sábado, 30 de agosto de 2025

Desintrusão na TI Kayapó deixa promessas e incertezas

“Eu quero que você bote no jornal e jogue para o Brasil todo: é para continuar e mandar a Polícia Federal tirar esses garimpeiros que estão no mato escondidos aí, tá?”, pede o cacique Ireô Kayapó à Amazônia Real. Três meses depois do início do processo de desintrusão, a população da Terra Indígena (TI) Kayapó, no sul do Pará, começa a ver sinais de melhoria, sentimento que se mistura à desconfiança e à incerteza. “Tem que tirar o garimpeiro todo da área. Se não, volta o mercúrio, volta a água suja, volta a doença”, alerta o líder, cuja lembrança das crianças já contaminadas pelo metal pesado não sai da memória. “O mercúrio já corre no sangue do nosso povo.”

A operação de desintrusão, coordenada pela Casa Civil e pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), é a maior já realizada na TI Kayapó. A ação ocorreu após uma ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) e resultou na destruição de 967 barracos e 25 escavadeiras, com um prejuízo estimado em 97,3 milhões de reais para o crime organizado.

Cidades vizinhas da TI, como Bannach, Cumaru do Norte, Ourilândia do Norte, São Félix do Xingu e Tucumã, também foram incluídas na desintrusão, ação que transcorreu entre maio e julho. Reuniões realizadas em algumas dessas cidades, antes e durante a operação de remoção dos invasores, resultaram em compromissos para enviar recursos emergenciais e projetos de desenvolvimento sustentável. Mas, segundo a liderança Xerê Kayapó, presidente da Associação Angrôkrere-Mebengôkre, nada chegou às aldeias. “Prometeram resposta em 15 dias. Até hoje nada. A comunidade está passando necessidade, sem apoio nenhum.”

Não é só pelo temor de uma volta dos garimpeiros que as lideranças estão preocupadas. É que, sem alternativa econômica, o ciclo das invasões pode voltar rapidamente. “Tinha comunidade envolvida com atividade ilícita, e foram impactados com o garimpo, e agora eles não têm mais esse ingresso; e o governo, que tinha oferecido apoio para projetos, não dá informações”, diz Pàtkôre Kayapó, presidente da Associação Floresta Protegida.

<><> A desconfiança persiste

Akjaboro expressa descrença, se nada for feito depois da desintrusão: “Emanciparam a gente, mas não deram nada em troca. Eu cresci na floresta, virei cacique, virei líder nacional. Mas hoje preciso de comida, saúde, moradia. O governo não entrega. Só fala.”

O que está em jogo não é apenas a preservação da floresta, mas também a dignidade de milhares de famílias Kayapó. As necessárias operações do governo federal enfraqueceram o garimpo ilegal, porém abriram um vazio que, se não for preenchido com alternativas sustentáveis, pode levar à retomada das atividades predatórias.

Sandro Kayapó sintetiza o dilema: “Se o governo tem dinheiro para operação, o governo tem dinheiro para o Ibama. E nós? Nós somos os verdadeiros guardiões da floresta. Que valor a gente tem para o governo numa hora dessas?” Segundo ele, embora a maioria da comunidade não estivesse diretamente envolvida com o garimpo, todos sofrem com a dependência da renda que a atividade gerava. “O garimpo era dinheiro rápido para alguns. Agora, sem ele e sem alternativa, todos estão sem nada.”

Quando o garimpo vai embora, parte de uma relação informal vai junto. Antes os garimpeiros faziam favores aos Kayapó, como levar alimentos, suprir combustível, evacuar uma pessoa doente. Essa ajuda cessou. Os indígenas agora estão desassistidos pelo governo, sem combustível, veículos e profissionais.

Sandro cobra políticas públicas voltadas para as comunidades indígenas se desenvolverem, mediante mecanismos de subsídio para as atividades de subsistência e de geração de renda. “É isso que as lideranças das comunidades estão pedindo, apoio para fazer suas roças, melhorar suas atividades, agricultura familiar, ecoturismo, explorar atividades que lhes permitam melhorias no dia a dia.” Entre as promessas do governo estaria a construção de uma base de vigilância.

Enquanto as respostas e os recursos não chegam, a pressão permanece na TI Kayapó. As lideranças admitem que parte da comunidade pode voltar a se envolver com atividades ilegais por pura necessidade. “Eu não posso pedir para eles pararem, eles vão me cobrar. E eu não tenho dinheiro para ajudar eles”, diz o cacique-geral Akjaboro. “E sem apoio, eles voltam para o garimpo, não porque querem destruir, mas porque precisam comer.”

As comunidades já fizeram um levantamento de alternativas, entre elas estão o crédito de carbono, projetos de turismo de base comunitária, fortalecimento da agricultura familiar e o incentivo à produção de cacau e açaí. Mas nada disso sairá sem uma ajuda oficial.

<><> Sem consulta

Os Kayapó andam desconfiados, porque o próprio processo de desintrusão foi feito sem o consentimento dos indígenas. Akjaboro Kayapó afirma que a comunidade não sabia da operação, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante a consulta livre, prévia e informada. “Foi por cima disso que o governo e o STF combinaram para fazer a desintrusão. Assim que eles fizeram a operação, mas não avisaram a gente antes, quando foram feitos os planejamentos.”

A ação de desintrusão ocorreu após uma ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) decorrente da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em 2020.

Sandro Kayapó conta que participou em Brasília, junto com outras lideranças, de uma reunião com o governo federal antes do começo da desintrusão, onde só lhes foram apresentadas informações sobre a ação, mas que não foi realizada uma consulta ao povo, apesar de que a terra indígena conta com um protocolo de consulta lançado em dezembro do ano passado. Em resposta, o MPI declarou que o planejamento das operações de desintrusão é realizado em caráter sigiloso, baseado na ADPF 709.

<><> O que dizem as autoridades

Em nota enviada à Amazônia Real, a Funai afirma que atividades pontuais já estão em execução na TI Kayapó. Neste mês de agosto, em uma iniciativa organizada pela Associação Floresta Protegida, o governo apoiou a abertura da temporada de turismo em aldeias Kayapó, com visitantes participando de expedições de etnoturismo.

Outro exemplo foi a aprovação do projeto “Apoio à Produção Sustentável de Alimentos”, com foco no fortalecimento das roças tradicionais Kayapó. A proposta busca recuperar áreas degradadas, garantir segurança alimentar e comercializar excedentes em mercados regionais. No entanto, essas ações ainda estão em estágio inicial. Segundo a autarquia, já foram destinados cerca de 2 milhões de reais em 2025 para ações de etnodesenvolvimento, inclusos os eixos de cadeias produtivas, proteção territorial, cultura, saúde e educação.

O MPI, em nota, ressalta que a desintrusão foi apenas a primeira etapa de um processo maior, e que desde o início da operação entregou 9.500 cestas de alimentos nas aldeias. Além disso, instituiu o Programa de Consolidação da Posse Indígena (PCPI), para fortalecer a vigilância comunitária, melhorar a infraestrutura básica das aldeias, apoiar atividades produtivas sustentáveis e assegurar o usufruto exclusivo do território pelos Kayapó. O ministério também destaca que a TI Kayapó está entre as 15 beneficiadas pelo projeto Ywy Ipuranguete, destinado a financiar iniciativas de conservação da biodiversidade em territórios indígenas.

O cacique-geral Akjaboro Kayapó decidiu esperar. Ele avalia como positivo o resultado da desintrusão até o momento. Para ele, a vida no território melhorou porque já não há mais a pressão dos garimpeiros. Até o meio ambiente dá sinais de recuperação. “Hoje nós temos cultura, todo mundo está indo para a aldeia, para festa. Temos água limpa que tem muito peixe, e que nós estamos comendo.” Durante a operação houve redução de 96% nos alertas de garimpo e 95% nos alertas de desmatamento.

Ireô Kayapó também não esconde o entusiasmo com a rápida transformação que têm presenciado. “Á água é limpa, é muito peixe subindo aqui. A aldeia maior que pertence ao Rio Fresco, tá achando muito bom. Então, acho que é muito melhor o governo continuar batalhando”, solicita.

•        Associações indígenas, Fiocruz e Funai instalam Comitê de Governança Yanomami e Ye’kwana

As associações indígenas representantes dos povos que vivem no território Yanomami instalaram (26/8), em Maturacá (AM), o Comitê de Governança Yanomami e Ye’kwana. O Comitê foi instalado por meio de uma cooperação entre a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Fiocruz. O objetivo é assegurar que os povos de diferentes regiões da Terra Indígena Yanomami (TIY) possam acompanhar e avaliar as ações do Governo Federal no território, bem como participar da construção de políticas voltadas às comunidades da região.

A instalação do Comitê marca o período de transição de medidas emergenciais, adotadas com o objetivo de mitigar os impactos do garimpo ilegal, para a implementação de ações estruturantes e permanentes com foco em garantir soberania alimentar e nutricional, proteção social e territorial e geração de renda para os povos que vivem no território. É o que destaca a presidenta da Funai, Joenia Wapichana.

“Estamos em um momento de transição, saindo das cestas de alimentos para projetos sustentáveis de segurança alimentar, como o fortalecimento das roças comunitárias, a implantação de projetos de piscicultura e avicultura e o incentivo à implantação de roçados. Também estão sendo ofertados cursos de formação para os indígenas com foco em gestão territorial e em segurança alimentar e nutricional”, explica a presidenta, em referência aos projetos sustentáveis de diferentes órgãos do Governo Federal em implementação no território desde 2024.

Para o presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), João Figueiredo, “o Comitê é uma semente que está sendo plantada agora, uma coisa nova que esperamos que não tenha fim e que o Governo Federal dê continuidade, que não apague essa luz”. Ele agradeceu às instituições e reforçou a importância da participação dos indígenas no Comitê de Governança tanto para o aprendizado, quanto para esclarecimentos relacionados às ações realizadas no território.

A instalação do Comitê de Governança está no escopo da Força-Tarefa Yanomami e Ye’kwana (FTYY), uma parceria entre a Funai e a Fiocruz focada na realização e monitoramento de ações com o objetivo de fortalecer as comunidades indígenas da Terra Yanomami e devolver a autonomia dos povos, impactada pelo garimpo ilegal. Coordenador de Saúde e Ambiente da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Guilherme Franco Netto conta como nasceu a parceria.

“Fomos procurados pela Funai em 2024 para estudar a possibilidade de estabelecer uma cooperação voltada para dar sustentação às ações que estão sendo desenvolvidas em defesa dos povos e também da natureza no território Yanomami”, explica. Em 2025, segundo Franco Netto, foi iniciada “a implementação de diversas atividades e componentes que, inclusive, propiciam o protagonismo dos povos indígenas nos seus territórios para que possamos promover a dignidade de toda essa gente atendida”, pontua.

Durante o evento, a Funai realizou a entrega simbólica de mais de 200 kg de miçangas às associações de mulheres indígenas para fortalecer a geração de renda e de ferramentas para fortalecer a sustentabilidade no território Yanomami, nas regiões do Amazonas. Além disso, apresentou os novos bolsistas do curso de Agentes Indígenas de Proteção Social que vão atuar na FTYY.

A implantação do Comitê foi motivo de celebração entre os indígenas. Na abertura, houve danças e cantos tradicionais com a participação de lideranças indígenas Yanomami, homens e mulheres.

Além da presidenta, a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, Lucia Alberta, e demais coordenações que atuam na FTYY,  participaram do evento, reafirmando compromisso de uma atuação participativa, coletiva e transparente. Também estiveram presentes as coordenadoras regionais da Funai Roraima, Marizete de Souza, e  Rio Negro, Dadá Baniwa.

<><> Projetos de soberania alimentar

Entre os projetos em implementação voltados a garantir a soberania alimentar dos povos da TIY está a proposta de aquicultura e pesca de pequena escala desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O objetivo é desenvolver, adaptar e transferir tecnologias relacionadas à atividade aquícola e da pesca para povos originários na TI Yanomami, com vistas à melhoria da qualidade de vida, segurança e soberania alimentar.

Já o projeto do Instituto Federal de Roraima (IFRR), também em execução, tem como foco a aquicultura e a pesca artesanal, com ações educativas. A proposta visa à implementação de projetos de extensão de apoio à piscicultura nas comunidades indígenas da TIY. O intuito é oferecer cursos de capacitação, assessoria técnica e implantar unidades demonstrativas de módulos de produção aquícola. Além disso, o projeto prevê a realização de oficinas de conscientização e pesca artesanal.

A Embrapa apresentou também o projeto de resgate e preservação de variedades tradicionais, que visa ao restabelecimento da segurança e soberania alimentar dos povos indígenas em vulnerabilidade na TIY. Por meio da proposta, ocorre a Instalação de Bancos de Sementes Tradicionais (BST) e implantação de culturas em sistemas agroflorestais.

<><> Cursos de formação

Com foco na formação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e o IFRR atuam na implementação de cursos de formação inicial e continuada. A ideia é realizar atividades de ensino e extensão e implementar módulos produtivos, com assessoria técnica, para apoio às atividades produtivas e manejo ambiental. O objetivo é ofertar cursos nas comunidades da TI e fazer intercâmbio com outros povos para a troca de conhecimentos a fim de promover o fortalecimento de atividades produtivas.

 

Fonte: Amazônia Real/Funai na AFN

 

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