SUS
em disputa: controle e financiamento
revela uma batalha
Nas
últimas décadas, a ascensão do neoliberalismo redesenhou profundamente as
relações entre Estado, mercado e sociedade, com impactos diretos sobre as
políticas sociais em todo o mundo. Sob o discurso de eficiência, racionalidade
fiscal e liberdade individual, consolidou-se um modelo que privilegia a lógica
de mercado em detrimento da garantia de direitos, promovendo privatizações,
desregulamentações e cortes de gastos públicos.
No
Brasil, esse processo tem se expressado na austeridade fiscal permanente,
iniciada com a Emenda Constitucional 95/2016 e aprofundada pelo Novo Arcabouço
Fiscal (NAF), que impõe severos limites ao crescimento das despesas primárias.
No
campo da saúde, essas mudanças resultaram em subfinanciamento crônico,
ampliação da terceirização e precarização das relações de trabalho, ao mesmo
tempo em que fortalecem a mercantilização dos serviços e a transferência de
recursos públicos para o setor privado. Tal cenário contraria os princípios da
Reforma Sanitária brasileira e os fundamentos constitucionais do Sistema Único
de Saúde (SUS), construído como um sistema universal, integral e equânime.
A
Atenção Primária à Saúde (APS), reconhecida internacionalmente como eixo
estruturante de sistemas de saúde resolutivos, sofre especialmente com o
desfinanciamento e a lógica gerencialista que prioriza metas e resultados
imediatos em detrimento do cuidado integral. Nesse contexto, os Agentes
Comunitários de Saúde e de Endemias (ACS e ACE) representam uma peça-chave do
SUS, atuando como elo entre as equipes de saúde e as comunidades, estabelecendo
vínculos, escuta qualificada e produção de cuidado territorializado.
Entretanto,
a valorização desse trabalho essencial esbarra em condições precárias de
contratação, falta de investimentos estruturais e políticas fiscais que
inviabilizam a expansão e a consolidação de uma APS robusta. Ao mesmo tempo, a
fragilidade do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) evidencia a
dependência externa do país em relação a medicamentos, insumos e tecnologias,
limitando a soberania sanitária brasileira.
Compreender
como a austeridade e a lógica neoliberal impactam a APS, a atuação dos ACS e
ACE e o desenvolvimento do CEIS é fundamental para debater o futuro do SUS. O
presente texto analisa a trajetória dos ACS, as transformações recentes no
mundo do trabalho em saúde, os efeitos da terceirização e o papel estratégico
da APS e do CEIS, defendendo a necessidade de romper com o regime fiscal
imposto pelo NAF e de construir um projeto de desenvolvimento que assegure
financiamento adequado, autonomia técnica e soberania sanitária para o Brasil.
Por isso, cabe aqui uma breve contextualização.
A
partir da década de 1970, o mundo assiste a uma profunda inflexão econômica,
política e social, isto é, a ascensão do neoliberalismo como projeto de
reestruturação do capitalismo. Diferentemente do liberalismo clássico do século
XIX, que defendia mínima intervenção estatal para garantir a liberdade de
mercado, o neoliberalismo consolida-se como racionalidade totalizante, atuando
não apenas como teoria econômica, mas como regime de produção de subjetividades
e formas de governar.
No
Chile, a ditadura de Augusto Pinochet (1973–1990) tornou-se o primeiro
laboratório do neoliberalismo radical, implantado sob violência militar com
apoio dos “Chicago Boys”, economistas ligados a Milton Friedman. Privatizações
massivas, desmonte da seguridade social e abertura irrestrita ao capital
estrangeiro marcaram essa experiência pioneira.
Nos
Estados Unidos, Ronald Reagan (1981–1989) promoveu cortes drásticos em
programas sociais e desregulamentações; no Reino Unido, Margaret Thatcher
(1979–1990) atacou o Estado de Bem-Estar e as organizações coletivas, como os
sindicatos. Sob sua liderança surgiu a máxima emblemática: “There is no such
thing as society. There are individual men and
women, and there are families” (“Não existe essa coisa de sociedade. Existem homens e
mulheres individuais, e suas famílias”).
A frase
expressa a ontologia neoliberal de negação da coletividade como categoria
legítima de organização social, substituída pelo ideal do sujeito empreendedor
de si, plenamente responsável por seus êxitos e fracassos. Conforme analisam
Pierre Dardot e Christian Laval, essa racionalidade constitui uma “nova razão
do mundo”, em que o homo economicus se torna o modelo universal de sujeito.
Nesse
sentido, o neoliberalismo ecoa a visão hobbesiana da natureza humana
essencialmente competitiva e egoísta. Para Thomas Hobbes, no Leviatã (1651), o
estado natural da humanidade é a guerra de todos contra todos (bellum omnium
contra omnes), em que a vida é “solitária, pobre, desagradável, brutal e
curta”. O neoliberalismo contemporâneo ressignifica esse princípio como norma
de conduta, transformando todos em concorrentes, inclusive em campos
tradicionalmente solidários, como a saúde.
Nesse
cenário, os sistemas de saúde passam por grandes transformações. A concepção de
saúde como direito – presente na Declaração de Alma-Ata (1978) e na
Constituição brasileira de 1988 – é confrontada por políticas de austeridade,
desmonte de sistemas universais e introdução de mecanismos de mercado nos
serviços públicos. O resultado é a crescente mercantilização da saúde, reduzida
a mercadoria submetida às leis de oferta e demanda.
Essa
lógica manifesta-se na ampliação da terceirização de serviços, na contratação
por organizações sociais, na fragmentação das redes de atenção e na expansão de
planos privados subsidiados com recursos públicos. A gestão passa a ser guiada
por critérios de eficiência e produtividade, frequentemente à custa da
integralidade e da equidade do cuidado. Profissionais de saúde são
transformados em “empreendedores de si”, submetidos a metas, contratos
temporários e vínculos precários.
A
atenção primária, embora seja o eixo estruturante de sistemas públicos
resolutivos, como preconiza a OMS, é constantemente subfinanciada e preterida
em favor de grandes hospitais e serviços especializados. Nesse contexto, a
atuação dos Agentes Comunitários de Saúde representa uma fissura no modelo
neoliberal, pois seu trabalho baseia-se no vínculo, na escuta e na produção do
cuidado em rede. Em uma sociedade marcada pela fragmentação, o ACS é, por
excelência, o agente do comum.
A
figura do ACS surgiu em um momento decisivo para a saúde pública brasileira,
vinculada às disputas sobre a universalização do cuidado. Sua origem remonta a
uma experiência inovadora no Ceará, em 1987, durante grave crise social
provocada por mais uma seca no sertão nordestino.
A
proposta estadual, inspirada em iniciativas locais de organização comunitária,
consistia em formar moradores das próprias comunidades como promotores de
saúde, orientando famílias sobre higiene, vacinação, aleitamento materno e
prevenção de doenças. Diferentemente de medidas assistencialistas ou
emergenciais, o programa investia na criação de vínculos territoriais e na
valorização dos saberes populares como instrumentos de cuidado e transformação
social.
O
sucesso da iniciativa levou o Ministério da Saúde, em 1991, a criar o Programa
de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), consolidando o ACS como elo entre
serviço de saúde e comunidade. Em 1994, com a criação do Programa Saúde da
Família – posteriormente rebatizado como Estratégia Saúde da Família (ESF) –, o
trabalho dos agentes foi incorporado de forma definitiva à Atenção Primária à
Saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Essa mudança representou uma
virada na política de saúde, orientada pela descentralização, territorialização
e integralidade do cuidado.
Inspirada
nos ideais da Reforma Sanitária e da Constituição de 1988, a ESF redefine o
modelo assistencial, deslocando o foco do hospital para o território, da doença
para a promoção da saúde e do médico-especialista para equipes
multiprofissionais inseridas no cotidiano da população. Nesse cenário, os ACS
têm papel estruturante como elo entre os saberes técnicos do SUS e os modos de
vida da população, articulando política pública e condições concretas de
existência.
Entre
suas principais atribuições estão as visitas domiciliares periódicas; a
educação em saúde, por meio de orientações individuais e ações coletivas; a
identificação precoce de riscos sanitários e sociais, como violência, fome,
gravidez de risco e surtos de doenças; o registro e a coleta de dados
epidemiológicos, essenciais para o planejamento em saúde; e a mediação cultural
e política entre a população e as unidades básicas, garantindo acesso e
traduzindo a linguagem institucional.
Também
participam de associações locais, grupos de mães, comitês escolares e
movimentos populares, fortalecendo formas de convivência solidária que
contrariam a lógica neoliberal.
A
presença territorial dos ACS tornou-se uma das maiores fortalezas da APS
brasileira. Em 2012, segundo o Ministério da Saúde, 87,6% das unidades básicas
contavam com agentes comunitários em suas equipes, evidenciando a capilaridade
dessa política. Essa cobertura não é apenas quantitativa, já que representa uma
presença qualitativa que molda o cotidiano da saúde nos territórios populares.
O ACS
conhece o nome, o rosto e a história das famílias que acompanha, sendo muitas
vezes a única referência estatal em áreas marcadas pela ausência de serviços
públicos e pela violência estrutural. Seu trabalho ultrapassa os limites
biomédicos e se inscreve em uma ética do cuidado cotidiano, do afeto e da
escuta, mobilizando tanto saberes técnicos quanto experiências vividas. Esse
papel fundamental, porém, é tensionado por condições precárias de trabalho,
contratos instáveis, metas excessivas e pela crescente tentativa de subordinar
a lógica do cuidado à racionalidade empresarial.
A
terceirização dos serviços públicos de saúde no Brasil tem provocado mudanças
na forma de contratação, nas condições de trabalho e na proteção social dos
profissionais. Estima-se que cerca de 73% dos serviços públicos de saúde
estejam atualmente sob gestão de Organizações Sociais (OSs) ou entidades
privadas, segundo dados recentes do IBGE e do IPEA.
Esse
modelo, frequentemente adotado para contornar limitações orçamentárias e
burocráticas, abriu caminho para formas flexíveis de contratação que fragilizam
direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores da saúde. Em vez do
concurso público, previsto constitucionalmente como forma preferencial de
ingresso, as OSs utilizam contratos temporários, celetistas ou até vínculos
informais, sem estabilidade, garantias previdenciárias sólidas ou representação
sindical efetiva.
Assim,
ACS – e demais profissionais – contratados por essas instituições exercem as
mesmas funções dos concursados, mas em condições mais precárias, com menor
remuneração e proteção legal.
A
contrarreforma trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017), aprovada no governo
Michel Temer, contribuiu com esse cenário ao flexibilizar diversos aspectos da
CLT. Entre os retrocessos destacam-se a ampliação da terceirização irrestrita,
inclusive para atividades-fim; a prevalência do negociado sobre o legislado; a
fragilização da Justiça do Trabalho; e a permissão de contratos intermitentes e
temporários com menor proteção. Tais mudanças serviram de respaldo jurídico e
político para a expansão das terceirizações no SUS, inclusive em áreas que
demandam vínculos estáveis e formação continuada, como no caso dos ACS.
O
discurso de “eficiência da gestão” das OSs, sustentado por argumentos
tecnocráticos, encobre um processo mais amplo de mercantilização da saúde
pública. Na prática, a lógica das “parcerias público-privadas” (PPP’s) resulta
em desresponsabilização do Estado, perda de controle social e enfraquecimento
da política pública como direito universal. Essa lógica precarizante impacta
diretamente trabalhadores e população, gerando descontinuidade do cuidado, alta
rotatividade, quebra de vínculos comunitários e restrição da autonomia
profissional, com metas e exigências desconectadas das realidades locais.
Nos
últimos meses, o governo Lula avançou com medidas que ampliam
significativamente o uso das Parcerias Público Privadas (PPPs), elevando-as ao
status de despesa prioritária na Lei de Diretrizes Orçamentárias – o que reduz
o risco de contingenciamento nesses contratos. Simultaneamente, tramita no
Congresso a modernização do marco legal das PPPs, que prevê garantias
estendidas às empresas participantes – inclusive permitindo que ofereçam como
garantia os próprios bens reversíveis dos contratos – e a adoção de concessão
por adesão, modelo que pode burlar regras de licitação.
Para o
governo e parte do setor empresarial, essas alterações oferecem maior segurança
jurídica e capacidade de destravar investimentos – especialmente em
infraestrutura social, como escolas e hospitais. Entretanto, essas iniciativas
consolidam um processo de privatização velada de serviços públicos essenciais,
deslocando o protagonismo estatal para o setor privado e ampliando a lógica
empresarial sobre áreas como saúde e educação.
Ao
priorizar os pagamentos às empresas concessionárias como despesa preferencial,
o Estado confere tratamento privilegiado a contratos de longo prazo, enquanto
políticas públicas de caráter universal, como a Atenção Primária à Saúde (APS)
e o CEIS, permanecem submetidas às limitações orçamentárias e ao espectro de
austeridade fiscal. Essa escolha reforça justamente o estrangulamento impresso
pelo Novo Arcabouço Fiscal, pois enquanto o orçamento público é rigidamente
contido, os compromissos com empresas privadas se tornam prioridade.
É
preocupante notar que, embora as PPPs venham sendo apresentadas como solução
para a falta de recursos públicos, o mecanismo pode gerar opacidade, fragilizar
controles sociais e jurídicos e comprometer a qualidade dos serviços em saúde.
A adoção de contratos por adesão, por exemplo, abre brechas à dispensa de novas
licitações, retirando do público o controle sobre a efetividade e a
transparência dos contratos.
Ademais,
entidades como o Sinduscon SP alertaram para o risco de corrupção e insegurança
jurídica em razão da flexibilização dos critérios licitatórios e da ampliação
do acesso às PPPs por autarquias, fundações e fundos sem a mesma accountability
dos órgãos tradicionais.
Em
síntese, apesar do discurso de que as PPPs representam “eficiência” e desatarão
o nó fiscal, sua expansão neste momento histórico parece reforçar a lógica de
financeirização e mercantilização dos serviços públicos. Ao mesmo tempo em que
intensifica a dependência de capitais privados para execução de políticas
públicas, impede que haja financiamento robusto em setores estratégicos como a
APS e o CEIS, cuja consolidação é condição para autonomia sanitária,
desenvolvimento científico e garantia de direitos.
Não
obstante, relatos de ACS contratados por OSs em diferentes regiões do país
evidenciam a materialidade dessa precarização, tais como ausência de
Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), falta de insumos básicos, não
fornecimento de fardamento ou transporte para visitas, atrasos salariais e
ausência de apoio da gestão. Além disso, muitos agentes terceirizados temem
denunciar as condições de trabalho por receio de retaliações, demissão ou não
renovação de contrato, o que produz insegurança, autocensura e sensação
constante de substituibilidade.
Como a
atuação dos ACS exige confiança, continuidade e vínculo com a comunidade, a
precarização não compromete apenas os trabalhadores, mas a própria efetividade
da APS. A perda de direitos, somada à intensificação do trabalho e à escassez
de recursos, transforma seu cotidiano em um espaço de conflito permanente entre
a missão de cuidado e as condições adversas impostas pela gestão.
A
pandemia de COVID 19 evidenciou ainda mais essas contradições. Na linha de
frente da orientação e acompanhamento domiciliar, os ACS enfrentaram escassez
de EPIs, falta de capacitação e apoio institucional. Relatos frequentes
incluíam distúrbios do sono, esgotamento emocional, medo de contaminação,
sensação de abandono ansiedade e depressão. Apesar disso, desempenharam papel
essencial ao orientarem famílias, monitorarem casos suspeitos e confirmados,
mapearem contatos, apoiarem pessoas em isolamento e garantirem acesso de
populações vulneráveis – como idosos, moradores de favelas e indígenas – aos
serviços de saúde.
O
reconhecimento desse trabalho resultou em conquistas legislativas importantes,
como a Emenda Constitucional nº 120/2022, que estabeleceu piso salarial
nacional de dois salários mínimos e adicional de insalubridade com recursos
garantidos pela União, e a Lei Federal nº 14.536/2023, que regulamentou a
profissão de ACS e ACE, reconhecendo sua natureza técnica e autorizando o
acúmulo de cargos públicos com compatibilidade de horários. Esses avanços,
porém, dependem da implementação local, de fiscalização e de políticas
complementares que garantam condições dignas de trabalho, contratação direta e
formação continuada.
A
relevância estratégica dos ACS para o SUS expressa-se também em sua ampla
presença nos territórios. Em julho de 2024, o Brasil contava com 402.777
agentes comunitários e de combate às endemias em atividade. As regiões com
maior cobertura de ACS apresentaram indicadores significativamente melhores,
como queda na mortalidade infantil, redução de internações por doenças
evitáveis e aumento na resolutividade das unidades básicas. A atuação dos
agentes esteve associada à ampliação do acesso a vacinas, exames preventivos e
acompanhamento de doenças crônicas.
Apesar
dessa importância, os ACS convivem com riscos ocupacionais que afetam seu
bem-estar físico e mental, frequentemente invisibilizados pela gestão e pela
sociedade. Por atuarem diretamente em domicílios e ruas, lidam cotidianamente
com vulnerabilidade social, violência e carências estruturais. Muitos, por
residirem nas mesmas comunidades onde trabalham, relatam dificuldades para se
“desligarem” do serviço, o que agrava o desgaste emocional e compromete a
separação entre vida profissional e pessoal.
A
trajetória dos ACS no Brasil é marcada por lutas por reconhecimento, direitos
trabalhistas e valorização profissional, e nesse contexto, destacam-se duas
propostas em tramitação no Congresso: a PEC 14/2021, que propõe a formalização
do vínculo empregatício dos agentes com os gestores locais do SUS,
aposentadoria especial após 25 anos de serviço e sistema de proteção social
específico; e a PEC 18/2022, que estabelece piso salarial diferenciado para ACS
e ACE com formação técnica, fixado em três salários mínimos.
Ambas
têm amplo apoio da categoria, sindicatos e movimentos sociais, que realizam
mobilizações, audiências públicas e campanhas de sensibilização. A aprovação
dessas emendas representaria avanço histórico para a valorização do trabalho em
atenção primária, consolidando o papel dos ACS e ACE como pilares do SUS.
O
modelo brasileiro de atenção primária, estruturado pela ESF e fortalecido pelos
ACS e ACE, constitui um avanço singular rumo a um sistema universal e equânime.
Contudo, essa conquista está ameaçada pela precarização do trabalho, pela
expansão da terceirização, pelo desmonte de políticas públicas e pelo
subfinanciamento estrutural.
As
recentes conquistas legislativas são passos fundamentais, mas insuficientes
para resolver problemas crônicos da categoria. A valorização plena dos ACS
exige concursos públicos, fornecimento adequado de EPIs, transporte, insumos e
fardamento, oferta de formação técnica e continuada, reconhecimento do
adicional de insalubridade, aposentadoria especial e estabelecimento de piso
salarial compatível com a complexidade do trabalho.
Fortalecer
a Atenção Primária à Saúde (APS) é condição indispensável para consolidar um
modelo de cuidado baseado na promoção da saúde, na prevenção de doenças e na
redução efetiva das desigualdades sociais e territoriais. Isso pressupõe não
apenas a ampliação do financiamento público, mas também a garantia de autonomia
técnica e política das equipes de saúde, o fortalecimento da participação
social e a implementação de mecanismos de gestão e avaliação que priorizem as
necessidades da população usuária do Sistema Único de Saúde.
Contudo,
tais avanços permanecem severamente ameaçados pela política de austeridade
fiscal que orienta o Estado brasileiro desde a Emenda Constitucional 95/2016 de
Michel Temer, continuada por Jair Bolsonaro-Paulo Guedes e que encontra no Novo
Arcabouço Fiscal (NAF) sua atualização. O NAF, ao impor limites rígidos ao
crescimento das despesas primárias, reforça o estrangulamento orçamentário das
políticas sociais e reitera a lógica de subordinação das necessidades coletivas
às exigências do mercado financeiro e do pagamento da dívida pública.
Essa
escolha política, apresentada como medida de “responsabilidade fiscal”, na
prática, transfere para a população trabalhadora – sobretudo a mais pobre,
negra e periférica – os custos de uma economia marcada pela financeirização e
pela concentração de renda. Ao bloquear a expansão real dos investimentos
públicos, o NAF inviabiliza a consolidação de uma rede de APS robusta e
integralmente articulada com os demais níveis de atenção, favorecendo a
mercantilização da saúde e a captura de parcelas crescentes do orçamento por
planos privados e prestadores lucrativos.
Além
disso, a limitação dos gastos compromete diretamente o fortalecimento do
Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), setor estratégico que movimenta
parcela expressiva do PIB e cuja fragilidade estrutural gera um déficit anual
de cerca de 20 bilhões de dólares na balança comercial brasileira. A
dependência externa de medicamentos, vacinas, equipamentos e insumos compromete
a soberania sanitária do país e nos torna vulneráveis a crises globais, como
evidenciado na pandemia de COVID-19.
Investir
no CEIS significa, portanto, gerar inovação, emprego qualificado, capacidade
produtiva nacional e, sobretudo, assegurar o direito à saúde como política de
Estado e não como mercadoria.
Entretanto,
tais medidas são incompatíveis com o regime fiscal imposto pelo NAF, que
cristaliza a austeridade como política permanente e retira do orçamento público
a flexibilidade necessária para atender demandas sociais urgentes.
A
narrativa de que não há recursos para a saúde, educação e assistência social
esconde o fato de que a prioridade segue sendo o pagamento de juros e
amortizações da dívida – que só em 2024 devorou 998 bilhões do orçamento
público federal –, em detrimento do bem-estar coletivo. Ao não enfrentar essa
contradição, o Brasil perpetua um ciclo de subfinanciamento e desigualdade,
inviabilizando avanços estruturais na consolidação do SUS e na construção de
uma base produtiva nacional autônoma no setor da saúde.
Assim,
defender a valorização dos ACS e ACE – e demais profissionais de saúde –, o
fortalecimento da APS e do CEIS implica questionar frontalmente o NAF e a
lógica de austeridade que o sustenta. Somente com a ampliação real dos
investimentos públicos, a revogação das amarras fiscais e uma política de
desenvolvimento voltada para a soberania sanitária será possível garantir um
SUS universal, integral e de qualidade, capaz de atender às necessidades da
população e reduzir as históricas desigualdades sociais e regionais do país.
Fonte:
Por João Pedro Marques, em A Terra é Redonda

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