Crônica
do cárcere: milionário sem tempo, condenado a gastar o que resta de vida no
luxo agora inútil do arrependimento
Haverá
condenações que começarão muito antes da cela. Quando o martelo do juiz cair,
não atingirá apenas a liberdade: espatifará também a coreografia de quem terá
passado os últimos seis anos convertendo minutos em milhões, selfies em
sociedades, voos em vínculos.
A dor
adicional não estará no ferro da grade, mas na súbita inutilidade do luxo:
Centurion Card, emitido pela American Express em repouso forçado; jet skis
entediados; jatinhos de empresários amigos imóveis sobre a própria sombra. Será
a economia afetiva da opulência entrando em recessão.
Quatro
décadas de pena serão um oceano de horas, e nele hão de boiar, como garrafas
sem mensagem, os 51 imóveis que talvez já não possam ser visitados sem escolta
— e sem relógio de ouro branco cravejado de diamantes, bem no clima das mil e
uma noites orientais.
Coberturas
com piscinas infinitas que, de tão infinitas, perderão até a noção de borda;
casas de filhos no Lago Sul que aguardarão o dono como quem aguarda chuva
imóvel; apartamentos no Texas, na Barra da Tijuca e em Angra que aprenderão,
enfim, o idioma universal das portas fechadas.
E logo
se descobrirá que ninguém conseguirá preparar um milionário tardio para a
burocracia da privação.
A
fortuna adquirida a jato — e a jato celebrada — mostrará hábitos próprios.
Acordava cedo para gravar vídeos falsos; almoçava em três fusos; pagava a conta
antes de o garçom oferecer a sobremesa.
Quando
a liberdade sair de cena, o dinheiro perderá coordenação motora. Como usar
dezenas de milhões se cada despesa precisará de carimbo, se cada transferência
terá de visitar um pátio, se cada investimento fará fila em corredor?
Sofrimento será também a perda do improviso. Aquele “vamos agora?” se
transformará em “nem pensar, o sistema prisional não permite”.
As
amizades com milionários de má índole — no Brasil, com donos de redes de varejo
de gosto altamente duvidoso, e fora, em resorts de xeiques e suítes de cortesia
— parecerão redes de pesca: lançadas ao acaso, puxarão jantares, convites,
convicções do agro pop — mas ninguém poderá mais participar.
Com a
sentença, a fortuna mal contada se converterá em púcaro búlgaro: ninguém saberá
direito para que serve, mas continuará sobre a mesa, pedindo assunto.
Os
amigos telefonarão em viva-voz, enviarão mimos que não poderão entrar,
oferecerão advogados que já estarão do outro lado da mesa. Se antes a agenda
não cabia no mundo, agora será o mundo que não caberá na agenda do presidiário.
O pior
tormento, dirão advogados calejados, não será a cela em si. Será o silêncio que
ela produzirá sobre as coisas que costumavam falar. A aflição maior será o
inventário do silêncio: assistir ao sucesso de quem se planejou assassinar.
Quadros já não pedirão luz, tapetes não pisarão história, o elevador social se
transformará em metáfora sem passageiro. O que antes ocupava salas — sabores,
ruídos, bajuladores de quinta categoria — caberá em número de cela.
E quem
organizava rituais com pastores servindo a palavra dos fariseus deixará tudo de
lado para beber, de um gole e sem pressa, o fel da mente psicopata que, na
juventude, sonhou em explodir a estação de água da antiga capital.
Com
quatro décadas no horizonte, até a gramática entrará em regime fechado:
pronomes aprenderão a obedecer, verbos farão fila, adjetivos cumprirão turno. A
baba do cão raivoso deixará de ser despejada no WhatsApp dos tios, fardados ou
não.
Sinto-me
como que escalado para narrar a penitência: sugiro uma cela com vista para
dentro, onde o condenado se deparará com seus objetos tentando fugir.
A
caneta Montblanc (que se travestia de Bic apenas para a gravação dos vídeos
falsos) pedirá habeas corpus; o relógio do segundo conjunto de origem duvidosa
fará jejum; a poltrona Charles Eames aprenderá a se desdobrar para caber no
armário da memória.
Medir-se-á
a solidão pelo absurdo. Sofrerá o homem porque já não poderá caber nos próprios
desatinos de uma vida dedicada a fazer o mal. Que a eternidade mais um dia
ainda não seja suficiente para purgar as dores que semeou, as mortes que
motivou, o futuro que de todos roubou.
Quatro
décadas de pena contra cinco dezenas de imóveis: a Justiça, enfim, apresentará
saldo. De que valerão adegas sem taças, heliportos sem hélices, cofres sem
combinações? O luxo, reduzido à caricatura, não servirá nem para medir o tempo
— já que até o relógio suíço passará a marcar apenas o ritmo do sol através das
grades.
O
condenado descobrirá que o conforto era, no fundo, o lamaçal da impunidade
violentando as frestas do tempo. A prisão não encerrará apenas o estilo;
interromperá a própria vida.
Haverá
quem argumente que se tratará de justiça natural: quem transgrediu, que aguente
a tempestade, o mau tempo, o barranco, o tranco. É verdade. Mas o jornalismo
cidadão e plural observará também a podridão moral de quem, com roupa de
corrida mal-ajambrada, comia farofa escorrendo da boca para o chão sujo e agora
aprenderá a pedir licença para usar o telefone.
As
relações internacionais do réu — entre salões e suítes — descobrirão o limite
da extradição afetiva: carinho não atravessa detector de metais. Fica tudo
retido, porque pertencia à vida anterior do delinquente apenado.
Nos
últimos cinco anos, o protagonista terá vivido como quem empilha amanheceres.
Agora precisará aprender a dobrá-los. Haverá cursos para quase tudo, menos para
a diminuição do espaço. Por isso, a pena acrescentará um capítulo invisível: o
da autogestão do excesso.
Administrar
milhões com tornozeleira será coisa de equilibrista em sala de espera. Quase
sempre dará errado; quando der certo, ninguém assistirá.
No fim,
sobrará uma crônica de contrastes: o homem que chamava o Exército do país de
seu, condecorava milicianos de estimação, vangloriava-se de ter nas mãos 20% do
STF, pois bem, será o mesmo que, aos soluços, observará uma grade vindo em sua
direção, como uma pipa distante que se achega mais.
O que
não faltará será tempo para consumir, lentamente, aquilo que dezenas de milhões
não compram: a reconciliação entre a pessoa que é e a que poderia ter sido.
Tempo
para arrependimentos tardios — e, como tais, absolutamente inúteis, ineficazes.
• Michelle Bolsonaro diz que medidas de
Moraes contra o marido são 'humilhantes' e desafia o STF
A
ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou as novas medidas judiciais
impostas contra Jair Bolsonaro, que buscam impedir que o ex-presidente fuja do
Brasil antes da conclusão de seu julgamento por liderar a trama golpista.
Bolsonaro é réu e já está em prisão domiciliar.
O
ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou, na
terça-feira (26), a polícia penal do Distrito Federal a realizar vigilância
integral na casa de Bolsonaro.
Em
resposta, Michelle aproveitou para atacar o STF, acusando a Corte de
'perseguir' e 'humilhar' seu marido. “Sabe… a cada dia que passa, o desafio tem
sido enorme: resitir à perseguição, lidar com as incertezas e suportar as
humilhações. Mas não tem nada, não. Nós vamos vencer. Deus é bom o tempo todo,
e nós temos uma promessa", escreveu a ex-primeira-dama em postagem nas
redes sociais.
• O risco da conivência midiática com o
bolsonarismo. Por Gustavo Tapioca
Na
mesma página em que Juca Kfouri advertia sobre o risco da conivência midiática
com o bolsonarismo, o diretor de opinião da Folha de S. Paulo(FSP), Gustavo
Patu, defendia o oposto. Segundo ele, o jornal acerta em dar espaço ao discurso
bolsonarista, porque “sem ouvir todos os lados, jornalismo seria bolha”.
É
justamente aí que está o erro trágico. Como lembrou Mariluce Moura em seu texto
publicado no Facebook ao comentar o artigo de Kfouri: não se trata de “ouvir
todos os lados” indistintamente. O que está em risco não é uma diferença
legítima de opinião sobre política econômica, tributária ou ambiental.
O
bolsonarismo não é um partido dentro das regras democráticas — é um projeto
permanente de erosão das instituições, de ataque ao Judiciário, de ódio às
minorias, de submissão da soberania nacional a interesses externos, de
conspiração continuada a tentar contra o Estado Democrático de Direito, de
afronta permanmente à Democracia.
Transformá-lo
em “um lado” legítimo significa naturalizar a violência e a ameaça de golpe. É
um falso equilíbrio que, longe de fortalecer a democracia, mina suas bases. É o
mesmo equívoco que a imprensa europeia dos anos 1930 cometeu ao tratar Hitler e
Mussolini como vozes legítimas de um debate civilizado, até que fosse tarde
demais.
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Ecos dos anos de chumbo
O
desabafo de Mariluce carrega um peso histórico singular. Não é apenas a memória
coletiva da ditadura que se manifesta. É também a memória pessoal de quem
sofreu na própria pele os horrores daquele período. Em 1972, grávida de dois
meses, Mariluce foi sequestrada em frente ao Elevador Lacerda, em Salvador, e
presa pela repressão junto com o marido, o militante Gildo Lacerda.
Permaneceu
seis meses encarcerada e saiu com vida marcada pelas sombras daquele tempo.
Gildo não teve a mesma sorte. Foi barbaramente assassinado sob tortura. Mais
uma das centenas de vítimas da engrenagem criminosa da ditadura militar de
1964-1985.
É a
partir dessa experiência que ela olha para o presente. Ao evocar as ameaças
atuais, não fala em abstrações. Suas palavras são atravessadas pela memória de
um Estado que perseguiu, mutilou e matou para sustentar um projeto autoritário,
sempre em aliança com interesses estrangeiros. Daí a força de seu alerta. Ela
sabe do que fala.
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A atualização da velha ingerência
Mariluce
lembra ainda a estreita ligação entre o imperialismo estadunidense e a ditadura
brasileira, evidência histórica que hoje ressurge em novas formas. A submissão
de setores da extrema-direita brasileira aos ditames de Donald Trump e seus
aliados repete o velho padrão. Elites locais funcionando como correias de
transmissão de interesses externos, enquanto minam a democracia e a soberania
nacional.
O
fantasma dos anos de chumbo, portanto, não é passado remoto. Ele se reatualiza
em práticas contemporâneas de guerra híbrida, fake news e cooperação
internacional entre grupos de extrema-direita.
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O faz-de-conta da mídia
A
denúncia de Mariluce e de Juca Kfouri vai além da Folha. Ela atinge toda a
mídia hegemônica que insiste em chamar de “pluralidade” a concessão de espaço a
vozes que trabalham, dia após dia, pela destruição da democracia. Não é
liberdade de expressão quando se defende a censura, a violência e o golpe de
Estado. Não é jornalismo quando se dá microfone ao negacionismo, ao ódio, à
mentira sistemática, a chantagem.
Trata-se
de cumplicidade, mesmo que travestida de virtude profissional. Ao legitimar os
golpistas como “interlocutores válidos”, a imprensa se torna parte da
engrenagem que fragiliza a democracia e abre caminho para a barbárie.
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Um chamado à resistência democrática
O texto
de Mariluce traz um advertência.
Precisamos de clareza, inteligência e união para defender a democracia.
Mas ela mesma reconhece o ceticismo em relação à eficácia desse chamado.
Afinal, quantas vezes a história já mostrou que alertas foram ignorados até que
fosse tarde demais?
Seja
nos anos 1930 na Europa, seja em 1964 no Brasil, sempre houve quem dissesse “é
só mais um lado”. Sempre houve quem confundisse pluralidade com conivência. E
sempre houve quem pagasse caro pela ilusão da neutralidade.
O
momento exige romper esse ciclo. Exige que jornalistas, intelectuais e cidadãos
compreendam que a democracia não se defende passivamente. É preciso nomear o
bolsonarismo pelo que ele é: uma ameaça fascista estrutural, não um
interlocutor democrático.
Abrir
os olhos é o primeiro passo diz Mariluce ao concordar com Juca Kfouri no artigo
por ele publicado no sábado, 23, na FSP. O segundo passo é recusar o
faz-de-conta que normaliza o fascismo sob a capa de liberdade de expressão. O
terceiro é agir coletivamente, sem ingenuidade, para preservar aquilo que ainda
temos: a chance de impedir que a história se repita, como tentou o 8 de janeiro
-- o dia que não acabou, anunciando que outras tentativas viriam, como já
ocorreram e que vão cotinuar a se repetir.
Pouco
antes do ponto final do artigo "Abre os olhos, Folha", Juca Kfouri
responde com um NÃO enfático e definitivo à pergunta "a Folha acerta em
dar voz ao Bolsonarismo?". E lembrou de um ensinamento de Millor
Fernandes:
"Quem
se curva diante dos opressores mostra o traseiro para os oprimidos".
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As três
vítimas da ditadura militar citadas no artigo acima:
Mariluce
Moura, 74 anos, é jornalista, pesquisadora e professora doutora aposentada da
UFBA (reintegrada pela Comissão da Anistia em 2015, 40 anos após a demissão por
perseguição política da ditadura). É autora de "A revolta das vísceras e
outros textos", e está à frente do projeto do documentário "Operação
Cacau", já em curso, sobre o assassinato de Gildo Macedo Lacerda, seu
marido, e de outros seis militantes da Ação Popular (APML), entre outubro de
1973 e fevereiro de 1974.
Tessa
Moura Lacerda, a menininha que sobreviveu à tortura protegida no útero da
Mariluce tem hoje, 51 anos, é professora doutora de filosofia da Universidade
de São Paulo (USP). É especialista em Filosofia Moderna, com estudos
aprofundados sobre Leibniz. Autora de "Pela memória de um paí[s]: Gildo
Macedo Lacerda, presente " (Aretê, 2023) e de "A filosofia expressiva
de Leibniz " (Edusp, 2025). É mãe de Nara, Alice e Fabiano, netas e neto
de Mariluce.
Gildo
Macedo Lacerda, preso em Salvador em 22 de outubro de 1973, foi transportado
para Recife três dias depois, torturado e assassinado no QG do IV Exército.
Morreu aos 24 anos, em 28 de outubro de 1973, data em que completaria um ano de
casamento com Mariluce. O corpo de Gildo jamais foi devolvido à família.
Fonte:
Por Washington Araujo, em Brasil 247

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