sábado, 30 de agosto de 2025

Cleber Lourenço: Do bolso ao foro - a blindagem completa

Em Brasília, a lógica dos privilégios nunca falha: quando a pauta ameaça os de cima, o Congresso se articula para barrar. Quando garante blindagem para ricos e políticos, a pressa é imediata. O caso da isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil e a retomada da PEC das Prerrogativas expõem de forma didática essa engrenagem que se repete ao longo da história política recente: um sistema que paralisa diante do interesse popular, mas que acelera quando o objetivo é proteger os donos do poder.

A isenção, que poderia beneficiar milhões de trabalhadores, está travada porque partidos como PL e PP se recusam a aceitar a taxação sobre os super-ricos. Em vez de enfrentar o debate sobre justiça fiscal, a oposição prefere preservar um grupo restrito de contribuintes no topo da pirâmide. O que deveria ser um avanço social virou moeda de troca.

A consequência é brutal: 20 milhões de brasileiros seguem à espera de um alívio no contracheque enquanto cerca de 141 mil pessoas mais ricas são blindadas por meio da articulação direta da oposição e de setores do centrão. É uma inversão de prioridades que escancara a captura do Congresso por interesses econômicos.

Essa postura não é inédita. Em 2017, quando se discutia o foro privilegiado, também se assistiu à mesma dança: avanços possíveis em direção à igualdade barrados para preservar a casta política. Agora, em 2025, a repetição ganha contornos ainda mais explícitos.

O discurso é de responsabilidade fiscal, mas a prática é proteger patrimônio acumulado e preservar privilégios. Quando o governo busca a taxação do topo para viabilizar a isenção, o centrão responde com chantagem: ou se abre mão de mexer nos super-ricos ou o benefício popular fica no congelador.

No campo político, a lógica se repete de maneira quase coreografada. Deputados insistem em ressuscitar a PEC das Prerrogativas, apelidada de “pacote da impunidade”.

O texto não tem relatório pronto, tampouco votos suficientes, mas serve como sinalização para as alas mais radicalizadas da direita. Na prática, a proposta funcionaria como um salvo-conduto. Limita prisões em flagrante de parlamentares, reduz o alcance de decisões cautelares monocráticas do Judiciário e cria obstáculos a operações policiais dentro das dependências do Congresso. Trata-se de uma muralha jurídica desenhada sob medida para resguardar quem exerce o mandato, não para proteger a democracia.

É importante notar que esse tipo de medida tem um alvo claro: reduzir a capacidade de fiscalização de instituições independentes. Quando parlamentares temem juízes de primeira instância, como já ocorreu em episódios envolvendo Sérgio Moro, a resposta não é fortalecer a transparência, mas sim construir barreiras.

O centrão, que vive de negociar com qualquer governo, teme que seus quadros virem alvos de investigações. Por isso a urgência em criar amarras institucionais. Assim, a PEC das Prerrogativas se torna não apenas um projeto de lei, mas um gesto simbólico de autopreservação.

O recado é transparente: do bolso ao foro, a blindagem é completa. Super-ricos preservados na economia, parlamentares resguardados na Justiça. A engrenagem do privilégio gira com velocidade impressionante, enquanto pautas de interesse coletivo ficam paradas na gaveta.

É o retrato de um Congresso que se move com rapidez quando se trata de proteger elites econômicas e políticas, mas que emperra diante de qualquer agenda voltada à maioria. Brasília ergue castelos sólidos para poucos e deixa milhões do lado de fora dos portões, assistindo de longe a manutenção de uma ordem que nunca se rompe.

•        Desgaste com eleitor fez Câmara desistir da PEC da blindagem

A Câmara dos Deputados recuou diante da pressão popular e do desgaste político em torno da chamada PEC da blindagem. A proposta, que buscava ampliar prerrogativas parlamentares e impor barreiras adicionais à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), foi retirada de pauta sem previsão de retorno. O adiamento representa uma derrota para líderes que tentaram acelerar a votação nesta semana.

A versão discutida incluía dispositivos como a exigência de aval de dois terços do STF para autorizar prisão preventiva ou medidas cautelares contra deputados e senadores. Também previa que inquéritos envolvendo parlamentares só poderiam ser abertos com autorização do Congresso e até mesmo sustados pela própria Casa, em alguns rascunhos com possibilidade de voto secreto. O pacote ainda restringia hipóteses de prisão em flagrante, criando uma blindagem inédita contra investigações e decisões judiciais.

A repercussão negativa foi imediata. Nas redes sociais, a hashtag “PEC da impunidade” se manteve entre os assuntos mais comentados. Parlamentares que inicialmente defendiam a proposta passaram a recuar, diante da percepção de que o tema, considerado de difícil compreensão para o eleitorado, poderia ser interpretado como uma tentativa de autoproteção.

<><> Câmara dos Deputados

Um dos principais articuladores do debate, o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, admitiu em entrevista que a própria base desconhecia os detalhes do texto e reconheceu o custo político da iniciativa. No dia seguinte, anunciou publicamente que o partido deixaria de defender a PEC, classificando a movimentação como “politicagem barata”.

Ao ICL Notícias Sóstenes confirmou o incômodo e disparou contra o centrão: “Eles [o centrão] agora que coloquem a cara”.

O recuo também foi influenciado pela falta de consenso interno. O relator Lafayette de Andrada trabalhava com minutas sem versão final consolidada, e líderes avaliaram que não havia votos suficientes para aprovação. O presidente da Câmara, Hugo Motta, evitou marcar nova data de análise, deixando a proposta paralisada.

Para setores da oposição e até mesmo de partidos do centrão, a manobra expôs o risco de desgaste generalizado. Em meio ao cenário de crise econômica e insatisfação social, a tentativa de avançar com a PEC foi lida como desconexão com as demandas reais da população. O adiamento, ainda que temporário, foi interpretado como recuo estratégico para evitar uma derrota explícita em plenário.

•        Centrão tentou votar PEC da Impunidade no escuro

A votação da chamada PEC da Impunidade, que pretende alterar as regras de imunidade parlamentar, foi adiada na Câmara dos Deputados depois de um dia marcado por improviso, pressão de bancadas e uma condução considerada desastrosa até mesmo por integrantes da base governista. O relator Lafayette de Andrada apresentou apenas textos não finalizados, o que inviabilizou a tentativa de líderes de colocar o tema em votação ainda na madrugada de terça para quarta-feira. A ausência de um parecer consolidado se tornou o principal fator de travamento, embora os conteúdos discutidos também tenham provocado forte resistência.

Segundo parlamentares que participaram da reunião de líderes, a maneira como a pauta foi conduzida surpreendeu negativamente. Até por volta das 20h de terça-feira não havia parecer protocolado, mas ainda assim havia quem defendesse a possibilidade de votar a proposta durante a madrugada, mesmo que o texto fosse disponibilizado com poucas horas de antecedência. Para um deputado presente, se Lafayette tivesse protocolado algo, mesmo que incompleto, haveria tentativa concreta de apreciação. O episódio reforçou a percepção de que a articulação foi feita às pressas e sem alinhamento mínimo.

Nos bastidores, o ponto mais sensível foi a pressão do centrão para incluir dispositivos que dariam à Câmara poder de autorizar previamente a abertura de inquéritos contra deputados, além da possibilidade de sustar investigações já em curso. Essa versão, apelidada de “texto B” por alguns líderes, chegou a ser ventilada com previsão de voto secreto, uma manobra que ampliou ainda mais as críticas. A ideia incomodou parte da base governista e também aliados do governo no PSD, que enxergaram nesse movimento uma tentativa de o Legislativo assumir atribuições próprias do Judiciário.

O ponto do voto secreto gerou especial preocupação. O centrão avaliou a possibilidade de votar a PEC sem divulgação nominal, o que politicamente reduziria o custo para os parlamentares que apoiassem a blindagem. Mas, regimentalmente e juridicamente, trata-se de um expediente de alto risco: a Constituição exige votação em dois turnos com quórum qualificado de 3/5, e a praxe da Câmara é a votação nominal em painel. Qualquer tentativa de sigilo seria alvo imediato de contestação e poderia resultar em judicialização. Nos bastidores, esse cenário foi descrito como “ponto de alerta máximo”.

De acordo com avaliações feitas durante a reunião, esse mecanismo serviria como moeda de troca para viabilizar, em paralelo, a aprovação da PEC do fim do foro privilegiado, blindando parlamentares da primeira instância. Para alguns, o centrão buscava construir uma solução dupla: limitar investigações no âmbito da Câmara e, ao mesmo tempo, eliminar o foro para que processos ficassem concentrados em tribunais superiores, reduzindo riscos na Justiça comum.

A deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) classificou o adiamento como uma vitória da democracia. Ela destacou que “os elementos de mérito levantados no colégio de líderes e que havia insistência para que fossem incluídos eram muito graves, incluindo uma orientação de que inquéritos que envolvessem parlamentares só poderiam ser abertos com autorização da Câmara ou, numa opção de texto B, poderiam ser sustados pela própria Câmara, tudo isso com voto secreto”. Para a deputada, o que estava em jogo não era apenas a garantia de prerrogativas parlamentares, mas uma tentativa de o Legislativo se autointitular Judiciário e criar uma blindagem institucional.

<><> PEC da Impunidade: ‘salvo-conduto institucional’

A condução atrapalhada também chamou atenção de partidos que não costumam se alinhar em temas institucionais. O PSD, por exemplo, apresentou divergências e se somou ao PT e às legendas de esquerda na crítica ao texto e à forma de tramitação. Membros da base governista avaliam que Hugo Motta, presidente da Câmara, tentou repetir a estratégia de Arthur Lira com a PEC do voto impresso em 2021: pautar o tema mesmo sem votos para aprovar, apenas para encerrar a pressão. Mas a forma como o assunto foi retirado, sem uma definição ou uma votação simbólica, foi vista como ainda mais desorganizada, mantendo o tema vivo no radar e alimentando novas pressões.

Relatos de bastidores indicam que Lafayette de Andrada está incomodado com a interferência do centrão no texto. O relator teria sinalizado insatisfação com a tentativa de empurrar mudanças que poderiam transformar a PEC em uma espécie de salvo-conduto institucional. Essa resistência ajuda a explicar por que não houve parecer formalizado até o final da noite.

Na oposição, lideranças já se articulam para recolocar a proposta em discussão. Há expectativa de que o colégio de líderes da próxima semana avalie novamente o tema e decida se ele volta ao plenário e em qual formato. O cálculo de parte dos oposicionistas é de que, mesmo sem consenso, o assunto precisa ser pautado para não desaparecer da agenda.

Até lá, o relator deverá apresentar uma versão final do texto. A insatisfação com as exigências do centrão e a resistência de setores da base, somadas à crítica de partidos como PT e PSD, indicam que um consenso ainda está distante. O episódio, no entanto, reforçou a percepção de que a proposta divide o Congresso e expõe contradições entre bancadas que, em outros momentos, costumam caminhar juntas em pautas de interesse corporativo.

•        Juristas apontam risco de inconstitucionalidade em pacote da impunidade

O chamado “pacote da impunidade”, que reúne a PEC das Prerrogativas e a PEC do fim do foro privilegiado, voltou à pauta da Câmara nesta quarta-feira (27) em meio a fortes críticas de juristas e especialistas em direito constitucional.

O conjunto de propostas é visto como uma tentativa de ampliar proteções a parlamentares e reduzir o alcance de investigações, em um momento em que cresce a pressão da oposição pela anistia de envolvidos nos atos de 8 de janeiro. O debate reacende antigas discussões sobre a efetividade do controle do poder político e a necessidade de preservação das cláusulas pétreas da Constituição.

A advogada constitucionalista Damares Medina, ao analisar a proposta, apontou que a reintrodução de filtros políticos prévios para investigações contra parlamentares pode significar um retrocesso institucional. Ela lembra que esse mecanismo foi abolido pela Emenda Constitucional 35 de 2001 justamente para fortalecer a autonomia do Ministério Público e garantir maior transparência na responsabilização de autoridades.

“Eu não disse que é inconstitucional. À luz do princípio do não retrocesso pode ter uma interpretação de que retroceder aos marcos originários seria um retrocesso social, o Ministério Público teria restringido a sua autonomia e poderia ser declarado inconstitucional”, afirmou. A avaliação dela ecoa entre outros constitucionalistas que veem a possibilidade de a medida esbarrar no Supremo Tribunal Federal caso seja aprovada.

O jurista Pedro Serrano, por sua vez, chama atenção para um aspecto específico considerado ainda mais grave: a ausência de menção aos crimes contra a democracia entre as exceções que permitiriam responsabilizar parlamentares. Segundo ele, ampliar a imunidade para abranger esses delitos configuraria uma afronta direta às cláusulas pétreas da Constituição, que protegem a inviolabilidade das eleições livres e periódicas.

“Não se pode admitir emendas constitucionais que subtraiam do Estado a capacidade de defender a democracia, mesmo diante de crimes cometidos por parlamentares contra ela. Ampliar a imunidade parlamentar para abranger crimes contra a democracia parece-me inconstitucional, por violar cláusulas pétreas que garantem a inviolabilidade das eleições livres e periódicas”, disse Serrano. A advertência traz à tona o risco de o Congresso criar um escudo que fragilize os mecanismos institucionais de proteção ao regime democrático.

<><> Discussão sobre o pacote

As propostas em tramitação avançam em regime de prioridade. A PEC das Prerrogativas, relatada pelo deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG), estabelece limites mais rígidos para a atuação do Judiciário contra parlamentares. Entre os pontos estão a vedação ao afastamento judicial de mandato, a necessidade de que medidas cautelares sejam confirmadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal e a imposição de regras adicionais para buscas e apreensões, incluindo a participação da Polícia Legislativa. Essa configuração, segundo críticos, cria uma barreira quase intransponível para a responsabilização de congressistas, reeditando uma lógica de blindagem política que já demonstrou ser ineficaz para coibir abusos.

Já a PEC do fim do foro, que tramita desde 2017 e volta agora ao centro do debate, propõe transferir para a primeira instância o julgamento de crimes comuns cometidos por deputados e senadores. Embora em tese essa mudança represente maior aproximação dos parlamentares ao cidadão comum, há receio de que o desenho final crie insegurança jurídica e conflitos de competência, além de abrir brechas para manobras protelatórias.

A discussão sobre o foro especial sempre dividiu opiniões: parte dos analistas defende sua manutenção como forma de proteger o mandato contra perseguições, enquanto outros afirmam que o foro se tornou sinônimo de impunidade.

Paralelamente, a oposição pressiona pela votação do projeto de anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro, considerado parte do mesmo pacote político. O texto prevê perdão penal, cancelamento de multas e manutenção dos direitos políticos de condenados, o que poderia beneficiar centenas de investigados e condenados em processos já em andamento no STF. Essa tentativa de incluir a anistia no pacote amplia as críticas de que a movimentação legislativa busca, em última instância, criar um ambiente de indulgência institucional.

A articulação para aprovar o conjunto de medidas envolve o PL e partidos do Centrão, que enxergam no pacote a oportunidade de fortalecer suas bancadas diante de investigações em curso. Já setores da base governista resistem às mudanças e têm alertado para o impacto negativo que a aprovação pode gerar na imagem do Congresso perante a opinião pública.

Para críticos, o chamado “pacote da impunidade” não apenas ameaça reverter avanços democráticos conquistados desde 2001, mas sinaliza a tentativa explícita de transformar o Parlamento em um refúgio contra a lei, criando um sistema de privilégios incompatível com o Estado de Direito.

 

Fonte: ICL Notícias

 

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