Nação,
soberania política, identidade e cultura
Estou
intrigado conosco mesmo, analistas, ativistas e organizações de cidadania
portadoras de perspectiva de transformação democrática ecossocial, para
garantir direitos iguais na diversidade como povo brasileiro. Qual o porquê do
nosso quase silêncio e falta de reação em relação às questões que o título
anuncia? Isto em um contexto explícito de ataque do Trump, presidente dos EUA,
à nossa institucionalidade democrática e acordos comerciais se julgando no
direito de impor, de forma unilateral, taxação de 50% sobre as nossas
exportações a seu país e condenar membros do STF, que estão julgando o líder da
extrema direita e seus cúmplices pela tentativa de golpe de Estado e imposição
de uma ditadura.
Não há
dúvidas que estamos sendo agredidos de forma imperialista por Trump, com a
justificativa diversionista de estarmos condenando quem tentou o golpe na
transição de Governo. É um atentado vindo dos EUA como potência à nossa
soberania política. Sim, temos até muitas análises a respeito e lembrando que
não estamos sendo uma exceção no caso da arma comercial usada, que Trump impôs
a muitos países com a justificativa do seu projeto MEGA. Mas por que não se
registra uma reação cidadã forte no seio da sociedade civil brasileira contra o
ataque à nossa soberania e democracia?
Até
temos reações dos setores da economia afetados, mas pressionando, como sempre,
por políticas compensatórias. São as vozes do tal sujeito “mercado”, pouco
comprometido com direitos e democracia transformadora. Claro, a taxação sobre
exportações implica em perdas econômicas e de empregos no Brasil. Mas estou
preocupado com o nosso papel de cidadanias em luta por direitos democráticos
para todas e todos. Vamos simplesmente esperar para ver como fica? E onde está
a defesa de nossa autonomia e soberania como nação diante da agressão? Que
riscos representa para a institucionalidade democrática duramente conquistada?
Vamos nos contentar com a melhora nos índices de avaliação do Governo Lula?
Será que não é grave o fato que haja vozes no nosso Congresso que estão até
apoiando a agressão econômica e institucional dos EUA e sua justificativa?
Devo
reconhecer que existem análises sobre a real motivação do ataque. Concordo com
Reynaldo Aragão que a questão fundamental na motivação da agressão dos EUA tem
a ver, como central, a ousadia do Brasil de regular as grandes plataformas
digitais, sobretudo pelo não compromisso delas com o que é difundido pelas
redes sociais. Com seu alcance global, o domínio pelas big tecks
norte-americanas é até aqui uma evidência e uma possível base para a
continuidade da hegemonia capitalista dos EUA, ameaçada no processo de busca de
nova ordem global. Por outro lado, penso que talvez é ainda mais pertinente a
análise de José Fiori, em entrevista a Tutaméia, ao afirmar que o problema deve
ser colocado num contexto de terceira guerra mundial contra a ousadia dos BRIS
em recompor o multilateralismo abalado e criar novas bases para suas economias,
até com o abandono da hegemonia do dólar nas transações globais, usando suas
próprias moedas. Acho os dois argumentos muito mais pertinentes do que a
justificativa da ação do STF contra Bolsonaro e seus cúmplices. Isto, sem
dúvidas, é diversionismo ou camuflagem, visando o grande público.
De todo
o modo, existe o fato real da agressão ao que o Brasil é para nós mesmos: uma
nação soberana. Lutamos muito para nos livrar da ditadura militar alinhada com
a doutrina emanada dos EUA de combate ao comunismo. Diante de prisões
arbitrárias, torturas e mortes de opositores, mais rígida censura sobre a
comunicação e expressões culturais críticas, foi difícil conquistar uma
institucionalidade democrática e buscar caminhos que garantam direitos a todas
e todos, sem exclusões, como parte de uma nação soberana. Com a democracia,
tendo potencialidades e limites, mas nossa, ainda nos falta muito para sermos
uma nação capaz de priorizar o bem de todo o seu povo, em nome do cuidado com a
gente e a natureza, enfrentando poderes internos e externos que dominam nossa
economia e impõem limites à nossa capacidade da democratizar de forma
transformadora. Mas é uma conquista que vai avançado e retrocedendo, aqui e lá,
apesar de tudo. O que significam as agressões lideradas por Trump como ameaça
destrutiva real à nossa democracia e poderes instituídos?
Considero
que, neste momento, estamos diante de um desafio que está muito além dos
poderes de Estado para nos defender como nação. Por que não acontecem
mobilizações como quando lutamos contra a ditadura nos anos 1980? Ou a
mobilização cidadã pelo impeachment do Collor em nome da ética na política no
início dos 1990?
Antes
de tudo, lembro que no meu tempo de jovem universitário, nos anos 1960 e 70,
particularmente puxado pelo movimento estudantil e organizações de esquerda,
tínhamos um clara visão e fazíamos denúncias e promovemos grandes mobilização
contra o imperialismo dos EUA, suas agressões e seu controle sobre nossa
soberania e de todos os países da América Latina. Tínhamos até um mote: “Go
home yankees”.
Estou
preocupado com a falta de reações no chão da sociedade. Na verdade, sem um
explícito e amplo apoio cidadã, sem a luta pela autonomia e contra a hegemonia
dos EUA, ou outras se necessário for, os nossos poderes constituídos se
acanham, apesar de legitimados pelo voto cidadão. A verdadeira causa é domínio
desproporcional de um “Centrão” nada comprometido em ter uma potente democracia
que priorize as maiorias da Nação, muito além de seus interesses corporativos e
paroquias.
Sim,
temos uma institucionalidade democrática, mas acaparada por forças e interesses
corporativos internos, com poder real de veto como se o “mercado” e o
agronegócio fossem expressão de cidadania e, portanto, se sentirem os árbitros
maiores sobre direitos a defender e que políticas implementar democraticamente
para o bem de todos, muito além de seus próprios bolsos. Temos uma “democracia
encurralada” por interesses corporativos, que atropelam o próprio sentido de
buscar e zelar pelo bem comum acima de tudo, tendo soberania e autonomia como
nação soberana.[1] O lucro e acumulação privada não podem estar acima dos
direitos iguais, nem bloquear o poder do Estado Democrático Brasileiro e sua
legítima capacidade regulatório e legítimo poder de julgar em defesa do bem
comum.
Bem,
não há dúvidas que se trata de relações de forças políticas em disputa.
Precisamos da institucionalidade democrática expressa no Estado mas que seja
aberta a ampla participação cidadã como força real na definição de políticas
virtuosas e que priorizem o comum e os direitos iguais a toda a população. Mas
isto exige que as cidadanias assumam seu papel constituinte e instituinte
decisivo. Sem organização e participação cidadã isto não acontecerá e o espaço
da política será dominado por interesses e forças de acumulação. O quando real
se completa com toda uma história de vergonhosas exclusões, racismo,
colonialismo, patriarcalismo, periferias, violência e negação de direitos
fundamentais.
Excluídos
e periféricos entre nós resistem bravamente para sobreviver. A única saída
possível para eles é se organizar como forças cidadãs e disputar direitos e até
o próprio sentido de se sentir parte de uma nação democrática e soberana. Se
aí, entre o povão, não se forjarem forças coletivas determinantes do que
podemos ser, não teremos capacidade para superar as múltiplas exclusões
sofridas no dia a dia, pouco avançaremos em termos de direitos iguais na
diversidade. Mas também nem teremos uma forte soberania e força para enfrentar
ataques externos.
Voltando
à questão que aponto acima, não nego que tivemos como sociedade civil
brasileira grandes momentos históricos a celebrar. Mas não podemos nos
contentar, enquanto cidadanias, com o pouco conquistado no passado. Nem esperar
que transformações virtuosas da situação possam vir dos poderes constituídos,
sem potente ação política cidadã que incida neles, contrabalançando as forças
sociais que priorizam a defesa de seus interesses privados. Em última análise,
precisamos de Economia e de Estado, mas que priorizem o bem viver de toda a
população.
Na
conjuntura atual, de mudanças geopolíticas e imposição de regras contra a nossa
soberana como nação, percebo certo silêncio das ruas, da falta de indignação e
revolta diante de poderes de fora que atentam contra nossa soberania como
nação, nossa identidade e cultura. Mesmo tão desiguais na atualidade, o que
temos é a nossa nação, pois nela e sobre ela é quer podemos ser sujeitos a
reivindicar direitos, baseados nos princípios éticos da democracia: liberdade,
igualdade, diversidade, solidariedade e participação, que deveriam estar acima
de interesses privados e a serviço de seu povo. Ataques como o que estão em
vigor nesses dias, da potência hegemônica em crise, deveriam nos levar a
reagir, pois criam uma situação grave ao limitar ainda a nossa autonomia em
definir nosso destino.
Existe
algo que assinala alguma esperança: os BRICS e a diferença que nele está
fazendo o Lula, como nosso presidente. Mas quem, na diversidade das cidadanias
deste país, se preocupa com as possibilidades que os BRICS podem significar
como contenção da potência hegemônica e militarizada. Penso que esta
coalização, em busca de cooperação para um mundo mais multilateral, não é pouco
em termos de enfrentar a hegemonia decadente dos EUA. Pelo contrário, é algo
potencialmente transformador. No entanto, como diz a canção dos tempos de luta
contra a ditadura, “esperar não é saber”. Fortalecer os BRICS é uma tarefa
comum das diversas cidadanias dos países integrantes da aliança, ela também com
contradições internas.
Talvez
precisemos colocar mais no centro a importância e a disputa de sentido de nossa
identidade e soberania como nação para os desafios internos e externos. Em
minhas análises, destaco a potente cultura que temos em suas muitas expressões,
dada a diversidade interna da nossa própria população. Cultura que também tem
raízes no potencial natural de nosso território nacional para poder se
organizar democraticamente, com respeito às diversidades de modos adaptados de
produzir as condições do viver. Precisamos fazer desta base nossa potência e
identidade nacional qualificadora da soberania. Claro que precisamos de
economia potente também, mas não para servir somente a uma pequena parcela de
“donos do mercado” e seus aliados políticos no Congresso.
Sei que
a própria ideia de nacionalismo e soberania é uma dificuldade política e um
déficit no campo da esquerda. Mas para disputar internamente hegemonia
democrática e potência transformadora, em termos de direitos iguais, a
soberania nacional também é uma condição. O capitalismo prioriza o seu domínio
sem limites e, num certo sentido, descarta totalmente democracia soberana
fundada na cidadania nacional. Não teremos verdadeira soberania e autonomia
para intensa democracia só contando com o Estado. A resistência aos ataques e
imposições externas é também uma necessidade para termos uma nação democrática
soberana em busca de influência para compartir o bem comum planetário, onde
cabem muitos mundos diferentes com seus bens comuns compartidos.
Meu
estranhamento é a passividade e a espera, sem agir e mobilizar nossas forças
como cidadania, com sua legitimidade de instituintes e constituintes da
democracia e da soberania, com todo seu poder de resistência. Não dá esperar
potência de um Governo encurralado pelo Congresso. Temos uma espécie de câncer
político autoritário destrutivo. São forças agindo no seio da sociedade com
expressão forte nas relações de poder existente. As suas manifestações públicas
até aqui demonstram satisfação e apoio diante da conjuntura de agressões
externas do Trump, mesmo que sejam diversionistas, podem enfraquecer a
capacidade de reação interna do Brasil. Lamentavelmente, isto faz parte da
correlação de forças políticas e da disputa de hegemonia democrática desde o
chão da sociedade civil, combinadas com os poderes no Estado democrático que
temos. Mas não são aceitáveis, de forma nenhuma, as agressão à soberania
democrática que é de todo o povo brasileiro. Até nesta questão precisamos
assumir nossa parte de cidadanias para conter a extrema direita autoritária,
que busca também apoio externo, seja qual for, para se impor no Brasil.
Concluo
afirmando que não vamos avançar democraticamente sem enfrentar as agressões
externas, visando manter um capitalismo globalizado a todo custo, sob o jugo de
imperialismos, quaisquer que sejam. Por isto, penso que iniciativas de
mobilização e agregação de forças de cidadanias democráticas, diversas e com
sua potencialidade, são fundamentais num contexto de agressões externas que
podem crescer. As imposições de fora, combinadas com a extrema direita
autoritária interna, são um ataque à institucionalidade democrática como nação
soberana, que lutamos para conquistar. Não dá para ficar calados e esperar
diante de tal situação.
Fonte:
Por Cândido Grzybowski, no Blog Sentido e Rumos

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