sábado, 30 de agosto de 2025

Democracia sindical, juventude e feminismo no México

Elizabeth Calvillo Reynoso é sindicalista e especialista em relações trabalhistas. Atualmente, atua como Coordenadora Nacional do México para a organização Asociadas por lo Justo (JASS). É formada em Ciências Políticas e Sociais pela UNAM e possui mestrado em Estudos Sociais (Estudos do Trabalho) pela Universidade Autônoma Metropolitana de Iztapalapa.

Ela também possui diploma em Estudos Sociais do Trabalho e especialização em Estudos sobre Violência de Gênero contra a Mulher, ambos concedidos pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). É certificada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para conduzir Auditorias Participativas de Igualdade de Gênero no Ambiente de Trabalho.

Há quatorze anos, atua na sociedade civil e em organizações de trabalhadores em setores como agricultura, telesserviços, têxtil, autopeças e cuidados remunerados. Sua experiência combina pesquisa acadêmica com ação direta em processos de organização coletiva em contextos de alta precariedade, com forte ênfase em capacitação e estratégias com perspectiva de gênero para a transformação social e a defesa do cumprimento dos direitos trabalhistas (individuais e coletivos).

Sua perspectiva profundamente contextualizada nos permite considerar o sindicalismo não apenas como uma estrutura, mas como uma experiência vivida, marcada por conflitos, afetos e desigualdades. Nesta entrevista, Elizabeth Calvillo Reynoso reflete sobre os limites da democracia trabalhista no México, os obstáculos que as mulheres enfrentam nos espaços sindicais, as novas formas de violência contra lideranças femininas e o desafio de construir uma representação coletiva em um mundo do trabalho cada vez mais fragmentado.

O texto também analisa com afinco a desconexão entre o sindicalismo tradicional e as novas gerações de trabalhadores, cuja experiência de trabalho se desenvolve cada vez mais fora das estruturas formais, em condições de flexibilidade, intermitência ou isolamento. Nessa perspectiva, levanta a necessidade urgente de redefinir os espaços organizacionais e resgatar o significado político do trabalho.

LEIA A ENTREVISTA:

·        Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre uma nova era para a democracia sindical no México. Você acha que estamos realmente em um momento histórico?

ECR -Sim, sem dúvida há uma mudança, mas também a vejo como um momento perigoso. As estruturas tradicionais de controle sindical não desapareceram: aprenderam a simular, a se adaptar. Por exemplo, consultas são realizadas para legitimar acordos de negociação coletiva, mas muitos trabalhadores nem sabem que estão participando de uma votação importante. Não basta introduzir mecanismos formais se eles não forem acompanhados por treinamentos e processos organizacionais que realmente empoderem as pessoas.

·        O que você quer dizer com “simular”? Poderia dar um exemplo concreto?

ECR -Frequentemente, a lei é cumprida formalmente, mas o contexto é manipulado. Em alguns casos, empregadores ou antigos sindicatos hegemônicos organizam eleições com pouca divulgação, em momentos que dificultam a participação, ou até mesmo sob vigilância. Isso gera medo ou desconfiança, especialmente quando não há uma cultura democrática consolidada. Assim, embora no papel se diga que se trata de uma “consulta legítima”, na prática não havia condições reais para uma decisão livre e consciente.

·        Houve algum avanço real em alguma área?

ECR - Sim. Há setores onde mudanças importantes foram alcançadas, especialmente onde há sindicatos independentes fortes ou redes de apoio entre os trabalhadores. Há também uma maior conscientização sobre a necessidade de transformar não apenas a representação, mas também a forma como entendemos o trabalho e a organização coletiva. Mas isso não é uniforme. Há muita resistência, tanto do Estado e das empresas, quanto dentro dos próprios sindicatos.

·        E que lugar o feminismo ocupa nesse processo?

ECR - Acredito que os caminhos finalmente estão se cruzando. A luta pela democracia sindical não pode ser separada da luta feminista. Muitas mulheres têm sido protagonistas desses processos transformadores, mesmo que nem sempre sejam reconhecidas. E também é urgente reformar o trabalho de cuidado, que é um aspecto completamente invisível do trabalho. Não podemos falar de justiça trabalhista se continuarmos ignorando que milhares de mulheres sustentam o trabalho assalariado de outros em suas casas, sem remuneração, sem direitos.

·        Na sua experiência, qual é a situação atual das mulheres trabalhadoras no México?

ECR - As mulheres continuam enfrentando profunda desigualdade. E não me refiro apenas às disparidades salariais — que, claro, existem e persistem em todos os setores —, mas sim a uma estrutura que limita as nossas possibilidades desde o início. O fardo do cuidado, por exemplo, recai quase exclusivamente sobre nós, e isso tem um impacto direto na nossa vida profissional. Muitas vezes, nos oferecem horários flexíveis ou de meio período como se fossem um privilégio, quando, na realidade, é uma forma de precariedade que pressupõe que o nosso tempo está subordinado às responsabilidades domésticas.

·        E como os sindicatos respondem a esses problemas?

ECR - Em geral, tem havido muita resistência. Embora haja progresso em algumas áreas, a maioria dos sindicatos permanece profundamente masculina em sua estrutura e cultura. Não é que não existam mulheres: há muitas, mas elas são invisibilizadas ou relegadas a papéis secundários. Quando uma mulher se manifesta ou propõe uma agenda de gênero, ela enfrenta questionamentos, ridicularizações ou silêncios constrangedores. É como se falar sobre cuidado, violência e assédio fosse algo estranho à agenda sindical “séria”.

·        Você acha que há uma falta de compreensão do que uma perspectiva de gênero implica?

ECR - Em parte, sim, mas não é apenas ignorância. É uma decisão política. Incluir uma perspectiva de gênero implica questionar privilégios, mudar prioridades e redistribuir poder. E isso é desconfortável. É por isso que, mesmo quando existem cursos ou comissões de gênero, eles muitas vezes permanecem superficiais, sem orçamento ou apoio real. Por outro lado, quando um grupo de mulheres consegue se organizar, resistir juntas e propor mudanças, a dinâmica pode ser transformada. Mas, para isso, muitas barreiras precisam ser quebradas, tanto internas quanto externas.

·        E em termos de representação formal?

ECR - O acesso a cargos continua muito limitado. Costuma-se dizer que “não há mulheres interessadas” ou que “elas não têm experiência”, mas isso é uma armadilha. As mulheres participam diariamente de seus ambientes de trabalho, resolvem conflitos e sustentam processos, mas não têm visibilidade. E quando conseguem um cargo, são submetidas a padrões três vezes mais rigorosos que os homens, são constantemente escrutinadas e têm suas vidas pessoais questionadas. Esse padrão duplo é um dos principais obstáculos que impedem que mais mulheres se lancem nessa empreitada.

·        Você já viu exemplos positivos de transformação?

ECR - Sim, claro. Alguns sindicatos independentes conseguiram incluir cláusulas de proteção contra assédio, abrir espaços de treinamento para mulheres e promover a liderança coletiva. Não são processos fáceis nem lineares, mas mostram que outro tipo de sindicalismo é possível. Um sindicalismo em que falar sobre gênero não seja uma concessão, mas uma condição para a construção de uma verdadeira democracia no local de trabalho.

·        Estávamos falando sobre os obstáculos à participação das mulheres nos sindicatos. Que formas específicas de violência você observou contra aquelas que assumem cargos de liderança feminina?

ECR - A violência é real e cotidiana. Às vezes, é óbvia, como ataques pessoais ou campanhas de difamação. Mas, muitas vezes, é mais sutil, mais estrutural. Por exemplo, quando uma mulher é nomeada para um cargo representativo, sua legitimidade é questionada. As pessoas dizem que ela está lá “porque alguém a nomeou”, “porque cumpre uma cota” ou atribuem a ela conexões pessoais em vez de reconhecer sua carreira. Essa desqualificação constante é extremamente desgastante. Não é o trabalho dela que é julgado, mas sua vida privada, seu caráter, seu corpo.

·        Essa violência vem apenas dos homens?

ECR - Não, e isso é importante dizer. Muitas vezes, também vem de outras mulheres. Isso é doloroso. O patriarcado nos permeia, nos colocando para competir. Algumas mulheres reproduzem as mesmas estruturas de poder para manter uma posição ou serem aceitas dentro de uma estrutura masculina. Há líderes femininas que, uma vez no poder, adotam práticas autoritárias ou excludentes. Só porque são mulheres não significa que a liderança será automaticamente transformadora. A sororidade precisa ser construída; ela não surge por decreto.

·        Qual o papel do ambiente social e midiático nessa dinâmica?

ECR - Ela desempenha um papel enorme. A sociedade não perdoa uma mulher por ocupar firmemente uma posição pública. Se ela é forte, é rotulada de autoritária; se é conciliadora, é fraca. Tudo se torna motivo de julgamento: seu jeito de falar, seu jeito de se vestir, seu estado civil, se ela tem filhos ou não. Essa pressão constante é uma forma de violência simbólica que visa disciplinar. E na mídia, líderes femininas são quase inexistentes, a menos que estejam em crise, como se só fôssemos visíveis em caso de conflito ou escândalo.

·        E como isso é vivenciado internamente? Como isso impacta a subjetividade das mulheres sindicalistas?

ECR - O custo emocional é extremamente alto. Há mulheres que pedem demissão depois de conquistar um cargo porque simplesmente não aguentam mais. Porque não é só o emprego: é o isolamento, a falta de redes, a violência institucional. Muitas se sentem culpadas, sentem que fracassaram, quando na realidade estão diante de um sistema que não as quer ali. Há também o luto, porque para muitas mulheres, o sindicato é um espaço que elas amam, um lugar onde atuam há anos. Ter que sair por causa da violência é profundamente injusto.

·        Que estratégias você encontrou para resistir?

ECR - O mais importante é a organização entre as mulheres. Quando conseguimos construir redes de apoio, escuta e capacitação, tudo muda. Saber que você não está sozinha, que sua experiência é compartilhada, que você tem alguém com quem conversar quando as coisas ficam difíceis — isso faz uma enorme diferença. Também acredito que precisamos desafiar os espaços simbólicos: contar nossas histórias, tornar nossas conquistas visíveis e afirmar a voz feminina como legítima. Não é fácil, mas cada vez mais mulheres estão fazendo isso, o que me enche de esperança.

·        No cenário atual, muitas pessoas jovens não se sentem parte do mundo sindical ou do trabalho formal tradicional. Como você vê esse fenômeno?

ECR - É uma realidade inegável. A maioria dos jovens que trabalham hoje não o faz sob regimes tradicionais. Não têm contrato, seguridade social ou horário fixo. Trabalham em plataformas digitais, em regimes de subcontratação, em empregos temporários ou informais. O problema é que muitas vezes não se reconhecem como trabalhadores porque lhes disseram que estão “fazendo algo temporário” ou “ganhando algo extra”, e isso os impede de reivindicar direitos. O primeiro passo é nomear essas práticas pelo que elas são: trabalho.

·        O que essa transformação do mundo do trabalho implica para o sindicalismo?

ECR - Implica uma crise, mas também uma oportunidade. As formas tradicionais de sindicalismo não são mais suficientes para organizar aqueles em condições precárias ou fragmentadas. Mas isso não significa que não haja desejo de organização. Pelo contrário: há uma busca por sentido coletivo, por dignidade, por proteção. O que é necessário é construir formas de representação mais flexíveis, baseadas na experiência concreta e não em uma estrutura burocrática. Isso requer criatividade política, mas, acima de tudo, disposição para ouvir.

·        Como podemos lidar com essas novas gerações que, como você diz, não se identificam como trabalhadores?

ECR - A primeira coisa é não julgar. Os sindicatos costumam alegar que os jovens “não estão comprometidos”, “não estão lutando” ou “não estão entendendo”. Mas isso não é verdade. Eles lutam todos os dias, apenas em condições muito diferentes. Devemos falar a língua deles, usar os meios que eles usam, mas também respeitar seus tempos e suas maneiras. O sindicalismo deve se tornar um espaço de acolhimento, não de cobrança. Se queremos que eles se aproximem, precisamos mostrar que podem fazer transformações, não apenas se adaptar.

·        Que tipo de demandas estão surgindo desses espaços não tradicionais?

ECR - Estão surgindo demandas muito interessantes. Por exemplo, o direito à desconexão, que antes nem sequer era considerado. Ou a proteção contra assédio digital. Há também um forte desafio ao modelo de sucesso no trabalho baseado em exigências excessivas. Os jovens estão dizendo: “Não quero trabalhar 12 horas só para sobreviver”. Eles querem condições de vida dignas, com tempo livre e saúde mental. E isso é profundamente político. Eles estão colocando na mesa questões que o sindicalismo tradicional ignorou.

·        Há alguma experiência organizacional que valha a pena destacar?

ECR - Sim, muitos. De coletivos de entregadores a redes de trabalhadoras domésticas e projetos de economia social liderados por jovens. São espaços que nem sempre se autodenominam “sindicatos”, mas cumprem uma função de defesa coletiva e identidade compartilhada. O interessante é que eles rompem hierarquias tradicionais, propõem lideranças horizontais e utilizam ferramentas tecnológicas com grande fluidez. O desafio está em desvendar como conectar essas experiências a processos mais amplos de transformação trabalhista e política.

·        E que lugar a memória sindical ocupa nesse processo?

ECR - A memória é fundamental. Muitas vezes, pensa-se que há uma ruptura completa com o passado, mas, na realidade, há continuidade. As lutas de hoje têm raízes em outras lutas. As mulheres que se organizam em plataformas ou em setores informais hoje estão adotando estratégias que suas mães ou avós usaram, mesmo que não o digam. O desafio é como narrar essa memória sem idealizá-la, reconhecendo seus limites e violência. Mas sem memória, não há projeto político duradouro.

·        Como você entrou no mundo sindical? Qual foi sua trajetória antes de se tornar organizadora?

ECR - Comecei com uma visão muito idealista. Na minha família, o sindicalismo era visto como uma força transformadora. Cresci com a ideia de que os sindicatos eram a melhor coisa que poderia existir para os trabalhadores. Quando comecei a trabalhar no mundo real, especialmente no setor de call center, essa visão ganhou mais matizes. Percebi que se organizar é difícil, que nem sempre se vence e que existem muitas barreiras — internas e externas — que impedem o sucesso dos sindicatos independentes.

·        Esse desencanto distanciou você do tema?

ECR - Pelo contrário, levou a me envolver mais. Senti isso como uma necessidade interna. Queria compreender por que os processos de organização, mesmo quando legítimos e coletivos, nem sempre conseguiam transformar as condições de trabalho. Me perguntei: por que é tão difícil para sindicatos independentes vencerem? O que acontece quando vencem? Que tipo de relações são construídas depois? Isso me levou a trabalhar com o sindicato dos atendentes, que era um caso excepcional. Foi aí que concentrei minha tese.

·        Como você fez a transição da pesquisa acadêmica para o trabalho de campo como organizadora?

ECR - Foi natural, porém desafiador. A pesquisa me permitiu sistematizar muitas experiências, mas me faltava a experiência vivida. Então, comecei a acompanhar processos reais. Ouvindo os trabalhadores, vivenciando seus medos, suas conquistas, suas frustrações. Para mim, organizar não é apenas uma tarefa técnica: é profundamente política e afetiva. Acompanhar um conflito trabalhista envolve estar disponível, entender os tempos do outro e fornecer apoio emocional. E, acima de tudo, reconhecer que os verdadeiros protagonistas são os trabalhadores.

·        E como a sua experiência como mulher influenciou nesse caminho?

ECR - Foi decisivo. Como mulher, tive que lutar duas vezes: pelo meu lugar no espaço sindical e pelo reconhecimento da minha contribuição. Muitas vezes, as pessoas pensam que uma organizadora está lá como apoio logístico ou emocional, mas não como parte estratégica do processo. Aprendi a definir meu lugar, a defender minhas ideias e a construir redes com outras mulheres. Isso me deu força, mas também me tornou mais consciente do que significa apoiar os outros sem me perder no caminho.

 

Fonte: Entrevista com  Elizabeth Calvillo Reynoso - tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

 

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