quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Marcada por xenofobia e racismo, história dos EUA mostra país fadado ao fascismo

Políticos dos EUA sempre utilizaram os mais vulneráveis como bodes expiatórios e para dividir as sociedades; se hoje os latino-americanos estão no alvo, antes estiveram irlandeses, italianos, chineses, japoneses e judeus

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Dos escombros de quatro décadas de neoliberalismo nos Estados Unidos, brotou o neofascismo (ou protofascismo, ou talvez seja necessário outro prefixo), dedicado a consolidar a concentração de riqueza sem precedentes em um século, lucrar com o Estado e os bens públicos e desmantelar as conquistas que restam de décadas de luta social de sindicatos, mulheres, minorias raciais, comunidade gay, agricultores, ambientalistas, defensores da liberdade de expressão, movimentos pela paz e mais — ou seja, tudo o que democratizava o país mais poderoso do mundo.

Quando o projeto neoliberal foi inicialmente impulsionado com Reagan nos anos 1980, o músico Frank Zappa famosamente advertiu que “a maior ameaça enfrentada pelos Estados Unidos não é o comunismo, e sim que o país está se movendo rumo a um fascismo teocrático”. Todos os dias esse projeto antidemocrático avança, e o país se empapa de ódio, crueldade e mediocridade oficial.

Tudo isso é novo e não é. É recente que essas forças ultradireitistas tenham tomado o controle dos três ramos do governo federal, por ora. Não é novidade o ataque violento contra imigrantes, que tem vários precedentes: durante a presidência de Dwight Eisenhower foi realizada o que alguns chamam de a maior deportação em massa da história do país, na qual se expulsou com táticas militares entre 300 mil e 1,3 milhão de mexicanos (não há consenso sobre o número), na chamada Operação Costas Molhadas (Wetback). Nos anos 1930, expulsou-se entre 300 mil e até 2 milhões de mexicanos, entre eles milhares de cidadãos estadunidenses. O país também encarcerou em campos de concentração mais de 120 mil estadunidenses de ascendência japonesa – famílias inteiras –, com a justificativa da guerra contra o Japão. E mais recentemente, sob presidentes de ambos os partidos, as expulsões de imigrantes se multiplicaram, algo que valeu a Obama o apelido de “deportador chefe”.

Todas essas operações e políticas foram nutridas pela xenofobia e pelo racismo. Nos anos recentes, isso tem se concentrado sobre os mexicanos e os latino-americanos, mas antes recaiu sobre irlandeses, italianos, chineses e judeus – sem falar dos descendentes de africanos que chegaram contra sua vontade como escravizados. Toda essa história está presente nesta conjuntura.

Além do fato de que a direita sempre utilizou os mais vulneráveis como bodes expiatórios e para dividir as sociedades, não é coincidência que esse ataque seja contra imigrantes e seus aliados, que historicamente democratizaram – e seguem democratizando – a nação. Encabeçaram as grandes lutas pelos direitos dos trabalhadores, das mulheres, por educação, moradia digna e acesso à saúde.

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Irlandeses, italianos, alemães, judeus, afro-estadunidenses, latinos e caribenhos construíram não só o país, mas também grandes sindicatos, organizações comunitárias, jornais e outros meios – além ainda de toda a cultura: música, literatura, cinema e televisão (os filmes western de cowboys, que são parte do mito fundamental do que é ser “americano”, foram criados por imigrantes judeus europeus que jamais viveram nesse universo, por exemplo). Esses grupos atuaram como dirigentes de correntes anarquistas, socialistas, comunistas, social-democratas – algumas das quais existem ainda hoje. Os imigrantes e seus aliados impulsionaram lutas históricas, como dos trabalhadores ferroviários e do Industrial Workers of the World (IWW – Trabalhadores Industriais do Mundo, em tradução livre) em fábricas têxteis e minas no início do século passado (aliados dos Flores Magón). Antes disso, houve o movimento pela jornada de oito horas – celebrado no mundo todo (mas não aqui) no Primeiro de Maio – e as mobilizações dos trabalhadores automotivos, siderúrgicos, mineiros, estivadores, de serviços e hotéis e, claro, os diaristas nos campos.

Com razão, o projeto de “fazer a América grande outra vez” busca expulsar, controlar, amedrontar e perseguir os herdeiros dessa grande corrente democratizadora, nutrida todos os dias por imigrantes desde os primórdios do país até hoje. O futuro depende dessa luta democratizadora – mais uma vez. É a fênix estadunidense — e por isso querem enjaulá-la.

<><> Hiroshima e Nagasaki

Em 6 de agosto, o mundo marcou o 80º aniversário do primeiro, e até hoje único, uso de uma arma de destruição em massa na história: a bomba atômica que Washington lançou sobre Hiroshima. Três dias depois, lançou um segundo projétil de plutônio sobre Nagasaki.

Cinco dias antes desse aniversário, que inaugurou a era nuclear — esse grande avanço da humanidade em que se inventaram os meios para aniquilar a própria humanidade —, o presidente estadunidense decidiu brincar com seu botão nuclear. Anunciou, por suas redes sociais, que havia ordenado posicionar dois submarinos nucleares em “lugares apropriados” — em resposta a um tuíte de um ex-presidente russo — e, com isso, dar um primeiro passo possivelmente rumo a um apocalipse mundial.

Analistas, comentaristas, acadêmicos e especialistas responderam como fazem quase todos os dias, tentando avaliar se a então mais recente declaração de Trump era séria, apenas um novo rompante ou as duas coisas. Mas quase todos decidiram que não havia nada de demasiado grave no fato de o comandante chefe estar brincando com uma guerra nuclear — ou seja, a resposta geral à mensagem irresponsável, que deveria ser inaceitável, foi quase tão irresponsável quanto, e igualmente deveria ser inaceitável. A memória da morte de cerca de 350 mil civis no Japão, há 80 anos, pareceu não provocar qualquer ação no presente.

<><> Holocausto

Nessa mesma guerra, na Europa, a morte sistemática de 6 milhões de judeus, comunistas e anarquistas, entre outros, pelo regime nazista — assim como as vidas daqueles que resistiram ao franquismo e ao fascismo italiano — fazem parte central dessa história. O Holocausto judeu é parte da justificativa para criar o Estado de Israel, mas essa memória agora é usada por sionistas e direitistas para justificar um genocídio contra outro povo, o palestino. Gaza tornou-se algo entre o que eram os guetos judeus na Europa e um gigantesco campo de concentração.

Desde organizações judaicas progressistas nos Estados Unidos, até ativistas do Jewish Voice for Peace (Vozes Judaicas pela Paz, em tradução literal, estudantes judeus que ajudaram a liderar protestos massivos nas universidades), sobreviventes do Holocausto, rabinos em ações de desobediência civil, juntamente com intelectuais, artistas e atores judeus — que condenam a guerra de Israel e a cumplicidade estadunidense e se recusam a permitir o uso dessa memória para justificar a ofensiva israelense contra os palestinos — formam parte de um coro que, repetidas vezes, retoma a frase “Nunca mais”, em referência à luta contra qualquer tentativa de repetir esse crime terrível, não apenas contra eles, mas contra qualquer povo.

<><> Manter a memória viva

A amnésia histórica é fundamental para o exercício do poder aqui. Isso permite continuar com barbaridades atuais, desde ameaças de guerra nuclear até a cumplicidade com um genocídio, entre outras coisas. Por isso é tão essencial — e tão perigoso para o poder — que historiadores, filósofos, romancistas, cineastas e músicos mantenham viva a memória.

É fundamental que um intelectual como Jeffrey Sachs afirme que os Estados Unidos têm sido “o país mais violento do mundo desde 1950”, lembrando que, entre 1945 e 1989, realizaram mais de 70 operações de mudança de regime. A obra de Howard Zinn e seus herdeiros, a de Noam Chomsky e de tantos outros, ao manter viva a memória, constitui o antídoto necessário contra essa amnésia dentro do país mais poderoso do planeta.

O comediante George Carlin, há vários anos, ofereceu um telegráfico resumo da história estadunidense: “Este país está fundado sobre a dupla moral, é a nossa história. Foi fundado por escravistas que queriam ser livres… Para isso, mataram um monte de ingleses brancos, para poder continuar sendo donos de africanos negros. Depois, continuaram aniquilando o restante do povo indígena vermelho e avançaram para o oeste para roubar o restante da terra do povo mexicano moreno. E, assim, ter um lugar de onde lançar suas armas nucleares para jogá-las sobre o povo japonês amarelo.” Talvez precisemos de mais historiadores cômicos.

Manter a memória viva permite mudar o futuro.

¨      Os republicanos estão tentando garantir que nunca mais teremos outra eleição justa. Por Judith Levine

"Cristãos, saiam e votem, só que desta vez", Donald Trump exortou o público em um evento de campanha organizado pelo partido conservador Turning Point Action em julho de 2024. "Em quatro anos, vocês não precisarão votar novamente. Vamos consertar tudo tão bem que vocês não precisarão mais votar."

Desde sua derrota para Joe Biden em 2020, Trump vem se esforçando para cumprir essa promessa, primeiro fomentando suspeitas de fraude eleitoral generalizada, depois tentando anular os resultados por meio de contestação judicial e intimidação e, finalmente, em 6 de janeiro de 2021, pela força. Agora, a Casa Branca e os republicanos, tanto em Washington quanto nos estados, estão conspirando mais descaradamente do que nunca para "consertar a situação" — "a situação" significa eleições livres e justas que eles podem perder.

O objetivo dos republicanos é o controle permanente do governo dos EUA. O de Trump é a coroa. À medida que seus ataques ao direito ao voto – e à própria instituição das eleições – se intensificam, seu sucesso começa a parecer, se não inevitável, assustadoramente possível.

As táticas de Trump estão funcionando.

A eleição de 2020 foi a mais limpa e eficiente da história. Alegações de fraude desenfreada são mentiras – a grande mentira, como afirmou o comitê de impeachment da Câmara de 2021. Mas não entre os eleitores republicanos. Uma pesquisa Pew realizada antes da eleição de 2024 revelou que os apoiadores de Trump estavam "profundamente céticos quanto à forma como a eleição será conduzida", especialmente em comparação com os apoiadores de Harris. Enquanto mais de 85% dos eleitores democratas acreditavam que, em 2024, os votos ausentes seriam contados com precisão e os eleitores inelegíveis seriam impedidos de votar, entre os apoiadores de Trump apenas 38% e 30%, respectivamente, sentiam o mesmo.

Impulsionados pela grande mentira – e libertados pela destruição da Lei dos Direitos ao Voto pela Suprema Corte em 2013 – as tentativas de supressão de eleitores atingiram o ápice após as eleições de 2020, quando os legisladores apresentaram mais de 400 projetos de lei restritivos. Ao assinar a Lei de Integridade Eleitoral da Geórgia, de 98 páginas, em 2021, Brian Kemp, o governador republicano, foi inequívoco quanto ao seu objetivo partidário. "Após a eleição de novembro do ano passado" – quando o comparecimento recorde no estado consistentemente republicano rendeu vitórias para Biden e dois senadores democratas, e o secretário de Estado resistiu à pressão de Trump para "encontrar 11.780 votos" para reverter o resultado – "eu sabia, como muitos de vocês, que reformas significativas em nossas eleições estaduais eram necessárias", disse ele .

Até setembro de 2024, 31 estados haviam promulgado 114 dessas leis.

Em maio de 2024, Trump disse ao Milwaukee Journal Sentinel que aceitaria os resultados da eleição somente se "tudo fosse honesto" – ou seja, se ele vencesse. Essa definição de honestidade se consolidou. De acordo com algumas pesquisas , antes do dia da eleição, menos de um quarto dos apoiadores de Trump acreditavam que a eleição seria justa. Depois dela, seus índices de confiança mais que dobraram. E embora as preocupações republicanas com fraude fossem generalizadas em 2020, elas eram – surpresa, surpresa – praticamente inexistentes quando os resultados de 2024 foram divulgados.

Com seu representante na Casa Branca, os republicanos do Congresso começaram a se preparar para sua coroação. Três dias após o início do mandato de Trump, o deputado Andy Ogles, do Tennessee, apresentou um projeto de lei para alterar a Constituição e permitir que os presidentes cumpram três mandatos. Na Trumpstore.com, você pode comprar um boné vermelho com a inscrição "Trump 2028" por US$ 50 .

Em 25 de março, Trump emitiu o decreto "Preservando e Protegendo a Integridade das Eleições Americanas", que mescla sua paranoia xenófoba com seu desejo de "manipular" as eleições. Seus mandatos variam da exigência de comprovação de cidadania para votar (uma resposta à ameaça espectral de pessoas sem documentos lotando as urnas) à proibição dos códigos de barras que agilizam a contagem de votos.

A ordem executiva em si é ilegal. A constituição dá aos estados, e não ao presidente, o poder de regulamentar as eleições.

Em 4 de abril, a Câmara aprovou a Lei de Elegibilidade do Eleitor Americano (Save) , exigindo que os registrantes e eleitores documentem a cidadania.

A campanha de interferência eleitoral do Partido Republicano está se acelerando. Em 7 de julho, a divisão de direitos civis do Departamento de Justiça escreveu uma carta a Greg Abbott, governador do Texas, e a Ken Paxton, procurador-geral do estado, alegando que quatro de seus "distritos de coalizão" com maioria e minoria são ilegais segundo a Lei do Direito ao Voto e ordenando ao estado que redesenhasse seu mapa eleitoral. Especialistas em direito ao voto contestam essa interpretação. De fato, a lei proíbe a diluição do poder eleitoral de eleitores não brancos, seja concentrando-os em um único distrito ou distribuindo-os por meio de gerrymandering – que é o que o novo mapa faria.

Em meados de julho, o Departamento de Justiça emitiu amplos pedidos aos funcionários eleitorais estaduais para que entregassem seus dados eleitorais e listas de eleitores. No Colorado, onde Biden venceu por 11 pontos em 2020, um sujeito chamado Jeff Small – chefe de gabinete da deputada republicana do Colorado e defensora do Save Act, Lauren Boebert – começou a contatar autoridades, alegando estar trabalhando com o governo Trump na "integridade" eleitoral e perguntando se eles gentilmente permitiriam que o governo federal, ou alguém, inspecionasse suas urnas, de acordo com reportagem do Washington Post . Após um desses pedidos, o Departamento de Segurança Interna ligou para dar prosseguimento ao processo.

Autoridades de ambos os partidos ficaram indignadas, especialmente quando se tratou de manipular os equipamentos, um ato ilegal. "Qualquer pessoa que peça acesso às máquinas de votação fora da lei" é suspeita, disse o diretor executivo republicano da Associação de Escrivães do Condado do Colorado ao Washington Post . "Isso automaticamente levanta suspeitas quanto à sua intenção."

A secretária de Estado democrata do Colorado fez uma observação mais ampla: "Tudo isso faz parte de uma manobra maior para minar ainda mais o nosso direito de voto neste país", disse ela. "Eles estão ativamente em uma disputa de poder."

Enquanto isso, a Casa Branca pressionava o governador e os líderes legislativos do Texas a redesenhar seu mapa eleitoral de acordo com as especificações de Trump, desmantelando redutos democratas para criar mais cinco cadeiras republicanas na Câmara – às quais o presidente afirmou que seu partido tinha " direito ". Quando o Texas aderiu, em 3 de agosto, os 51 democratas do estado deixaram o estado , correndo o risco de multas e prisão, para frustrar a iniciativa.

Para cobrir todas as bases, em 7 de agosto, Trump ordenou que o Departamento de Comércio preparasse um novo censo dos EUA, excluindo imigrantes indocumentados. Segundo a Constituição, o censo conta o número de "pessoas", não de cidadãos; deve ser realizado "a cada... dez anos", e os estados devem redistritar para concordar com os novos dados. Em uma publicação no Truth Social , o presidente descreveu uma contagem personalizada "usando os resultados e as informações obtidas na eleição presidencial de 2024".

No mesmo dia, o vice-presidente, JD Vance, chegou ao estado republicano de Indiana com um trio de indicados por Trump para pressionar seus líderes a também realizarem redistritamento. Mais tarde, no dia 10 , o vice-governador de Indiana, Micah Beckwith, ajoelhou-se diante de Vance: "Sua liderança ousada e seu apoio inabalável à missão do presidente Trump de expandir a maioria conservadora no Congresso são exatamente o que a América precisa agora."

Na Fox News , o vice-presidente repetiu a afirmação de Trump de que contabilizar imigrantes indocumentados no censo injustamente dá vantagem aos democratas, a quem ele também acusou de manipulação "agressiva" de distritos eleitorais. "Estamos apenas tentando reequilibrar a balança", disse Vance.

Após duas semanas, os democratas retornaram à Câmara Estadual do Texas. Líderes republicanos os forçaram a assinar "autorizações" para deixar o plenário e designaram escoltas policiais para monitorá-los. Após se recusar a assinar, uma democrata passou noites no plenário . Enquanto falava ao telefone com Gavin Newsom, o governador da Califórnia, do banheiro, ela foi informada de que a ligação constituía um crime, disse ela.

No sábado, o Senado do Texas aprovou a legislação que cria o novo mapa, que Abbott afirma que assinará "rapidamente" . A medida já havia desencadeado uma avalanche de redistritamentos em meados da década, liderados pela Califórnia. Outros estados, controlados por ambos os partidos, podem seguir o exemplo.

Na semana passada, no Truth Social, Trump anunciou que "lideraria um movimento" para eliminar as cédulas de votação pelo correio – uma ideia que aparentemente herdou de Vladimir Putin – e também as urnas eletrônicas "imprecisas". Ele disse que assinaria um decreto executivo para esse fim em breve. "Lembrem-se, os Estados são apenas 'agentes' do Governo Federal na contagem e tabulação dos votos", fantasiou Trump. "Eles devem fazer o que o Governo Federal, representado pelo Presidente dos Estados Unidos, lhes ordenar, PARA O BEM DO NOSSO PAÍS."

Talvez a seguinte ordem elimine completamente a votação — para o bem do nosso país, é claro.

 

Fonte: Diálogos do Sul Global/The Guardian

 

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