Cleber
Lourenço: Do bolso ao foro - a blindagem completa
Em
Brasília, a lógica dos privilégios nunca falha: quando a pauta ameaça os de
cima, o Congresso se articula para barrar. Quando garante blindagem para ricos
e políticos, a pressa é imediata. O caso da isenção do Imposto de Renda até R$
5 mil e a retomada da PEC das Prerrogativas expõem de forma didática essa
engrenagem que se repete ao longo da história política recente: um sistema que
paralisa diante do interesse popular, mas que acelera quando o objetivo é
proteger os donos do poder.
A
isenção, que poderia beneficiar milhões de trabalhadores, está travada porque
partidos como PL e PP se recusam a aceitar a taxação sobre os super-ricos. Em
vez de enfrentar o debate sobre justiça fiscal, a oposição prefere preservar um
grupo restrito de contribuintes no topo da pirâmide. O que deveria ser um
avanço social virou moeda de troca.
A
consequência é brutal: 20 milhões de brasileiros seguem à espera de um alívio
no contracheque enquanto cerca de 141 mil pessoas mais ricas são blindadas por
meio da articulação direta da oposição e de setores do centrão. É uma inversão
de prioridades que escancara a captura do Congresso por interesses econômicos.
Essa
postura não é inédita. Em 2017, quando se discutia o foro privilegiado, também
se assistiu à mesma dança: avanços possíveis em direção à igualdade barrados
para preservar a casta política. Agora, em 2025, a repetição ganha contornos
ainda mais explícitos.
O
discurso é de responsabilidade fiscal, mas a prática é proteger patrimônio
acumulado e preservar privilégios. Quando o governo busca a taxação do topo
para viabilizar a isenção, o centrão responde com chantagem: ou se abre mão de
mexer nos super-ricos ou o benefício popular fica no congelador.
No
campo político, a lógica se repete de maneira quase coreografada. Deputados
insistem em ressuscitar a PEC das Prerrogativas, apelidada de “pacote da
impunidade”.
O texto
não tem relatório pronto, tampouco votos suficientes, mas serve como
sinalização para as alas mais radicalizadas da direita. Na prática, a proposta
funcionaria como um salvo-conduto. Limita prisões em flagrante de
parlamentares, reduz o alcance de decisões cautelares monocráticas do
Judiciário e cria obstáculos a operações policiais dentro das dependências do
Congresso. Trata-se de uma muralha jurídica desenhada sob medida para
resguardar quem exerce o mandato, não para proteger a democracia.
É
importante notar que esse tipo de medida tem um alvo claro: reduzir a
capacidade de fiscalização de instituições independentes. Quando parlamentares
temem juízes de primeira instância, como já ocorreu em episódios envolvendo
Sérgio Moro, a resposta não é fortalecer a transparência, mas sim construir
barreiras.
O
centrão, que vive de negociar com qualquer governo, teme que seus quadros virem
alvos de investigações. Por isso a urgência em criar amarras institucionais.
Assim, a PEC das Prerrogativas se torna não apenas um projeto de lei, mas um
gesto simbólico de autopreservação.
O
recado é transparente: do bolso ao foro, a blindagem é completa. Super-ricos
preservados na economia, parlamentares resguardados na Justiça. A engrenagem do
privilégio gira com velocidade impressionante, enquanto pautas de interesse
coletivo ficam paradas na gaveta.
É o
retrato de um Congresso que se move com rapidez quando se trata de proteger
elites econômicas e políticas, mas que emperra diante de qualquer agenda
voltada à maioria. Brasília ergue castelos sólidos para poucos e deixa milhões
do lado de fora dos portões, assistindo de longe a manutenção de uma ordem que
nunca se rompe.
• Desgaste com eleitor fez Câmara desistir
da PEC da blindagem
A
Câmara dos Deputados recuou diante da pressão popular e do desgaste político em
torno da chamada PEC da blindagem. A proposta, que buscava ampliar
prerrogativas parlamentares e impor barreiras adicionais à atuação do Supremo
Tribunal Federal (STF), foi retirada de pauta sem previsão de retorno. O
adiamento representa uma derrota para líderes que tentaram acelerar a votação
nesta semana.
A
versão discutida incluía dispositivos como a exigência de aval de dois terços
do STF para autorizar prisão preventiva ou medidas cautelares contra deputados
e senadores. Também previa que inquéritos envolvendo parlamentares só poderiam
ser abertos com autorização do Congresso e até mesmo sustados pela própria
Casa, em alguns rascunhos com possibilidade de voto secreto. O pacote ainda
restringia hipóteses de prisão em flagrante, criando uma blindagem inédita
contra investigações e decisões judiciais.
A
repercussão negativa foi imediata. Nas redes sociais, a hashtag “PEC da
impunidade” se manteve entre os assuntos mais comentados. Parlamentares que
inicialmente defendiam a proposta passaram a recuar, diante da percepção de que
o tema, considerado de difícil compreensão para o eleitorado, poderia ser
interpretado como uma tentativa de autoproteção.
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Câmara dos Deputados
Um dos
principais articuladores do debate, o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, admitiu
em entrevista que a própria base desconhecia os detalhes do texto e reconheceu
o custo político da iniciativa. No dia seguinte, anunciou publicamente que o
partido deixaria de defender a PEC, classificando a movimentação como
“politicagem barata”.
Ao ICL
Notícias Sóstenes confirmou o incômodo e disparou contra o centrão: “Eles [o
centrão] agora que coloquem a cara”.
O recuo
também foi influenciado pela falta de consenso interno. O relator Lafayette de
Andrada trabalhava com minutas sem versão final consolidada, e líderes
avaliaram que não havia votos suficientes para aprovação. O presidente da
Câmara, Hugo Motta, evitou marcar nova data de análise, deixando a proposta
paralisada.
Para
setores da oposição e até mesmo de partidos do centrão, a manobra expôs o risco
de desgaste generalizado. Em meio ao cenário de crise econômica e insatisfação
social, a tentativa de avançar com a PEC foi lida como desconexão com as
demandas reais da população. O adiamento, ainda que temporário, foi
interpretado como recuo estratégico para evitar uma derrota explícita em
plenário.
• Centrão tentou votar PEC da Impunidade
no escuro
A
votação da chamada PEC da Impunidade, que pretende alterar as regras de
imunidade parlamentar, foi adiada na Câmara dos Deputados depois de um dia
marcado por improviso, pressão de bancadas e uma condução considerada
desastrosa até mesmo por integrantes da base governista. O relator Lafayette de
Andrada apresentou apenas textos não finalizados, o que inviabilizou a
tentativa de líderes de colocar o tema em votação ainda na madrugada de terça
para quarta-feira. A ausência de um parecer consolidado se tornou o principal
fator de travamento, embora os conteúdos discutidos também tenham provocado
forte resistência.
Segundo
parlamentares que participaram da reunião de líderes, a maneira como a pauta
foi conduzida surpreendeu negativamente. Até por volta das 20h de terça-feira
não havia parecer protocolado, mas ainda assim havia quem defendesse a
possibilidade de votar a proposta durante a madrugada, mesmo que o texto fosse
disponibilizado com poucas horas de antecedência. Para um deputado presente, se
Lafayette tivesse protocolado algo, mesmo que incompleto, haveria tentativa
concreta de apreciação. O episódio reforçou a percepção de que a articulação
foi feita às pressas e sem alinhamento mínimo.
Nos
bastidores, o ponto mais sensível foi a pressão do centrão para incluir
dispositivos que dariam à Câmara poder de autorizar previamente a abertura de
inquéritos contra deputados, além da possibilidade de sustar investigações já
em curso. Essa versão, apelidada de “texto B” por alguns líderes, chegou a ser
ventilada com previsão de voto secreto, uma manobra que ampliou ainda mais as
críticas. A ideia incomodou parte da base governista e também aliados do
governo no PSD, que enxergaram nesse movimento uma tentativa de o Legislativo
assumir atribuições próprias do Judiciário.
O ponto
do voto secreto gerou especial preocupação. O centrão avaliou a possibilidade
de votar a PEC sem divulgação nominal, o que politicamente reduziria o custo
para os parlamentares que apoiassem a blindagem. Mas, regimentalmente e
juridicamente, trata-se de um expediente de alto risco: a Constituição exige
votação em dois turnos com quórum qualificado de 3/5, e a praxe da Câmara é a
votação nominal em painel. Qualquer tentativa de sigilo seria alvo imediato de
contestação e poderia resultar em judicialização. Nos bastidores, esse cenário
foi descrito como “ponto de alerta máximo”.
De
acordo com avaliações feitas durante a reunião, esse mecanismo serviria como
moeda de troca para viabilizar, em paralelo, a aprovação da PEC do fim do foro
privilegiado, blindando parlamentares da primeira instância. Para alguns, o
centrão buscava construir uma solução dupla: limitar investigações no âmbito da
Câmara e, ao mesmo tempo, eliminar o foro para que processos ficassem
concentrados em tribunais superiores, reduzindo riscos na Justiça comum.
A
deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) classificou o adiamento como uma vitória da
democracia. Ela destacou que “os elementos de mérito levantados no colégio de
líderes e que havia insistência para que fossem incluídos eram muito graves,
incluindo uma orientação de que inquéritos que envolvessem parlamentares só
poderiam ser abertos com autorização da Câmara ou, numa opção de texto B,
poderiam ser sustados pela própria Câmara, tudo isso com voto secreto”. Para a
deputada, o que estava em jogo não era apenas a garantia de prerrogativas
parlamentares, mas uma tentativa de o Legislativo se autointitular Judiciário e
criar uma blindagem institucional.
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PEC da Impunidade: ‘salvo-conduto institucional’
A
condução atrapalhada também chamou atenção de partidos que não costumam se
alinhar em temas institucionais. O PSD, por exemplo, apresentou divergências e
se somou ao PT e às legendas de esquerda na crítica ao texto e à forma de
tramitação. Membros da base governista avaliam que Hugo Motta, presidente da
Câmara, tentou repetir a estratégia de Arthur Lira com a PEC do voto impresso
em 2021: pautar o tema mesmo sem votos para aprovar, apenas para encerrar a
pressão. Mas a forma como o assunto foi retirado, sem uma definição ou uma
votação simbólica, foi vista como ainda mais desorganizada, mantendo o tema
vivo no radar e alimentando novas pressões.
Relatos
de bastidores indicam que Lafayette de Andrada está incomodado com a
interferência do centrão no texto. O relator teria sinalizado insatisfação com
a tentativa de empurrar mudanças que poderiam transformar a PEC em uma espécie
de salvo-conduto institucional. Essa resistência ajuda a explicar por que não
houve parecer formalizado até o final da noite.
Na
oposição, lideranças já se articulam para recolocar a proposta em discussão. Há
expectativa de que o colégio de líderes da próxima semana avalie novamente o
tema e decida se ele volta ao plenário e em qual formato. O cálculo de parte
dos oposicionistas é de que, mesmo sem consenso, o assunto precisa ser pautado
para não desaparecer da agenda.
Até lá,
o relator deverá apresentar uma versão final do texto. A insatisfação com as
exigências do centrão e a resistência de setores da base, somadas à crítica de
partidos como PT e PSD, indicam que um consenso ainda está distante. O
episódio, no entanto, reforçou a percepção de que a proposta divide o Congresso
e expõe contradições entre bancadas que, em outros momentos, costumam caminhar
juntas em pautas de interesse corporativo.
• Juristas apontam risco de
inconstitucionalidade em pacote da impunidade
O
chamado “pacote da impunidade”, que reúne a PEC das Prerrogativas e a PEC do
fim do foro privilegiado, voltou à pauta da Câmara nesta quarta-feira (27) em
meio a fortes críticas de juristas e especialistas em direito constitucional.
O
conjunto de propostas é visto como uma tentativa de ampliar proteções a
parlamentares e reduzir o alcance de investigações, em um momento em que cresce
a pressão da oposição pela anistia de envolvidos nos atos de 8 de janeiro. O
debate reacende antigas discussões sobre a efetividade do controle do poder
político e a necessidade de preservação das cláusulas pétreas da Constituição.
A
advogada constitucionalista Damares Medina, ao analisar a proposta, apontou que
a reintrodução de filtros políticos prévios para investigações contra
parlamentares pode significar um retrocesso institucional. Ela lembra que esse
mecanismo foi abolido pela Emenda Constitucional 35 de 2001 justamente para
fortalecer a autonomia do Ministério Público e garantir maior transparência na
responsabilização de autoridades.
“Eu não
disse que é inconstitucional. À luz do princípio do não retrocesso pode ter uma
interpretação de que retroceder aos marcos originários seria um retrocesso
social, o Ministério Público teria restringido a sua autonomia e poderia ser
declarado inconstitucional”, afirmou. A avaliação dela ecoa entre outros
constitucionalistas que veem a possibilidade de a medida esbarrar no Supremo
Tribunal Federal caso seja aprovada.
O
jurista Pedro Serrano, por sua vez, chama atenção para um aspecto específico
considerado ainda mais grave: a ausência de menção aos crimes contra a
democracia entre as exceções que permitiriam responsabilizar parlamentares.
Segundo ele, ampliar a imunidade para abranger esses delitos configuraria uma
afronta direta às cláusulas pétreas da Constituição, que protegem a
inviolabilidade das eleições livres e periódicas.
“Não se
pode admitir emendas constitucionais que subtraiam do Estado a capacidade de
defender a democracia, mesmo diante de crimes cometidos por parlamentares
contra ela. Ampliar a imunidade parlamentar para abranger crimes contra a
democracia parece-me inconstitucional, por violar cláusulas pétreas que
garantem a inviolabilidade das eleições livres e periódicas”, disse Serrano. A
advertência traz à tona o risco de o Congresso criar um escudo que fragilize os
mecanismos institucionais de proteção ao regime democrático.
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Discussão sobre o pacote
As
propostas em tramitação avançam em regime de prioridade. A PEC das
Prerrogativas, relatada pelo deputado Lafayette Andrada (Republicanos-MG),
estabelece limites mais rígidos para a atuação do Judiciário contra
parlamentares. Entre os pontos estão a vedação ao afastamento judicial de
mandato, a necessidade de que medidas cautelares sejam confirmadas pelo
plenário do Supremo Tribunal Federal e a imposição de regras adicionais para
buscas e apreensões, incluindo a participação da Polícia Legislativa. Essa configuração,
segundo críticos, cria uma barreira quase intransponível para a
responsabilização de congressistas, reeditando uma lógica de blindagem política
que já demonstrou ser ineficaz para coibir abusos.
Já a
PEC do fim do foro, que tramita desde 2017 e volta agora ao centro do debate,
propõe transferir para a primeira instância o julgamento de crimes comuns
cometidos por deputados e senadores. Embora em tese essa mudança represente
maior aproximação dos parlamentares ao cidadão comum, há receio de que o
desenho final crie insegurança jurídica e conflitos de competência, além de
abrir brechas para manobras protelatórias.
A
discussão sobre o foro especial sempre dividiu opiniões: parte dos analistas
defende sua manutenção como forma de proteger o mandato contra perseguições,
enquanto outros afirmam que o foro se tornou sinônimo de impunidade.
Paralelamente,
a oposição pressiona pela votação do projeto de anistia aos envolvidos nos atos
golpistas de 8 de janeiro, considerado parte do mesmo pacote político. O texto
prevê perdão penal, cancelamento de multas e manutenção dos direitos políticos
de condenados, o que poderia beneficiar centenas de investigados e condenados
em processos já em andamento no STF. Essa tentativa de incluir a anistia no
pacote amplia as críticas de que a movimentação legislativa busca, em última
instância, criar um ambiente de indulgência institucional.
A
articulação para aprovar o conjunto de medidas envolve o PL e partidos do
Centrão, que enxergam no pacote a oportunidade de fortalecer suas bancadas
diante de investigações em curso. Já setores da base governista resistem às
mudanças e têm alertado para o impacto negativo que a aprovação pode gerar na
imagem do Congresso perante a opinião pública.
Para
críticos, o chamado “pacote da impunidade” não apenas ameaça reverter avanços
democráticos conquistados desde 2001, mas sinaliza a tentativa explícita de
transformar o Parlamento em um refúgio contra a lei, criando um sistema de
privilégios incompatível com o Estado de Direito.
Fonte:
ICL Notícias

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