Ações
afirmativas para indígenas
Desde a
implementação das comissões de heteroidentificação para as cotas raciais,
multiplicam-se os casos de indeferimento envolvendo candidatos autodeclarados
pardos. Alguns desses casos envolvem indivíduos cujas características
fenotípicas são socialmente vistas como “traços indígenas”, que declaram de
fato ter essa origem e/ou que são nortistas ou nordestinos.
Destaco
aqui dois casos recentes, e que ganharam alguma notoriedade pública. Em março
de 2025, a jovem amazonense Amanda Araújo Gomes, descendente de indígenas, foi
indeferida pela banca de heteroidentificação para o curso de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em
abril de 2024, a farmacêutica fluminense Glaucia Souza, filha de um homem
indígena e uma mulher negra, foi indeferida em um concurso para a vaga de
farmacêutico bioquímico, também na UFRJ. Neste agosto de 2025, Glaucia Souza
recebeu uma sentença judicial negando seu pedido para permanecer na lista de
cotistas. As duas candidatas são descendentes diretas de indígenas, e
concorreram na modalidade “pretos e pardos” – no caso, autodeclaradas “pardas”.
Mas, afinal, pessoas como Glaucia e Amanda devem ou não fazer jus à política de
cotas?
Não
pretendo, com este texto, responsabilizar os movimentos sociais negros por um
problema que antecede a própria existência deles. Tampouco é meu intuito fazer
das bancas de heteroidentificação um “bode expiatório”, menos ainda
deslegitimar a política de cotas raciais. Essas seriam saídas fáceis para um
problema bem mais complexo.
Antes,
meu propósito é muito outro: discutir a responsabilidade do Estado brasileiro
para com pessoas como Amanda e Glaucia. Começo com uma questão central: por que
pessoas de origem indígena se declaram como pardas, e concorrem às cotas
raciais nessa modalidade, ao invés de se autodeclararem e concorrerem como
indígenas?
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A formação histórica do caboclo
Uma
forma de responder isso é voltando à história do Brasil – mais especificamente,
à história da formação do grupo que ficou historicamente conhecido como
“caboclo”. Esse tema já foi abordado com excelência e profundidade histórica no
texto “Pardos-indígenas – dilemas das cotas raciais”, assinado pelo historiador
João Victor Castela. O pesquisador nos explica que, durante o período colonial,
indígenas de diversas etnias foram agrupados nas missões jesuíticas, onde eram
catequizados e aprendiam a “língua geral”, bem como usos e costumes europeus.
Esse
processo de transfiguração cultural acabou por fazer com que, com o passar das
gerações, os indígenas submetidos a isso fossem progressivamente perdendo a
memória de quais eram suas etnias específicas – afinal, com a substituição da
língua nativa pela “língua geral” (e, posteriormente, pelo português), bem como
a intensa mescla entre diferentes etnias, ficava difícil, quase impossível,
manter esse tipo de informação.
É a
partir daí que emerge a figura do “caboclo”: um indígena genérico, que apenas
se sabia ser indígena, mas cuja etnia específica era desconhecida. Já os
indígenas que não foram assimilados à sociedade colonial ficaram historicamente
conhecidos como “índios bravos” ou “tapuias de língua travada”, vistos como
“selvagens” e “hostis” – enquanto o caboclo, ou “índio da língua geral”, era
considerado “civilizado”.
Essa
história, para o bem ou para o mal, introduziu uma cisão insuperável na
população nativa. “Caboclos” e “índios bravos” tornaram-se dois grupos que
seguiram trajetórias histórico-sociais absolutamente distintas, e que não
raramente nutriam relação de alteridade entre si.
A
grosso modo, podemos dizer que as pessoas de origem indígena que hoje se
autodeclaram “pardas” são descendentes dos caboclos dos séculos XVIII e XIX.
Por isso mesmo não sabem dizer suas etnias de origem – sequer se identificam
como indígenas, em primeiro lugar, já que historicamente o “caboclo” sempre
ocupou um lugar social muito diferente do “índio bravo”.
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Por que descendentes de indígenas se declaram pardos?
A
partir de 1940, o IBGE descontinuou a categoria “caboclo” como opção oficial de
resposta no quesito “cor” dos censos nacionais, incluindo-os na categoria
parda. Descendentes de indígenas, portanto, estão oficialmente contados como
“pardos” há mais de oito décadas. Vale lembrar que as maiores proporções de
pardos são registradas em estados amazônicos: Pará (69,87%), Amazonas (68,79%)
e Acre (66,25%). Se, na Bahia, o “pardo” é um negro de pele clara, no Amazonas,
“pardo” é o descendente de indígenas – mas por que apenas a perspectiva
sudestina e baiana (nunca a nortista) é considerada no debate racial?
E, por
mais que alguns queiram defender que tais pessoas devam se declarar indígenas,
isso não é uma saída sequer viável para a maioria. Primeiro porque “indígena”,
ao contrário de “negro” e “branco”, não é uma categoria definida por fenótipo.
Sim, existem os “traços indígenas”. Entretanto, a identidade indígena não é
definida por isso. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), marco legal de referência para os povos originários, define o indígena
como aquele que se reconhece como parte de um povo indígena, e é também
reconhecido pelo povo a que diz pertencer.
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O pardo descendente de indígenas também merece reparação?
Como
argumentei anteriormente, a maioria dos pardos descendentes de indígenas sequer
sabem, em primeiro lugar, o povo ao qual pertenciam seus ancestrais. E, ainda
que o saibam, não necessariamente serão reconhecidos por ele, tendo em vista
que diversos povos não reconhecem descendentes que foram socializados fora das
comunidades.
Esse
critério se reflete nos editais para cotas raciais, que exigem do candidato
indígena que comprove pertencimento étnico por meio do RANI ou de uma
declaração de pertencimento étnico assinada por uma liderança indígena.
Para
pessoas como Glaucia e Amanda, que nunca tiveram qualquer inserção em qualquer
comunidade indígena, tal documentação é impraticável de ser obtida. Como afirma
Glaucia Souza em sua rede social: “Eu não tenho esse documento e acredito que
não faço jus ao mesmo, pois o meu pai era um homem que foi aldeado e viveu essa
realidade, eu não”.
Na
mesma direção, Amanda também afirmou: “a cota de indígenas é apenas para
aqueles que possuem o RANI ou o reconhecimento de uma liderança indígena. Se eu
colocasse a cota para pessoas indígenas, eu poderia estar tirando o lugar de
quem realmente tem direito, aí sim seria injustiça”.
As
candidatas reconhecem que não fazem jus às cotas para indígenas. Mesmo que
quisessem concorrer nessa modalidade, esbarrariam no obstáculo da prova
documental. Lhes resta, portanto, concorrer na modalidade “pretos e pardos”. O
que esbarra em outro impasse: as bancas de heteroidentificação costumam aprovar
apenas os pardos que percebem como “negros de pele clara”.
E tanto
Amanda quanto Glaucia sabem não ter tais características – como poderiam ter,
sendo descendentes de indígenas? Como afirmou Glaucia em sua rede social: “sou
filha de uma mulher negra e um homem indígena e meu fenótipo mais se assemelha
ao meu pai. Então não, eu não tenho um cabelo crespo ou um nariz negroide, mas
sou visualmente parda”. Amanda: “sempre reconhecida como descendente de
indígenas, que segundo o IBGE também é considerado pardo, além de possuir as
características físicas que indicam isso. Sou natural do município mais
indígena do Brasil (São Gabriel da Cachoeira, AM)”.
A fala
de Amanda sobre descendentes de indígenas serem considerados pardos pelo IBGE
se ancora na própria definição do Instituto, que define como parda a “pessoa
que se identifique com mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo
branca, preta, parda e indígena” – a menção à origem indígena estando,
portanto, de fato explícita no próprio documento oficial do Instituto.
A
autodeclaração das candidatas não está necessariamente errada. A ideia do pardo
enquanto “negro de pele clara” pode até ser o entendimento legalmente
consolidado, mas não necessariamente reflete o pensamento do cidadão brasileiro
médio. Vale lembrar que 60% dos pardos não se consideram negros, segundo
levantamento recente do Instituto Datafolha – parte desse número pode ser
atribuído a descendentes de indígenas que não foram socializados como indígenas
e/ou que desconhecem seu povo específico de origem, como é o caso de Amanda e
Glaucia. Mas pessoas como elas precisam de cotas raciais?
Historicamente,
os caboclos nunca ocuparam o mesmo lugar do branco – assunto já tratado pelo
antropólogo Charles Wagley (1952), cujo estudo sobre as relações raciais na
Amazônia, por alguma sintomática razão, pouco é citado hoje. Charles Wagley
observou que os caboclos constituíam uma camada de camponeses ou trabalhadores
urbanos empobrecidos.
Em
Manaus, a capital mais parda do país, qualquer um que visite o Distrito
Industrial perceberá uma nítida divisão racial, em que os operários, com o
característico tipo físico amazônico, são chefiados por brancos ou asiáticos.
Há apenas duas semanas lembro-me de, ao dobrar uma esquina em Belém, ter visto
crianças moradoras de rua: todas de pele parda, cabelos lisos e o
característico fenótipo amazônico. Isso tem uma razão histórica de ser.
Os
povos indígenas sempre tiveram uma economia de subsistência. O caboclo é
descendente daqueles que foram retirados de seus territórios e integrados
(muitas vezes de forma forçada) ao modo de vida ocidental. Com isso, tiveram de
se adaptar a um sistema econômico que lhes era estranho: o sistema de
acumulação capitalista. A vulnerabilidade socioeconômica hoje observada nesse
grupo deriva do fato de que sua “integração” a esse sistema nunca foi plena.
Foram integrados como servos precarizados.
Como
afirmou Roberto Cardoso de Oliveira (1996, p. 117), o caboclo é visto como
“alguém cujo único destino é trabalhar para o branco”. Isso fica evidente em um
episódio da série “Brasil Hoje” sobre a Zona Franca de Manaus, transmitido em
1975 e disponível no arquivo nacional. Por volta do minuto 4:00, declara o
narrador: “A indústria de joias de Manaus forma o seu próprio pessoal: caboclos
subitamente transformados em unidades de trabalho de excelente produtividade e
assimilação”. É exatamente assim que a branquitude enxerga o caboclo: um mero
“peão”.
No
passado, o Estado retirou os ancestrais dos atuais “pardos de origem indígena”
de suas terras. Integrou-os forçosamente a um modo de produção radicalmente
diferente daquele que conheciam e praticavam. Transformou-os em força de
trabalho precarizada. O mesmo Estado que fez isso hoje deve, sim, alguma
reparação aos descendentes das vítimas desse processo histórico. Assim como
deve reparação ao negro e ao indígena étnico. Entretanto, à diferença destes
dois últimos grupos, o Estado nunca se preocupou em reparar nada ao pardo
não-negro de ascendência indígena, descendente dos antigos caboclos.
Qual a
solução para essa questão? Particularmente, não penso que o caminho seja
através das ações afirmativas para indígenas. Afinal, a identidade indígena, no
Brasil, se constituiu de maneira etnificada, e não racializada. Definir o
acesso às cotas para indígenas por um critério fenotípico, em lugar do
pertencimento étnico comprovado por documentos, enfrentará resistências
(justas) por parte dos movimentos indígenas.
O
caminho, a meu ver, perpassa pelo reconhecimento dos fenótipos indígenas como
uma possibilidade dentro da categoria parda. O que, diga-se de passagem, já
ocorre na mentalidade da população. Logo, não estaria sendo inventado nada que
não já exista na prática. Seria, apenas, um reconhecimento institucional de um
fenômeno já existente. Isso possibilitaria que as bancas aprovassem, além dos
pardos de fenótipo negro, também os de fenótipo indígena.
É
verdade que as cotas raciais foram projetadas para as pessoas negras.
Entretanto, também é verdade que há milhões de Glaucias e Amandas que crescem
se entendendo como “pardas”, estão em franca vulnerabilidade socioeconômica e
amargam desigualdade estrutural e histórica em relação ao branco.
Essas
pessoas também ouvem aos quatro cantos que há cotas raciais para “pretos e
pardos” – e, por se entenderem como “pardas”, julgam-se público-alvo da
política. Entretanto, diferentemente das pessoas socialmente lidas como brancas
que se autodeclaram pardas, os descendentes de indígenas não fazem isto por
má-fé ou para burlar o sistema. Buscam essa política porque se sabem
racializados.
Como
dito no início do texto, não pretendo responsabilizar os movimentos negros
pelas mazelas dos “caboclos”, que são históricas e já duram séculos. A
responsabilidade ainda é do Estado, que sequer se importou em produzir dados
sobre essa população – pelo contrário: agiu para a sua invisibilização em 1940.
A responsabilidade é, também, do próprio grupo, que deveria se organizar
politicamente.
De todo
modo, fato é que certificados étnicos e avaliações fenotípicas baseadas em
“traços negroides” não dão conta de um grupo de pessoas que, por um lado, não
estão inseridas em grupos étnicos; por outro lado, não apresentam
características fenotípicas de pessoas negras – afinal, podemos dizer que são
verdadeiros “indígenas raciais”. Disso resulta que esse grupo, apesar de
afetado pelo racismo, não consegue se beneficiar das políticas de equidade, na
configuração que possuem atualmente. Algo deve ser feito por essas pessoas.
Dos
movimentos negros e indígenas espera-se, minimamente, que apoiem estas pessoas
e suas eventuais (e razoáveis) reivindicações por reformas na lei de cotas e no
Estatuto da Igualdade Racial – ressalto: reforma, e jamais revogação. Negros e
indígenas já deram suas mãos contra o colonialismo no passado. Nada impede que
hoje façamos novamente o mesmo. Dessa vez, contra exclusões injustas
ocasionadas por falhas em uma política pública que ainda tem muito o que ser
aperfeiçoada, para que beneficie mais pessoas racializadas e reflita a
diversidade racial de um país continental – que está bem longe de ser apenas
preto-e-branco.
Fonte:
Por Leonardo Rocha, em A Terra é Redonda

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