sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Crônica do cárcere: milionário sem tempo, condenado a gastar o que resta de vida no luxo agora inútil do arrependimento

Haverá condenações que começarão muito antes da cela. Quando o martelo do juiz cair, não atingirá apenas a liberdade: espatifará também a coreografia de quem terá passado os últimos seis anos convertendo minutos em milhões, selfies em sociedades, voos em vínculos.

A dor adicional não estará no ferro da grade, mas na súbita inutilidade do luxo: Centurion Card, emitido pela American Express em repouso forçado; jet skis entediados; jatinhos de empresários amigos imóveis sobre a própria sombra. Será a economia afetiva da opulência entrando em recessão.

Quatro décadas de pena serão um oceano de horas, e nele hão de boiar, como garrafas sem mensagem, os 51 imóveis que talvez já não possam ser visitados sem escolta — e sem relógio de ouro branco cravejado de diamantes, bem no clima das mil e uma noites orientais.

Coberturas com piscinas infinitas que, de tão infinitas, perderão até a noção de borda; casas de filhos no Lago Sul que aguardarão o dono como quem aguarda chuva imóvel; apartamentos no Texas, na Barra da Tijuca e em Angra que aprenderão, enfim, o idioma universal das portas fechadas.

E logo se descobrirá que ninguém conseguirá preparar um milionário tardio para a burocracia da privação.

A fortuna adquirida a jato — e a jato celebrada — mostrará hábitos próprios. Acordava cedo para gravar vídeos falsos; almoçava em três fusos; pagava a conta antes de o garçom oferecer a sobremesa.

Quando a liberdade sair de cena, o dinheiro perderá coordenação motora. Como usar dezenas de milhões se cada despesa precisará de carimbo, se cada transferência terá de visitar um pátio, se cada investimento fará fila em corredor? Sofrimento será também a perda do improviso. Aquele “vamos agora?” se transformará em “nem pensar, o sistema prisional não permite”.

As amizades com milionários de má índole — no Brasil, com donos de redes de varejo de gosto altamente duvidoso, e fora, em resorts de xeiques e suítes de cortesia — parecerão redes de pesca: lançadas ao acaso, puxarão jantares, convites, convicções do agro pop — mas ninguém poderá mais participar.

Com a sentença, a fortuna mal contada se converterá em púcaro búlgaro: ninguém saberá direito para que serve, mas continuará sobre a mesa, pedindo assunto.

Os amigos telefonarão em viva-voz, enviarão mimos que não poderão entrar, oferecerão advogados que já estarão do outro lado da mesa. Se antes a agenda não cabia no mundo, agora será o mundo que não caberá na agenda do presidiário.

O pior tormento, dirão advogados calejados, não será a cela em si. Será o silêncio que ela produzirá sobre as coisas que costumavam falar. A aflição maior será o inventário do silêncio: assistir ao sucesso de quem se planejou assassinar. Quadros já não pedirão luz, tapetes não pisarão história, o elevador social se transformará em metáfora sem passageiro. O que antes ocupava salas — sabores, ruídos, bajuladores de quinta categoria — caberá em número de cela.

E quem organizava rituais com pastores servindo a palavra dos fariseus deixará tudo de lado para beber, de um gole e sem pressa, o fel da mente psicopata que, na juventude, sonhou em explodir a estação de água da antiga capital.

Com quatro décadas no horizonte, até a gramática entrará em regime fechado: pronomes aprenderão a obedecer, verbos farão fila, adjetivos cumprirão turno. A baba do cão raivoso deixará de ser despejada no WhatsApp dos tios, fardados ou não.

Sinto-me como que escalado para narrar a penitência: sugiro uma cela com vista para dentro, onde o condenado se deparará com seus objetos tentando fugir.

A caneta Montblanc (que se travestia de Bic apenas para a gravação dos vídeos falsos) pedirá habeas corpus; o relógio do segundo conjunto de origem duvidosa fará jejum; a poltrona Charles Eames aprenderá a se desdobrar para caber no armário da memória.

Medir-se-á a solidão pelo absurdo. Sofrerá o homem porque já não poderá caber nos próprios desatinos de uma vida dedicada a fazer o mal. Que a eternidade mais um dia ainda não seja suficiente para purgar as dores que semeou, as mortes que motivou, o futuro que de todos roubou.

Quatro décadas de pena contra cinco dezenas de imóveis: a Justiça, enfim, apresentará saldo. De que valerão adegas sem taças, heliportos sem hélices, cofres sem combinações? O luxo, reduzido à caricatura, não servirá nem para medir o tempo — já que até o relógio suíço passará a marcar apenas o ritmo do sol através das grades.

O condenado descobrirá que o conforto era, no fundo, o lamaçal da impunidade violentando as frestas do tempo. A prisão não encerrará apenas o estilo; interromperá a própria vida.

Haverá quem argumente que se tratará de justiça natural: quem transgrediu, que aguente a tempestade, o mau tempo, o barranco, o tranco. É verdade. Mas o jornalismo cidadão e plural observará também a podridão moral de quem, com roupa de corrida mal-ajambrada, comia farofa escorrendo da boca para o chão sujo e agora aprenderá a pedir licença para usar o telefone.

As relações internacionais do réu — entre salões e suítes — descobrirão o limite da extradição afetiva: carinho não atravessa detector de metais. Fica tudo retido, porque pertencia à vida anterior do delinquente apenado.

Nos últimos cinco anos, o protagonista terá vivido como quem empilha amanheceres. Agora precisará aprender a dobrá-los. Haverá cursos para quase tudo, menos para a diminuição do espaço. Por isso, a pena acrescentará um capítulo invisível: o da autogestão do excesso.

Administrar milhões com tornozeleira será coisa de equilibrista em sala de espera. Quase sempre dará errado; quando der certo, ninguém assistirá.

No fim, sobrará uma crônica de contrastes: o homem que chamava o Exército do país de seu, condecorava milicianos de estimação, vangloriava-se de ter nas mãos 20% do STF, pois bem, será o mesmo que, aos soluços, observará uma grade vindo em sua direção, como uma pipa distante que se achega mais.

O que não faltará será tempo para consumir, lentamente, aquilo que dezenas de milhões não compram: a reconciliação entre a pessoa que é e a que poderia ter sido.

Tempo para arrependimentos tardios — e, como tais, absolutamente inúteis, ineficazes.

•        Michelle Bolsonaro diz que medidas de Moraes contra o marido são 'humilhantes' e desafia o STF

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou as novas medidas judiciais impostas contra Jair Bolsonaro, que buscam impedir que o ex-presidente fuja do Brasil antes da conclusão de seu julgamento por liderar a trama golpista. Bolsonaro é réu e já está em prisão domiciliar.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou, na terça-feira (26), a polícia penal do Distrito Federal a realizar vigilância integral na casa de Bolsonaro. 

Em resposta, Michelle aproveitou para atacar o STF, acusando a Corte de 'perseguir' e 'humilhar' seu marido. “Sabe… a cada dia que passa, o desafio tem sido enorme: resitir à perseguição, lidar com as incertezas e suportar as humilhações. Mas não tem nada, não. Nós vamos vencer. Deus é bom o tempo todo, e nós temos uma promessa", escreveu a ex-primeira-dama em postagem nas redes sociais.

•        O risco da conivência midiática com o bolsonarismo. Por Gustavo Tapioca

Na mesma página em que Juca Kfouri advertia sobre o risco da conivência midiática com o bolsonarismo, o diretor de opinião da Folha de S. Paulo(FSP), Gustavo Patu, defendia o oposto. Segundo ele, o jornal acerta em dar espaço ao discurso bolsonarista, porque “sem ouvir todos os lados, jornalismo seria bolha”.

É justamente aí que está o erro trágico. Como lembrou Mariluce Moura em seu texto publicado no Facebook ao comentar o artigo de Kfouri: não se trata de “ouvir todos os lados” indistintamente. O que está em risco não é uma diferença legítima de opinião sobre política econômica, tributária ou ambiental.

O bolsonarismo não é um partido dentro das regras democráticas — é um projeto permanente de erosão das instituições, de ataque ao Judiciário, de ódio às minorias, de submissão da soberania nacional a interesses externos, de conspiração continuada a tentar contra o Estado Democrático de Direito, de afronta permanmente à Democracia.

Transformá-lo em “um lado” legítimo significa naturalizar a violência e a ameaça de golpe. É um falso equilíbrio que, longe de fortalecer a democracia, mina suas bases. É o mesmo equívoco que a imprensa europeia dos anos 1930 cometeu ao tratar Hitler e Mussolini como vozes legítimas de um debate civilizado, até que fosse tarde demais.

<>< Ecos dos anos de chumbo

O desabafo de Mariluce carrega um peso histórico singular. Não é apenas a memória coletiva da ditadura que se manifesta. É também a memória pessoal de quem sofreu na própria pele os horrores daquele período. Em 1972, grávida de dois meses, Mariluce foi sequestrada em frente ao Elevador Lacerda, em Salvador, e presa pela repressão junto com o marido, o militante Gildo Lacerda.

Permaneceu seis meses encarcerada e saiu com vida marcada pelas sombras daquele tempo. Gildo não teve a mesma sorte. Foi barbaramente assassinado sob tortura. Mais uma das centenas de vítimas da engrenagem criminosa da ditadura militar de 1964-1985.

É a partir dessa experiência que ela olha para o presente. Ao evocar as ameaças atuais, não fala em abstrações. Suas palavras são atravessadas pela memória de um Estado que perseguiu, mutilou e matou para sustentar um projeto autoritário, sempre em aliança com interesses estrangeiros. Daí a força de seu alerta. Ela sabe do que fala.

<><> A atualização da velha ingerência

Mariluce lembra ainda a estreita ligação entre o imperialismo estadunidense e a ditadura brasileira, evidência histórica que hoje ressurge em novas formas. A submissão de setores da extrema-direita brasileira aos ditames de Donald Trump e seus aliados repete o velho padrão. Elites locais funcionando como correias de transmissão de interesses externos, enquanto minam a democracia e a soberania nacional.

O fantasma dos anos de chumbo, portanto, não é passado remoto. Ele se reatualiza em práticas contemporâneas de guerra híbrida, fake news e cooperação internacional entre grupos de extrema-direita.

<><> O faz-de-conta da mídia

A denúncia de Mariluce e de Juca Kfouri vai além da Folha. Ela atinge toda a mídia hegemônica que insiste em chamar de “pluralidade” a concessão de espaço a vozes que trabalham, dia após dia, pela destruição da democracia. Não é liberdade de expressão quando se defende a censura, a violência e o golpe de Estado. Não é jornalismo quando se dá microfone ao negacionismo, ao ódio, à mentira sistemática, a chantagem.

Trata-se de cumplicidade, mesmo que travestida de virtude profissional. Ao legitimar os golpistas como “interlocutores válidos”, a imprensa se torna parte da engrenagem que fragiliza a democracia e abre caminho para a barbárie.

<><> Um chamado à resistência democrática

O texto de Mariluce traz um advertência.  Precisamos de clareza, inteligência e união para defender a democracia. Mas ela mesma reconhece o ceticismo em relação à eficácia desse chamado. Afinal, quantas vezes a história já mostrou que alertas foram ignorados até que fosse tarde demais?

Seja nos anos 1930 na Europa, seja em 1964 no Brasil, sempre houve quem dissesse “é só mais um lado”. Sempre houve quem confundisse pluralidade com conivência. E sempre houve quem pagasse caro pela ilusão da neutralidade.

O momento exige romper esse ciclo. Exige que jornalistas, intelectuais e cidadãos compreendam que a democracia não se defende passivamente. É preciso nomear o bolsonarismo pelo que ele é: uma ameaça fascista estrutural, não um interlocutor democrático.

Abrir os olhos é o primeiro passo diz Mariluce ao concordar com Juca Kfouri no artigo por ele publicado no sábado, 23, na FSP. O segundo passo é recusar o faz-de-conta que normaliza o fascismo sob a capa de liberdade de expressão. O terceiro é agir coletivamente, sem ingenuidade, para preservar aquilo que ainda temos: a chance de impedir que a história se repita, como tentou o 8 de janeiro -- o dia que não acabou, anunciando que outras tentativas viriam, como já ocorreram e que vão cotinuar a se repetir.

Pouco antes do ponto final do artigo "Abre os olhos, Folha", Juca Kfouri responde com um NÃO enfático e definitivo à pergunta "a Folha acerta em dar voz ao Bolsonarismo?". E lembrou de um ensinamento de Millor Fernandes:

"Quem se curva diante dos opressores mostra o traseiro para os oprimidos". 

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As três vítimas da ditadura militar citadas no artigo acima:

Mariluce Moura, 74 anos, é jornalista, pesquisadora e professora doutora aposentada da UFBA (reintegrada pela Comissão da Anistia em 2015, 40 anos após a demissão por perseguição política da ditadura). É autora de "A revolta das vísceras e outros textos", e está à frente do projeto do documentário "Operação Cacau", já em curso, sobre o assassinato de Gildo Macedo Lacerda, seu marido, e de outros seis militantes da Ação Popular (APML), entre outubro de 1973 e fevereiro de 1974.

Tessa Moura Lacerda, a menininha que sobreviveu à tortura protegida no útero da Mariluce tem hoje, 51 anos, é professora doutora de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). É especialista em Filosofia Moderna, com estudos aprofundados sobre Leibniz. Autora de "Pela memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, presente " (Aretê, 2023) e de "A filosofia expressiva de Leibniz " (Edusp, 2025). É mãe de Nara, Alice e Fabiano, netas e neto de Mariluce.

Gildo Macedo Lacerda, preso em Salvador em 22 de outubro de 1973, foi transportado para Recife três dias depois, torturado e assassinado no QG do IV Exército. Morreu aos 24 anos, em 28 de outubro de 1973, data em que completaria um ano de casamento com Mariluce. O corpo de Gildo jamais foi devolvido à família.

 

Fonte: Por Washington Araujo, em Brasil 247

 

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