Henri
Acselrad: O clima e os territórios da politica
Um dos
autores do relatório do Painel Internacional das Mudanças Climáticas (IPCC) de
2022 alertou: “os trabalhos científicos demonstram cada vez mais claramente que
as questões de justiça social, de migração, de desenvolvimento e de conflitos
estão estreitamente entrelaçadas com a mudança climática e que as ciências
sociais devem ser maciçamente mobilizadas para estes assuntos”.
“São
problemáticas eminentemente políticas” – completou ele – “que os
climatologistas não podem prever com seus modelos matemáticos e que os
tomadores de decisão não querem que sejam abordadas nos estudos do IPCC”. A
politização da questão climática dependeria, pois da capacidade de os agentes
sociais envolvidos em sua discussão desenvolverem uma sensibilidade política a
respeito de seu tratamento.
O que
pretendemos discutir aqui é o modo como forças sociais e contextos podem
concorrer tanto para a politização como para a despolitização do debate sobre o
clima. Temos por hipótese serem reduzidas as possibilidades de que instâncias
governamentais e grandes interesses econômicos dêem densidade política ao
enfrentamento do aquecimento global, sem que atores sociais externos ao campo
do poder, não apenas cientistas, mas aqueles que expressam a perspectiva dos
grupos sociais e étnicos mais atingidos, sejam efetivamente envolvidos no
debate.
A
politização da questão climática tem se apresentado, com frequência, como um
processo relativamente truncado, à medida em que a ciência nela adquiriu papel
preponderante, deixando em suspenso o debate politico que, acredita-se, deveria
ser aberto, por ser o atravessado por conflitos materiais e de sentidos, de
forma mais ampla a todas as instâncias interessadas.
A noção
de ambientalização da política nos abre a possibilidade de considerar a
politização da questão ambiental como dimensão problemática levada à esfera
pública e, ao mesmo tempo, considerar a diversidade de estratégias pelas quais
os sujeitos se inscrevem no debate ambiental, politizando ou despolitizando a
questão.
No
primeiro caso, o envolvimento dos agentes pressupõe o entendimento de que
disputas de legitimidade emergem entre diferentes práticas de apropriação dos
recursos dos territórios. Ao longo destas disputas, são evocados o caráter
ambientalemente danoso ou benigno das práticas, tanto por seus efeitos sobre a
estabilidade ecológica da sociedade em geral, como sobre as condições
ecológicas específicas de vida e trabalho de terceiros.
Fato é
que quando certos atores questionam os padrões técnicos e locacionais de
apropriação do território e seus recursos, alegando que certas práticas
espaciais comprometem as condições ecológicas de realização das práticas de
terceiros, eles contribuem para introduzir o meio ambiente no campo político.
Esta
politização passa, também, por questionamentos sobre os fins para os quais os
homens se apropriam dos recursos do planeta; ou seja, pelo entendimento que o
meio ambiente é múltiplo em atributos socioculturais, sendo distintas as
significações e lógicas de uso, eventualmente incompatíveis, do ar, das águas e
dos sistemas vivos. A questão ambiental é politizada, igualmente, quando os
riscos ambientais são precebidos como desigualmente distribuídos pelos
diferentes grupos sociais e étnico-raciais.
Foi ao
longo dos anos 1970 que processos de ambientalização dos Estados nacionais se
configuraram em reação às críticas dirigidas aos padrões ambientais do
desenvolvimento capitalista configurado no pós-II Guerra. A literatura corrente
sobre políticas ambientais caracteriza tais processos como aqueles em que
poderes públicos passaram a adotar ações de restrição circunstancial da
prevalência de interesses econômicos em nome de razões ambientais, ou seja, por
comprometer as condições sociais de acesso apropriado ao ar, água e sistemas
vivos.
Assim é
que a montagem das agências ambientais implicou, em muitos casos, a adoção de
estratégias de prevenção da captura dos governos pelos próprios interesses a
serem regulados, buscando contrabalançar o peso de demais agências de governo,
de setores de atuação mais tradicionalmente vinculadas a interesses econômicos
empresariais.
A
entrada da questão ambiental nas agendas governamentais resultou, assim, ao
mesmo tempo, na tradução de determinadas reivindicações de proteção do meio
ambiente em termos de política pública e na redefinição de modalidades
conhecidas de ação pública de modo a fazê-las incidir sobre este novo domínio.
Após,
porém, a configuração de instâncias de regulação do meio ambiente no interior
das máquinas estatais, processos de despolitização da questão ambiental – ou
seja, de restrição do campo da ação política sobre as implicações ambientais
das práticas espaciais – foram sendo desencadeados por meio de pressões por
flexibilização de normas em nome da competitividade das economias, mas também
pela própria desmontagem direta de instituições de controle ambiental operada,
por exemplo, por forças como as que conduziram o governo brasileiro entre 2019
e 2022.
Ações
deste tipo implicaram tanto em esvaziar a capacidade de atuação dos órgãos
ambientais, como aquela dos mediadores que tentavam fazer ecoar as demandas
sociais dentro da máquina pública. Se, como se sabe, políticas ambientais visam
integrar critérios qualitativos de novo tipo nas políticas pré-existentes
relativas a demais áreas da ação governamental, como as de infraestrutura,
minas e energia, políticas industriais e agrícolas, a desmontagem das
instituições de regulação desinibiu os impulsos dos agentes calculistas
racionais que se sentiram livres para usar, em seu benefício, os bens coletivos
ambientais, sem contribuir para eliminar os males causados por suas práticas.
Governos
negacionistas, portanto, ao mesmo tempo em que se mostram empenhados em
interromper procedimentos estabelecidos de intervenção e aplicação das normas
instituídas, buscam desconstruir os quadros de referência que serviram à
ambientalização das ações governamentais, desconsiderando, assim, as
implicações da desregulação como fator de agravamento das desigualdades
ambientais e do desrespeito aos direitos de grupos não-brancos ameçaados de
serem expropriados de suas terras ou submetidos mais que proporcionalment aos
impactos das atividades poluentes.
No caso
brasileiro, isso implicou, por exemplo, em fazer convergir políticas
(anti)indigenistas e (anti)ambientais, de modo a facilitar, como foi o caso
emblemático da Instrução Normativa Conjunta nº 1 da FUNAI e do IBAMA, publicada
em 24/2/2021, a incorporação das terras indígenas aos negócios agrominerários
(DOU 21/2/2021), bem como, em julho de 2025, a aprovação do Projeto de Lei (PL)
2159/2021, o PL da Devastação.
A
desmontagem das agências públicas de controle ambiental, ao mesmo tempo em que
serve ao propósito de desqualificar o meio ambiente como problema público,
facilita a captura regulatória do governo pelos interesses a serem por ele
regulados, abrindo espaço para a linguagem da autoregulação empresarial e da
modernização ecológica retórica das grandes corporações.
As
estratégias de ambientalização das corporações converge, assim, com os
referidos processos de despolitização, tornando corrente o recurso empresarial
a propósitos como os de que a degradação ambiental é calculável e compensável,
que a proteção ambiental é um jogo de soma positiva, que a prevenção da
degradação pode dar lucro, que o problema ambiental é da ordem da gestão e não
do conflito. Toda esta retórica busca configurar uma gramática que permita
ajustar o meio ambiente à desregulação neoliberal.
“Cisão
com relação à realidade”, eis a expressão utilizada por alguns autores para
descrever “a disjunção fundamental entre a governança climática – as
instituições mundiais criadas para remediar a mudança climática – e o leque de
processos que favorecem o aquecimento planetário como a mundialização do modo
de vida ocidental, a exploração de recursos em combustíveis fósseis, a
ferocidade da competição econômica e a remilitarização das relações
internacionais”.
Esta
percepção faz ecoar aquela noção de “privação de realidade”, vista, por Hannah
Arendt, como um sintoma de despolitização próprio a contextos autoritários. O
negacionismo climático seria também uma forma de privação de realidade, mas de
modalidade distinta, configurada por meio do mascaramento de dados, da
desqualificação de evidências e da sistematização da desinformação.
Assim
sendo, a ambientalização da questão climática, ou seja, a inserção do clima no
debate ambiental mais amplo, deu-se em meio a um processo de politização da
perspectiva dos movimentos ecológicos, ao mesmo tempo em que tendências à sua
despolitização eram estimuladas por lobbies empresariais e forças políticas
representadas no interior dos Estados nacionais.
No
âmbito dos movimentos ecológicos, verificou-se o que poderíamos chamar de
politização “por impregnação”, configurada por um alargamento progressivo de
seu universo cultural, com tomadas de consciência resultantes de contatos com
ideias provenientes de movimentos sociais que constroem a questão climática
como pertinente a diagramas assimétricos de poder fundadas em processos
estruturais de apropriação do espaço e seus recursos.
As
situações de comunicação que se foram constituindo ao longo do debate público
sobre o aquecimento global contribuíram para alimentar o repertório de termos
críticos e interseccionais que foram sendo crescentemente assumidos por
movimentos sociais no campo climático.
Este
repertório veio, basicamente, se estruturando em torno à consideração de que
“aqueles e aquelas cuja contribuição ao efeito estufa é negligenciável são os
mesmos que devem se bater para satisfazer suas necessidades fundamentais e
manter seus meios de subsistência”; e que “as mesmas comunidades historicamente
confrontadas a outros sistemas de opressão – pessoas racializadas, povos
indígenas, mulheres, pessoas economicamente marginalizadas e aquelas do Sul – é
que pagam o mais pesado tributo”.
Esta
configuração do processo de politização não deixa de apresentar os traços de
uma hibridação entre o vocabulário de movimentos ambientalistas e aquele
associado à criatividade e resistência das culturas indígenas, camponesas e de
povos tradicionais, forças envolvidas na crítica a um modelo de desenvolvimento
capitalista apoiado na expropriação de terras e territórios tradicionais nos
países do Sul.
Tal
resistência veio sustentando, na contramão do discurso despolitizante que
atribui a um “homem genérico” a responsabilidade pelas mudanças climáticas, que
grupos sociais não-dominantes sempre estiveram expostos a “crises ambientais”
que lhes são específicas, dada a desestabilização sistemática sofrida pelas
condições ecológicas do exercício de suas práticas espaciais de vida e
trabalho.
Essa
desestabilização se veio dando tanto por via da exproriação de territórios de
camponeses, indigenas e povos tradicionais, como pela poluição das áreas de
moradia nas periferias urbanas e pelos efeitos danosos dos desastres
climáticos. Ou seja, nesta perspectiva, as práticas espaciais dos grupos
dominantes – dentre as quais aquelas que alimentam os lucros das indústrias de
combustíveis fósseis e o desmatamento – fundam sua reprodução numa fuga para
adiante que compromete sistematicamente a reprodução das práticas espaciais
não-dominantes.
A
desigualdade ambiental seria, assim, um elemento constitutivo da ambientalidade
do capitalismo neoliberalizado, operando como fator de viabilização da
continuidade das práticas do capitalismo fóssil pela destinação sistemática de
seus efeitos climáticos danosos para os grupos mais vulnerabilizados do
planeta.
Dunlap
e McCright sustentam que movimentos conservadores têm operado, na esfera
pública, como uma assumida força anti-reflexiva. No campo ambiental, estes
movimentos têm se mobilizado contra a adoção de regulações políticas em nome do
primado da propriedade privada e da lucratividade das corporações.
A
preferência de governos e grandes empresas por enfrentar o aquecimento global
com soluções de proficiência técnica, eficiência energética e tecnologias
verdes, centradas no mercado de carbono e em mecanismos de compensação, indica
a hegemonia de uma estratégia de “modernização climatológica do capitalismo”:
mecanismo pelo qual as instituições correntes internalizam a questão climática,
celebrando a economia de mercado, o progresso técnico e o consenso político.
Tratar-se-ia,
assim, de uma operação discursiva e política de transformação de uma restrição
técnica à expansão do capital em um mecanismo motor da própria acumulação, na
perspectiva de fazer da questão ambiental uma oportunidade de negócios,
eludindo qualquer referência a dimensões estruturais constitutivas e
atualizadas do capitalismo.
O
espaço ganho pela temática no debate público parece ter se dado, tal como
ocorrera com a solução do “desenvolvimento sustentável” nos anos 1980, apenas a
partir do momento em que os campos empresarial e governamental viram-se capazes
de oferecer uma resposta que em nada ameaçasse os fundamentos do capitalismo em
sua fase neoliberal.
A
perspectiva de fazer entrar o debate climático no campo político, requereria
certamente nele considerar a perspectiva dos sujeitos que conhecem e vivem as
dimensões conflitivas e inigualitárias dos processos climáticos, representantes
dos grupos vulnerabilizados cujas práticas espaciais e condições de vida são
correntemente comprometidas pelos efeitos danosos das práticas de desmatamento
e produção de combustíveis fósseis, fatores principais do recrudescimento dos
desastres climáticos.
É o que
fizeram recentemente as organizações dos povos indígenas dos nove países da
bacia amazônica reunidos em Bogotá durante a V Cumbre Presidencial de la
Organización del Tratado de Cooperación Amazónica (OTCA), em agosto de 2025,
reivindicando que se decrete a Amazonía como zona de exclusão de atividades
extrativas e que se dê proteção e segurança jurídica aos territorios indígenas
mediante titulação, demarcação e outras medidas.
A
filósofa Isabelle Stengers sugere que, em contextos de despolitização – de
silenciamento relativo das possibilidades de problematização da realidade como
ela está dada – a ciência é utilizada para definir os limites tidos por
objetivos no interior dos quais se poderia dar o exercício das escolhas
políticas. Dados os limites fixados por este saber supostamante mais objetivo,
restaria discutir – parece ser o pensamento corrente – apenas o resíduo que
sobra para a deliberação democrática.
Face
aos impasses do debate climático, porém, faz sentido buscar inverter tal
assertiva e perguntar, ao contrário, se não seria a qualidade do funcionamento
democrático das sociedades que asseguraria a confiabilidade e o interesse dos
saberes que elas próprias produzem. Ou seja, que quanto mais amplo for o campo
problematizado da vida social – aquele acionado na esfera política –, maior
será a contribuição que o campo cientifico, juntamente com o campo dos saberes
de povos indígenas e tradicionais, poderá dar.
Fonte:
A Terra é Redonda

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