Big
techs e a soberania nacional
1968
condensa lutas de emancipação. Na icônica data, Henri Lefebvre publica A vida
cotidiana no mundo moderno, rumo à revolução cultural permanente que embora não
separável das mudanças sociopolíticas e econômicas distingue-se por estar
alicerçada no feminismo, na liberdade sexual, na reapropriação da felicidade e
no espírito festivo como estilos de vida; era uma crise disruptiva. A cultura
caracterizava-se pelo moralismo, esteticismo e tecnicismo prenhes de alienação
e pretensão.
No
mesmo ano é lançado 2001: Uma odisseia no espaço, dirigido por Stanley Kubrick.
O filme enfatiza o excepcional avanço da criatura (a técnica) que parece
dominar o criador (a humanidade). À época, a França mantém um Estado de
bem-estar com pleno emprego. Intérpretes do movimento atribuem a convulsão
sessentista a uma overdose de imaginação dos jovens pelo temor de perder os
postos de trabalho para a robótica, que reduzia as vagas nas fábricas e a
perspectiva de um futuro.
Receava-se
que a realidade social constituísse uma entidade acima dos indivíduos e dos
grupos, pondo em risco a mobilidade social. Sociólogos recriminam a “sociedade
pós-industrial”. Mas então circulam outras caracterizações. “Sociedade de
consumo” para designar as personalidades que se medem pela posse de objetos
supérfluos. “Sociedade de abundância” para enaltecer a variedade de produtos à
venda nas prateleiras das lojas; cartão-postal clássico de um capitalismo
bon-vivant.
Profetas
da paz e amor responsabilizam o “sistema” ao condenar a invasão estadunidense
do Vietnã. Meio século depois, o termo vira um sinônimo do Estado de direito
democrático para quem apregoa como alternativa um oxímoro – a democracia
iliberal. O cotidiano perde o caráter utópico aberto à experimentação. A
carranca fundamentalista da moral e dos costumes volta à carga e a “sociedade
da produtividade” execra o ócio de quem se atreve reivindicar o tempo livre
não-produzido para si.
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Aparências ocultam
“O
regime de informação é a forma de dominação na qual as informações e seu
processamento por algoritmos e inteligência artificial (IA) determinam os
processos sociais, econômicos e políticos, de posse das informações e dados”,
diz Byung-Chul Han, em Infocracia. A “sociedade da disciplina” dos corpos e
energias ficou no passado.
Entre
nós, há 480 milhões de dispositivos digitais ativos, o equivalente a 2,2
aparelhos por habitante. Do total, 258 milhões são smartphones, média de 1,2
por pessoa, segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas (27/06/2024). É a
cibernetização. A ciência da computação perscruta a sociabilidade e a
governabilidade com a lanterna de Diógenes.
Na
“sociedade informacional”, o controle acontece no momento em que a liberdade e
a vigilância entram em conexão. Os monopólios tecnológicos celebram a
passividade com que os internautas transferem seus hábitos de vestir, comer,
dirigir, sonhar. As celas agora dispensam grades e castigos; baseiam-se em
recompensas. A visibilidade nas redes resulta na servidão à publicidade
comercial.
Os
influencers cumprem o papel de cruzados pós-modernos em busca do amém (likes) e
de novos compartilhamentos tribais, induzindo o consumismo para obter a graça
divina, os bens materiais. Os consumidores nutrem uma distopia. Os cliques no
teclado performam as personas antissistêmicas com uma aceitação bovina do
estabelecido. As aparências escondem o melancólico conformismo.
A
televisão como instrumento principal da midiocracia funciona como palco do
teatro. “Vale tudo”, no implacável embate de narrativas. Daí o pesado
investimento nas legiões de robôs (bots) para construir opiniões e emoções da
multidão. Exércitos de provocadores (trolls) agem com mentiras e conspirações.
Sem conteúdo nem substancialidade, a democracia cai no abismo dos discursos
ocos.
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Um desafio premente
A
revolução cultural do famoso Maio reabilitou o valor de uso e o ser humano, com
a denúncia da ideologia produtivista e do racionalismo econômico. Já as
inovações comunicacionais monetizam, hoje, os guerreiros da informação
(infowarriors) que dinamitam a credibilidade das instituições com a propagação
viral de infodemias. Importa-lhes o valor de troca. A desumanização é útil ao
negócio.
A
digitalização enfraquece a consciência factual, a consciência da realidade. A
desfactualização constrói os muros da “sociedade da desconfiança”. Quanto maior
o volume de informes díspares confrontados, mais forte o questionamento sobre o
que é verdadeiro. A faticidade é só uma opção dentre outras. Está em desuso o
axioma bíblico – “sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6).
Sem um
estofo comum de consenso, a própria sociedade é um absurdo. Nessa absurdidade
em ação cabem Donald Trump (Estados Unidos), Recep Tayyip Erdogan (Turquia),
Viktor Orbán (Hungria), Vladimir Putin (Rússia), Benjamin Netanyahu (Israel),
Javier Milei (Argentina) e um tal inelegível. Donde se conclui que sem a
coragem da verdade (parrhesia) é inviável a política de comunidade.
Esforços
transnacionais pretendem derrubar a insana desregulamentação na webesfera e
tributar a acumulação das megaempresas de tecnologia. A participação
digitalizada tem de respeitar vetores da cidadania, em escala global. Esse é o
desafio premente das forças democráticas em meio à crise social, geopolítica e
climática no século XXI. Condição fundamental para desconectar a reificação e
promover a liberdade com responsabilidade para que a esperança se torne uma
realidade efetiva.
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Derrotar as Big techs
No
Brasil, cristalizou-se o apoio majoritário do Supremo Tribunal Federal (STF)
para regulamentar as redes sociais. O artigo 19 do Marco Legal da Internet foi
reatualizado. Trata-se de derrotar as Big techs. A democracia deve exprimir o
processo cumulativo de valores civilizatórios, e não tolerar que a plutocracia
instalada nas nuvens tenha ganhos financeiros com fake news contra a
veracidade.
Leonel
Brizola assistia à TV Globo para tomar posição na contramão da emissora. Usava
a natural inteligência (inter-legere, escolher entre) para decidir sobre o
certo e o errado. A gangue da opinião funciona ao reverso do farol; em vez de
orientar a navegação atrai para as pedras. Que os projetos de regulamentação
dos monopólios tecnológicos afirmem alto e bom som nossa soberania nacional.
Fonte:
Por Luiz Marques, em A Terra é Redonda

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