Desintrusão
na TI Kayapó deixa promessas e incertezas
“Eu
quero que você bote no jornal e jogue para o Brasil todo: é para continuar e
mandar a Polícia Federal tirar esses garimpeiros que estão no mato escondidos
aí, tá?”, pede o cacique Ireô Kayapó à Amazônia Real. Três meses depois do
início do processo de desintrusão, a população da Terra Indígena (TI) Kayapó,
no sul do Pará, começa a ver sinais de melhoria, sentimento que se mistura à
desconfiança e à incerteza. “Tem que tirar o garimpeiro todo da área. Se não,
volta o mercúrio, volta a água suja, volta a doença”, alerta o líder, cuja
lembrança das crianças já contaminadas pelo metal pesado não sai da memória. “O
mercúrio já corre no sangue do nosso povo.”
A
operação de desintrusão, coordenada pela Casa Civil e pelo Ministério dos Povos
Indígenas (MPI), é a maior já realizada na TI Kayapó. A ação ocorreu após uma
ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) e resultou na destruição de 967
barracos e 25 escavadeiras, com um prejuízo estimado em 97,3 milhões de reais
para o crime organizado.
Cidades
vizinhas da TI, como Bannach, Cumaru do Norte, Ourilândia do Norte, São Félix
do Xingu e Tucumã, também foram incluídas na desintrusão, ação que transcorreu
entre maio e julho. Reuniões realizadas em algumas dessas cidades, antes e
durante a operação de remoção dos invasores, resultaram em compromissos para
enviar recursos emergenciais e projetos de desenvolvimento sustentável. Mas,
segundo a liderança Xerê Kayapó, presidente da Associação
Angrôkrere-Mebengôkre, nada chegou às aldeias. “Prometeram resposta em 15 dias.
Até hoje nada. A comunidade está passando necessidade, sem apoio nenhum.”
Não é
só pelo temor de uma volta dos garimpeiros que as lideranças estão preocupadas.
É que, sem alternativa econômica, o ciclo das invasões pode voltar rapidamente.
“Tinha comunidade envolvida com atividade ilícita, e foram impactados com o
garimpo, e agora eles não têm mais esse ingresso; e o governo, que tinha
oferecido apoio para projetos, não dá informações”, diz Pàtkôre Kayapó,
presidente da Associação Floresta Protegida.
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A desconfiança persiste
Akjaboro
expressa descrença, se nada for feito depois da desintrusão: “Emanciparam a
gente, mas não deram nada em troca. Eu cresci na floresta, virei cacique, virei
líder nacional. Mas hoje preciso de comida, saúde, moradia. O governo não
entrega. Só fala.”
O que
está em jogo não é apenas a preservação da floresta, mas também a dignidade de
milhares de famílias Kayapó. As necessárias operações do governo federal
enfraqueceram o garimpo ilegal, porém abriram um vazio que, se não for
preenchido com alternativas sustentáveis, pode levar à retomada das atividades
predatórias.
Sandro
Kayapó sintetiza o dilema: “Se o governo tem dinheiro para operação, o governo
tem dinheiro para o Ibama. E nós? Nós somos os verdadeiros guardiões da
floresta. Que valor a gente tem para o governo numa hora dessas?” Segundo ele,
embora a maioria da comunidade não estivesse diretamente envolvida com o
garimpo, todos sofrem com a dependência da renda que a atividade gerava. “O
garimpo era dinheiro rápido para alguns. Agora, sem ele e sem alternativa,
todos estão sem nada.”
Quando
o garimpo vai embora, parte de uma relação informal vai junto. Antes os
garimpeiros faziam favores aos Kayapó, como levar alimentos, suprir
combustível, evacuar uma pessoa doente. Essa ajuda cessou. Os indígenas agora
estão desassistidos pelo governo, sem combustível, veículos e profissionais.
Sandro
cobra políticas públicas voltadas para as comunidades indígenas se
desenvolverem, mediante mecanismos de subsídio para as atividades de
subsistência e de geração de renda. “É isso que as lideranças das comunidades
estão pedindo, apoio para fazer suas roças, melhorar suas atividades,
agricultura familiar, ecoturismo, explorar atividades que lhes permitam
melhorias no dia a dia.” Entre as promessas do governo estaria a construção de
uma base de vigilância.
Enquanto
as respostas e os recursos não chegam, a pressão permanece na TI Kayapó. As
lideranças admitem que parte da comunidade pode voltar a se envolver com
atividades ilegais por pura necessidade. “Eu não posso pedir para eles pararem,
eles vão me cobrar. E eu não tenho dinheiro para ajudar eles”, diz o
cacique-geral Akjaboro. “E sem apoio, eles voltam para o garimpo, não porque
querem destruir, mas porque precisam comer.”
As
comunidades já fizeram um levantamento de alternativas, entre elas estão o
crédito de carbono, projetos de turismo de base comunitária, fortalecimento da
agricultura familiar e o incentivo à produção de cacau e açaí. Mas nada disso
sairá sem uma ajuda oficial.
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Sem consulta
Os
Kayapó andam desconfiados, porque o próprio processo de desintrusão foi feito
sem o consentimento dos indígenas. Akjaboro Kayapó afirma que a comunidade não
sabia da operação, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho, que garante a consulta livre, prévia e informada. “Foi por cima
disso que o governo e o STF combinaram para fazer a desintrusão. Assim que eles
fizeram a operação, mas não avisaram a gente antes, quando foram feitos os
planejamentos.”
A ação
de desintrusão ocorreu após uma ordem do Supremo Tribunal Federal (STF)
decorrente da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709
proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em 2020.
Sandro
Kayapó conta que participou em Brasília, junto com outras lideranças, de uma
reunião com o governo federal antes do começo da desintrusão, onde só lhes
foram apresentadas informações sobre a ação, mas que não foi realizada uma
consulta ao povo, apesar de que a terra indígena conta com um protocolo de
consulta lançado em dezembro do ano passado. Em resposta, o MPI declarou que o
planejamento das operações de desintrusão é realizado em caráter sigiloso,
baseado na ADPF 709.
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O que dizem as autoridades
Em nota
enviada à Amazônia Real, a Funai afirma que atividades pontuais já estão em
execução na TI Kayapó. Neste mês de agosto, em uma iniciativa organizada pela
Associação Floresta Protegida, o governo apoiou a abertura da temporada de
turismo em aldeias Kayapó, com visitantes participando de expedições de
etnoturismo.
Outro
exemplo foi a aprovação do projeto “Apoio à Produção Sustentável de Alimentos”,
com foco no fortalecimento das roças tradicionais Kayapó. A proposta busca
recuperar áreas degradadas, garantir segurança alimentar e comercializar
excedentes em mercados regionais. No entanto, essas ações ainda estão em
estágio inicial. Segundo a autarquia, já foram destinados cerca de 2 milhões de
reais em 2025 para ações de etnodesenvolvimento, inclusos os eixos de cadeias
produtivas, proteção territorial, cultura, saúde e educação.
O MPI,
em nota, ressalta que a desintrusão foi apenas a primeira etapa de um processo
maior, e que desde o início da operação entregou 9.500 cestas de alimentos nas
aldeias. Além disso, instituiu o Programa de Consolidação da Posse Indígena
(PCPI), para fortalecer a vigilância comunitária, melhorar a infraestrutura
básica das aldeias, apoiar atividades produtivas sustentáveis e assegurar o
usufruto exclusivo do território pelos Kayapó. O ministério também destaca que
a TI Kayapó está entre as 15 beneficiadas pelo projeto Ywy Ipuranguete,
destinado a financiar iniciativas de conservação da biodiversidade em
territórios indígenas.
O
cacique-geral Akjaboro Kayapó decidiu esperar. Ele avalia como positivo o
resultado da desintrusão até o momento. Para ele, a vida no território melhorou
porque já não há mais a pressão dos garimpeiros. Até o meio ambiente dá sinais
de recuperação. “Hoje nós temos cultura, todo mundo está indo para a aldeia,
para festa. Temos água limpa que tem muito peixe, e que nós estamos comendo.”
Durante a operação houve redução de 96% nos alertas de garimpo e 95% nos
alertas de desmatamento.
Ireô
Kayapó também não esconde o entusiasmo com a rápida transformação que têm
presenciado. “Á água é limpa, é muito peixe subindo aqui. A aldeia maior que
pertence ao Rio Fresco, tá achando muito bom. Então, acho que é muito melhor o
governo continuar batalhando”, solicita.
• Associações indígenas, Fiocruz e Funai
instalam Comitê de Governança Yanomami e Ye’kwana
As
associações indígenas representantes dos povos que vivem no território Yanomami
instalaram (26/8), em Maturacá (AM), o Comitê de Governança Yanomami e
Ye’kwana. O Comitê foi instalado por meio de uma cooperação entre a Fundação
Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Fiocruz. O objetivo é assegurar que os
povos de diferentes regiões da Terra Indígena Yanomami (TIY) possam acompanhar
e avaliar as ações do Governo Federal no território, bem como participar da
construção de políticas voltadas às comunidades da região.
A
instalação do Comitê marca o período de transição de medidas emergenciais,
adotadas com o objetivo de mitigar os impactos do garimpo ilegal, para a
implementação de ações estruturantes e permanentes com foco em garantir
soberania alimentar e nutricional, proteção social e territorial e geração de
renda para os povos que vivem no território. É o que destaca a presidenta da
Funai, Joenia Wapichana.
“Estamos
em um momento de transição, saindo das cestas de alimentos para projetos
sustentáveis de segurança alimentar, como o fortalecimento das roças
comunitárias, a implantação de projetos de piscicultura e avicultura e o
incentivo à implantação de roçados. Também estão sendo ofertados cursos de
formação para os indígenas com foco em gestão territorial e em segurança
alimentar e nutricional”, explica a presidenta, em referência aos projetos
sustentáveis de diferentes órgãos do Governo Federal em implementação no
território desde 2024.
Para o
presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), João
Figueiredo, “o Comitê é uma semente que está sendo plantada agora, uma coisa
nova que esperamos que não tenha fim e que o Governo Federal dê continuidade,
que não apague essa luz”. Ele agradeceu às instituições e reforçou a
importância da participação dos indígenas no Comitê de Governança tanto para o
aprendizado, quanto para esclarecimentos relacionados às ações realizadas no
território.
A
instalação do Comitê de Governança está no escopo da Força-Tarefa Yanomami e
Ye’kwana (FTYY), uma parceria entre a Funai e a Fiocruz focada na realização e
monitoramento de ações com o objetivo de fortalecer as comunidades indígenas da
Terra Yanomami e devolver a autonomia dos povos, impactada pelo garimpo ilegal.
Coordenador de Saúde e Ambiente da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e
Promoção da Saúde da Fiocruz, Guilherme Franco Netto conta como nasceu a
parceria.
“Fomos
procurados pela Funai em 2024 para estudar a possibilidade de estabelecer uma
cooperação voltada para dar sustentação às ações que estão sendo desenvolvidas
em defesa dos povos e também da natureza no território Yanomami”, explica. Em
2025, segundo Franco Netto, foi iniciada “a implementação de diversas
atividades e componentes que, inclusive, propiciam o protagonismo dos povos
indígenas nos seus territórios para que possamos promover a dignidade de toda
essa gente atendida”, pontua.
Durante
o evento, a Funai realizou a entrega simbólica de mais de 200 kg de miçangas às
associações de mulheres indígenas para fortalecer a geração de renda e de
ferramentas para fortalecer a sustentabilidade no território Yanomami, nas
regiões do Amazonas. Além disso, apresentou os novos bolsistas do curso de
Agentes Indígenas de Proteção Social que vão atuar na FTYY.
A
implantação do Comitê foi motivo de celebração entre os indígenas. Na abertura,
houve danças e cantos tradicionais com a participação de lideranças indígenas
Yanomami, homens e mulheres.
Além da
presidenta, a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, Lucia
Alberta, e demais coordenações que atuam na FTYY, participaram do evento, reafirmando
compromisso de uma atuação participativa, coletiva e transparente. Também
estiveram presentes as coordenadoras regionais da Funai Roraima, Marizete de
Souza, e Rio Negro, Dadá Baniwa.
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Projetos de soberania alimentar
Entre
os projetos em implementação voltados a garantir a soberania alimentar dos
povos da TIY está a proposta de aquicultura e pesca de pequena escala
desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O
objetivo é desenvolver, adaptar e transferir tecnologias relacionadas à
atividade aquícola e da pesca para povos originários na TI Yanomami, com vistas
à melhoria da qualidade de vida, segurança e soberania alimentar.
Já o
projeto do Instituto Federal de Roraima (IFRR), também em execução, tem como
foco a aquicultura e a pesca artesanal, com ações educativas. A proposta visa à
implementação de projetos de extensão de apoio à piscicultura nas comunidades
indígenas da TIY. O intuito é oferecer cursos de capacitação, assessoria
técnica e implantar unidades demonstrativas de módulos de produção aquícola.
Além disso, o projeto prevê a realização de oficinas de conscientização e pesca
artesanal.
A
Embrapa apresentou também o projeto de resgate e preservação de variedades
tradicionais, que visa ao restabelecimento da segurança e soberania alimentar
dos povos indígenas em vulnerabilidade na TIY. Por meio da proposta, ocorre a
Instalação de Bancos de Sementes Tradicionais (BST) e implantação de culturas
em sistemas agroflorestais.
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Cursos de formação
Com
foco na formação, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura
Familiar (MDA) e o IFRR atuam na implementação de cursos de formação inicial e
continuada. A ideia é realizar atividades de ensino e extensão e implementar
módulos produtivos, com assessoria técnica, para apoio às atividades produtivas
e manejo ambiental. O objetivo é ofertar cursos nas comunidades da TI e fazer
intercâmbio com outros povos para a troca de conhecimentos a fim de promover o
fortalecimento de atividades produtivas.
Fonte:
Amazônia Real/Funai na AFN

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