um caso excepcional.
Foi aí que concentrei minha tese.
·
Como você fez a transição da pesquisa acadêmica para o
trabalho de campo como organizadora?
ECR - Foi
natural, porém desafiador. A pesquisa me permitiu sistematizar muitas
experiências, mas me faltava a experiência vivida. Então, comecei a acompanhar
processos reais. Ouvindo os trabalhadores, vivenciando seus medos, suas
conquistas, suas frustrações. Para mim, organizar não é apenas uma tarefa
técnica: é profundamente política e afetiva. Acompanhar um conflito trabalhista
envolve estar disponível, entender os tempos do outro e fornecer apoio
emocional. E, acima de tudo, reconhecer que os verdadeiros protagonistas são os
trabalhadores.
·
E como a sua experiência como mulher influenciou nesse
caminho?
ECR - Foi
decisivo. Como mulher, tive que lutar duas vezes: pelo meu lugar no espaço
sindical e pelo reconhecimento da minha contribuição. Muitas vezes, as pessoas
pensam que uma organizadora está lá como apoio logístico ou emocional, mas não
como parte estratégica do processo. Aprendi a definir meu lugar, a defender
minhas ideias e a construir redes com outras mulheres. Isso me deu força, mas
também me tornou mais consciente do que significa apoiar os outros sem me
perder no caminho.
Fonte:
Entrevista com Elizabeth Calvillo
Reynoso - tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

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