Tesouro
da Caatinga, licuri ganha novos horizontes na bioeconomia graças à ciência
Um
levantamento feito em 2025 pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
mapeou mais de 60 espécies nativas de plantas da Caatinga brasileira utilizadas
por comunidades tradicionais. Entre elas, uma ganha destaque por suas múltiplas
aplicações: o licuri (Syagrus coronata).
Essa
palmeira nativa do semiárido nordestino — também conhecida como “ouricuri” ou
“coco-cabeçudo”, entre outros nomes populares — se tornou aliada de diferentes
comunidades brasileiras: seus frutos viram alimento saudável e fonte para a
extração de óleos, enquanto suas fibras e palhas são convertidas em
matéria-prima para o artesanato.
Protagonista
histórico de um bioma conhecido pela importância de seus serviços ambientais, o
licuri também chama a atenção da ciência, que busca investigar mais a fundo a
versatilidade biotecnológica da espécie.
Esse é
um dos objetivos de novas pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Bioprospecção
e Conservação da Caatinga (NBioCaat), que faz parte da UFPE. Aliando
informações sobre práticas tradicionais ao resultado de testes laboratoriais, o
instituto verificou propriedades do licuri com potencial de uso em diferentes
produtos — não apenas da indústria alimentícia, mas, também, farmacêuticos e
cosméticos.
Segundo
Márcia Vanusa, pesquisadora da UFPE e doutora em Biologia Celular e Molecular,
o conhecimento ancestral de diferentes populações humanas que vivem em áreas de
Caatinga é o “ponto de partida” dos estudos sobre a planta.
Ela diz
que esses “saberes” são transmitidos de forma oral entre gerações, sobretudo
por mulheres mais idosas e com vasto conhecimento empírico. Ainda que
subjetivos, esses elementos são “indispensáveis” às análises técnicas
posteriores, auxiliando cientistas na busca por qualidades bioquímicas.
“Entre
os seres vivos que encontramos, o licuri é o que se pode chamar de
‘planta-chave’. Seu óleo tem muitas propriedades farmacológicas — analgésicas,
cicatrizantes, anti-inflamatórias, de proteção solar e de prevenção gástrica”,
disse à Mongabay.
Curiosamente,
muitos desses efeitos são “velhos conhecidos” no imaginário popular, diz
Vanusa. A ciência, agora, busca entendê-los melhor — e dar mais visibilidade ao
que for descoberto.
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‘Frutos’ para a ciência e para o empreendedorismo
As
pesquisas sobre a planta já encontram resultados práticos. Um dos avanços de
maior destaque levou à emissão, em 2023, de um pedido de patente para um
composto à base de óleo de licuri, que serve tanto para o tratamento de feridas
quanto para auxiliar terapias contra dores variadas, inflamações e até quadros
de febre. Outras descobertas, que mencionam níveis seguros e eficazes de
produtos derivados do licuri, tornaram-se tema de artigos científicos,
publicados por pesquisadores do NBioCaat em revistas de circulação
internacional.
Testes
feitos pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM),
localizado em Campinas, no estado de São Paulo, também destacam um dos vários
elementos presentes em alta concentração no “tesouro da Caatinga”: o ácido
láurico, um composto graxo saturado, encontrado também em grande quantidade no
óleo de coco, além de diferentes tipos de óleos e leites de origem vegetal e
animal.
“Precisávamos
saber o que era esse óleo, por isso avaliamos amostras [colhidas] em várias
localidades [da Caatinga] — e identificamos o ácido láurico em 40-60% das
amostras. Esse composto é procurado mundialmente pela indústria dos
cosméticos”, disse Maria Tereza Correia, pesquisadora do NBioCaat e doutora em
Ciências Biológicas.
Sob os
olhares da ciência, mas com espírito empreendedor, cooperativas que trabalham
com o licuri também enxergam nesses resultados a possibilidade de desenvolver e
prospectar novos produtos.
Esse é
um dos objetivos da Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina
(Coopes), com sede no município de Capim Grosso, no estado da Bahia. Nome
conhecido no setor cooperativista, a Coopes diz que a criação de novos itens
pode ser determinante para a busca por produtos com maior valor agregado. Por
isso, eles apoiam a realização de novas pesquisas.
De
acordo com Valdivino “Dino” Araújo Silva, cofundador e atual coordenador de
relações institucionais da Coopes, a organização das cooperativas, aliada ao
conhecimento científico, foi responsável pelo “salto” do licuri: antes vendido
a intermediários abaixo do preço de mercado, derivados da palmeira foram
incorporados a uma cadeia produtiva mais sustentável e estruturada, tornando-se
um ativo estratégico para todo o Território Piemonte da Diamantina, região que
engloba 10 municípios baianos.
O
coordenador diz que as famílias sertanejas tradicionais que faziam a coleta nos
oricurizais da Bahia “sempre usaram” o licuri como cosmético e fonte de
cuidados medicinais. Para ele, a ciência agora pode ampliar horizontes.
Segundo
Silva, “as pesquisas só confirmaram o que se sabia [empiricamente]: o óleo do
licuri contém substâncias que ajudam muito na cicatrização. A valorização
econômica também reflete no lado ambiental. Queremos recuperar áreas [de
Caatinga] que foram degradadas. Além dos benefícios econômicos, o meio ambiente
da região agradece.”
O
processo de reflorestamento da palmeira ainda é um desafio para o setor, mas
segue no radar das cooperativas e de especialistas, segundo fontes ouvidas pela
reportagem.
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Novas oportunidades de negócio
Atualmente,
a Coopes conta com 188 cooperados dentro de sua rede. Os benefícios
socioeconômicos, no entanto, vão além: segundo Silva, cerca de 2 mil famílias
da região são favorecidas de forma indireta, seja por meio de capacitações,
oficinas de culinária ou participação em feiras de artesanato.
A
cooperativa também costura relações comerciais com grandes empresas do mercado
global, como a multinacional francesa de cosméticos e produtos de bem-estar
L’Occitane, uma das líderes do segmento no Brasil.
Na
indústria de alimentos, a produção se diversifica: o licuri pode ser vendido
torrado ou mesmo como ingrediente para doces típicos, bolos, iogurte e bombons,
entre outros itens.
Até
mesmo cervejas feitas a partir do fruto ganham fama na região. É o caso da
Blond Ale Licuri, produzida pela cooperativa agrícola CooperSabor. A companhia
descreve a bebida como um “produto do extrativismo da agricultura familiar” que
tem como fonte “a palmeira símbolo do Nordeste”.
Agora,
a rede busca inserir sua produção na linha farmacológica. Para Alzir Antônio
Mahl, diretor de pesquisa e desenvolvimento do laboratório da Fundação Baiana
de Pesquisa Científica e Desenvolvimento Tecnológico, Fornecimento e
Distribuição de Medicamentos (Bahiafarma), instituição vinculada à Secretaria
da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), o processo é longo, mas está “em
movimento”.
Para
isso, o laboratório trabalha em parceria com a Universidade do Estado da Bahia
(Uneb) e a UFPE para produzir uma loção cremosa com propriedades cicatrizantes,
substituindo o óleo de girassol importado pela substância extraída do licuri.
Especialistas
dizem que o novo produto poderá ser fornecido ao Sistema Único de Saúde (SUS)
após passar pela fase de testes e receber as devidas certificações.
Além da
loção, o projeto da Bahiafarma pretende certificar toda a cadeia produtiva do
licuri — da coleta e extração ao transporte do óleo. Esse passo, segundo as
cooperativas e os cientistas, pode trazer benefícios diretos às comunidades
envolvidas no processo.
Mahl
diz que o benefício socioeconômico dessa estrutura será “significativo”,
gerando mais renda e acesso a novos mercados para comunidades que vivem da
agricultura familiar.
“Haverá
um ganho efetivo no valor agregado [dos produtos] quando esse óleo for
utilizado pela indústria farmacêutica”, disse à Mongabay. De acordo com o
diretor, o creme deve ser desenvolvido a partir de 2026 — e pode chegar ao
mercado em até cinco anos.
Correia,
pesquisadora do NBioCaat, diz que ainda há outras possibilidades para a
bioeconomia. Segundo seus estudos, o resíduo seco da extração do óleo —
conhecido como “torta” — consiste em uma farinha rica em proteínas e
aminoácidos essenciais. Para ela, esse composto também mostra “potencial de
uso” para a indústria de alimentos e cosméticos.
“O óleo
do licuri já pode ser melhor que o de coco e o de girassol. Mas a ‘torta’
também é muito rica e tem muita fibra, [o que faz dela] um alimento que pode
ser usado em várias formulações. Já fizemos barrinhas energéticas e a testamos
para ração animal. Além disso, pode integrar fórmulas de cosméticos,
principalmente para linhas veganas.”
Entre
outros subprodutos em desenvolvimento, pesquisadores citam pães sem glúten e
bebidas lácteas para pessoas intolerantes ao consumo de leite animal.
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Mulheres do licuri lideram novas iniciativas
O
desenvolvimento da cadeia produtiva do licuri tem permitido à Coopes ampliar
sua atividade em pelo menos três novos territórios no estado da Bahia, como
Piemonte do Paraguaçu, Chapada Diamantina e Norte do Itapicuru.
A
situação é um pouco diferente em Pernambuco, estado onde a palmeira também é
abundante — mas uma região que ainda vê o setor engatinhar e buscar novas
alternativas.
As
iniciativas, porém, já começam a aparecer: desde junho deste ano, o município
de Buíque se tornou sede da Cooperativa Mulheres do Catimbau, que ainda está em
fase embrionária, mas já conta com a liderança de pernambucanas com
conhecimento histórico sobre a Caatinga.
Apesar
de ainda dar seus primeiros passos, o projeto é visto como promissor, de acordo
com Santina Oliveira, secretária de Políticas para Mulheres de Buíque. À
reportagem, a autoridade disse que o plano centrado no licuri em todo o Vale do
Catimbau — uma área de importante biodiversidade no sertão pernambucano, e da
qual o município faz parte — pode “aliar sustentabilidade, geração de renda e a
valorização do conhecimento ancestral feminino”.
A rede
de incentivo à atividade de mulheres que atuam com o licuri na região envolve
esforços do poder municipal, da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do
Estado de Pernambuco (Facepe), capacitações do Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pesquisas desenvolvidas pela UFPE.
Autoridades
de Buíque dizem que a estruturação da bioeconomia passa pelas mulheres do
Catimbau, cuja cooperativa já conta com um ponto de vendas próprio na cidade —
e, agora, aguarda um espaço maior para mecanizar o manejo de seus produtos.
“As
mulheres são detentoras de conhecimento, são mestras do ‘notório saber’ do
licuri. Com a valorização de seu trabalho, elas saem de um lugar de submissão,
que é próprio da cultura local, para uma [posição de] autonomia e
protagonismo”, disse Santina.
Para a
secretária, entre os principais resultados vistos na cidade, a gastronomia
ancestral e o artesanato em palha se destacam.
O
cardápio de pratos típicos inclui galinha caipira com óleo de licuri, cocadas,
bolos regionais e até picolés. Ao mesmo tempo, a culinária local sustenta
restaurantes procurados por turistas que viajam ao Vale do Catimbau.
Nas
lojas, visitantes também encontram pinturas, chapéus, cestas e artigos de mesa
— todos eles souvenirs feitos com algo vindo do licuri.
Liderança
dessa cooperativa em crescimento, Simone Florêncio atua como coletora e
quebradeira do fruto desde a infância. Ela diz que a organização que preside já
conta com 35 mulheres, todas integradas em um projeto que busca ampliar seus
níveis de produção e incluir novos itens de venda sempre que possível.
“Queremos
uma lanchonete com tudo [feito a partir ou à base] de ouricuri [nome mais comum
em Pernambuco]: arroz doce, bolo, feijão, peixe, café com leite de ouricuri.
São muitas opções para a culinária”, disse.
Segundo
ela, no entanto, ainda é necessário realizar mais capacitações. Ela defende que
é preciso ter “cautela”, já que parte da produção ocorre em áreas biodiversas.
Mesmo assim, diz que há otimismo por parte do poder público e de pessoas
envolvidas na iniciativa.
“Quando
começarmos a produzir com os maquinários, vai faltar espaço para tanta mulher
querendo participar.”
Fonte:
Mongabay

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