quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Teologia da prosperidade: como igrejas neopentecostais se proliferam em Portugal e Alemanha

Em situações de crise, quando se extremam os sentimentos profundos, a humanidade revela a sua face verdadeira, normalmente oculta sob o disfarce social ou pelo verniz cultural. E a face revelada é a de uma espécie dominada pelo medo insano, preconceitos e na maioria das vezes pela ignorância ontológica. Durante a pandemia de coronavírus, os sacerdotes na Grécia afirmaram, com o testemunho de Deus, que a comunhão, onde todos os fiéis provam da mesma colher, não transmitia o vírus da Covid-19. O Santo Sínodo grego emitiu um comunicado em que afirmava que a comunhão é com o corpo de Deus e o corpo de Deus não tem vírus. O Bispo Serafeim, do Pireu, disse que as pessoas sem fé, elas sim, corriam mesmo o risco de se infectar. O ex-vice-ministro da coligação de esquerda Syriza, Pavlos Polakis, contradisse afirmando que “não se pode deixar que as pessoas bebam da mesma colher e dizer-lhes que não há perigo – isto é talibanismo cristão”.

No Brasil, as igrejas neopentecostais celebram seus cultos para recolher dízimos. Um oportunista que se autointitula pastor, de nome Silas Malafaia, e o notório Edir Macedo, asseguram que os fiéis que pagam dízimo não devem se preocupar com nenhuma enfermidade porque estão protegidos pelo nome de Jesus e pela fé.

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<><> A instrumentalização da fé

Há, em todos os países, entre eles os da culta Europa, a propagação de crenças para o enfrentamento dos fantasmas da dor, da solidão e da pobreza. Há o apego à convicção de que Deus é fundamental na luta contra os males do mundo e a religião, mais uma vez, se prova inimiga dos homens. Pois as igrejas oportunistas alimentam-se do medo e da insegurança dos seus seguidores. E neles alicerçam vantagens financeiras e suas bases de poder político.

As igrejas evangélicas cresceram nos países europeus, especialmente a partir da diáspora latino-americana, com destaque para o Brasil. Este processo tornou-se mais visível desde a década de 1980, quando as primeiras igrejas brasileiras, como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), se instalaram em nações como Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e Alemanha. O fenômeno é impulsionado tanto pela migração de fiéis quanto por estratégias missionárias adotadas por essas seitas.

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As igrejas neopentecostais desafiam e diversificam o tradicional predomínio do catolicismo e dos protestantismos históricos. Difundem práticas e doutrinas baseadas em “milagres”, cura divina, exorcismos e, sobretudo, na chamada “teologia da prosperidade”.

A “teologia da prosperidade” é a doutrina teológica neopentecostal que defende que a fé em Deus, expressa em práticas como doações financeiras, orações e confissão positiva, leva à obtenção de prosperidade material, saúde e sucesso na vida. Segundo essa teologia, a abundância material é vista como uma bênção merecida e uma manifestação da fé verdadeira, enquanto a pobreza, doença e sofrimento são interpretados como sinais de falta de fé ou castigos divinos.

Essa teologia baseia-se na ideia de que há uma “lei da reciprocidade” ou uma espécie de “troca” entre o fiel e Deus: se o fiel for fiel e generoso, Deus é “obrigado” a recompensá-lo com prosperidade.

<><> Portugal

Apesar do discurso de universalidade, muitas dessas igrejas permanecem associadas à comunidade imigrante — especialmente de origem brasileira, africana e latino-americana — o que contribui para sua rápida expansão nesses nichos, mas limita parcialmente sua inserção na população nativa.

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Em Portugal, o neopentecostalismo importado do Brasil já desenvolveu características particulares, constituindo um fenômeno local com práticas adaptadas ao contexto português, chamado “neopentecostalismo português”.

As igrejas oferecem uma rede de apoio simbólico, material e social para imigrantes, facilitando a integração desses grupos e promovendo vínculos e identidades coletivas. Sua penetração no debate público e político europeu, no entanto, ainda é restrita, diferentemente do que ocorre na América Latina, onde o impacto político é maior.

A Europa, tradicional exportadora de doutrinas religiosas, tornou-se um alvo de “missão reversa”, sendo evangelizada por grupos vindos do Sul Global, especialmente do Brasil.

Em resumo, o principal impacto das igrejas neopentecostais na Europa é observado no alargamento do “campo simbólico-religioso”, fortalecimento de comunidades de imigrantes e na introdução de novas práticas religiosas e sociais, com adaptações contextuais que refletem tanto a origem quanto os desafios locais dessas populações.

<><> Alemanha

As igrejas neopentecostais tendem a crescer onde exista carência e sentimentos de abandono. Guiadas pelos cultos originários do Brasil, mas que beberam na fonte estadunidense e lideradas pela Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, elas estão a conquistar a Europa sob o lema de que o continente se tornou excessivamente materialista e é preciso recristianizar a Europa. Outras igrejas com presença crescente identificam-se sugestivamente com os nomes de Deus é Amor, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus e Internacional da Graça de Deus, esta última pertencente a R.R. Soares, concorrente de Edir Macedo. Seu programa “Show da Fé”, produzido no Brasil e dublado em alemão, de uma hora de duração, sem interrupções comerciais, faz parte da programação, três vezes por semana, da Rhein Main TV – uma emissora regional emitida por satélite para toda a Europa. O diretor da estação, Stephan Seeländer, diz que está satisfeito com a audiência do programa, que tem tendência de crescimento. Os pedidos de doação são de 30, 50 e 100 euros.

Depois de uma tentativa fracassada em Stuttgart, a Universal de Edir Macedo abriu sede em Berlim, onde há grande número de brasileiros. Hoje, tem templos em Munique, Hamburgo, Colônia, Würzburg e está de volta a Stuttgart. Os cultos são diários e temáticos: no domingo, as orações são dirigidas ao “fortalecimento e reavivamento da fé”, na segunda-feira, “pela prosperidade financeira” e, na terça-feira, é o “dia do descarrego”.

A Assembleia de Deus visa os imigrantes brasileiros. Há 15 anos no país, o presidente Everaldo Lopes é um dos mais antigos pastores evangélicos do Brasil a pregar na Alemanha. Ele e seu irmão Dionísio encarregam-se dos cultos em Mülldorf, Regensburg, Landshut, Mannheim e Ingolstadt, onde fica a atual sede da Assembleia – uma sala alugada onde cabem 200 pessoas sentadas.

Há um fluxo de pastores missionários vindos do Brasil que trabalham prioritariamente as comunidades de imigrantes latinos, africanos e orientais. Pessoas carentes, solitárias num país estrangeiro.

<><> A salvação pelo divino

Nas igrejas improvisadas, ouvem-se palavras de invocação de divindades estranhas e, acima de tudo, o medo. Demonstrações de solidariedade procuram afirmar-se para enfrentar o medo, mas o medo e os sentimentos de abandono acabam por dominar a frágil natureza humana.

No Irã, 300 pessoas morreram após beberem metanol por acreditarem que o álcool as protegeria contra as doenças. Em todo o mundo as pessoas procuram a salvação pela forte crença no divino.

“Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão”. A frase é do poeta alemão Friedrich Schiller.

•        O pastor Malafaia e o Papa Francisco: duas justiças em uma República em crise

Um espectro ronda o Brasil, e não é o do Comunismo, conforme a predição de Karl Marx (1818 – 1883) para a Europa — em seu “Manifesto Comunista”, de 1848 — e a obsessão de muitos brasileiros que sequer sabem o que significa o termo “mais-valia”.

A cineasta Petra Costa (1983), em seu documentário “Apocalipse nos Trópicos”, capturou com suas objetivas não o espectro de Marx, mas o avanço real de um poder teológico-político que os indicadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mapeiam desde os anos 1980: o crescimento vertiginoso do evangelicalismo. Mais do que um fenômeno demográfico, o que se revela é a ascensão de figuras como o pastor Silas Malafaia (1958), a voz mais agressiva do bolsonarismo. Sua recente inclusão no rol de investigados da Polícia Federal por atentar contra o Estado de Direito não é um fato isolado, mas a consequência lógica de um projeto de poder que visa refundar o Brasil à sua imagem e semelhança.

O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917 – 2012), em “A Era dos Extremos”, já havia diagnosticado este cenário: o colapso das grandes utopias seculares no século 20 deixou um vácuo de sentido. No Brasil, este vácuo foi pragmaticamente preenchido pela promessa de ganhos imediatos na Terra – a chamada “Teologia da Prosperidade”, que líderes como Silas Malafaia manejam com notável eficácia para uma massa desassistida pelo Estado. Em vez de esperar por uma revolução distante, oferece-se a bênção material aqui e agora, promovendo um poderoso reencantamento do mundo em chave capitalista e individual.

A nova paisagem religiosa, mapeada pelo IBGE desde os anos 1980, revela uma revolução demográfica sem precedentes. Naquela década, o Brasil contava com 90% de católicos contra 6% de evangélicos. Os dados de 2022, porém, atestam não uma transição gradual, mas uma avalanche de conversões que desafia os sociólogos: os católicos decresceram para 56,7% da população, enquanto os evangélicos saltaram para 26,9%.

Esta fé não se traduz numa expressão passiva, que espera na imanência sua salvação eterna. Seus conversos desejam a instalação do Reino de Deus na Terra, aqui e agora, e veem na política nacional hodierna o principal instrumento de operação para alcançar tal intuito.

A hegemonia católica ruiu precisamente no período da redemocratização. O passaporte para a relevância política, antes chancelado por outras instituições, passou a exigir o selo de aprovação de uma nova força. O marco desta mudança é indelével: se em 1985 Fernando Henrique Cardoso (1931) pôde se esquivar sobre sua fé e ainda assim governar o país, em 2002 a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (1945) já dependia de alianças explícitas com este novo eleitorado. Foi nesse momento que, a partir da Zona Norte do Rio de Janeiro, emergiu a figura que melhor encarnaria a face pública deste poder: Silas Malafaia.

E, por uma dessas ironias da História, no exato momento em que o poder de Malafaia se consolidava em Brasília, o pontificado intelectual de Bento XVI (2005 – 2013) dava lugar, em Roma, à agilidade pastoral do jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio: o Papa Francisco (2013 – 2025). É neste ponto que se cristalizam os dois projetos em disputa: de um lado, um cristianismo que busca a conquista do Estado pela lógica schmittiana do amigo-inimigo; de outro, uma fé que busca interpelar o poder a partir da defesa dos excluídos. Este ensaio se debruçará sobre esta dualidade que, hoje, disputa a consciência da República.

<><> A anatomia do poder

O mundo intelectual de Malafaia é simples; não oferece perigo. O que corta como lâmina é sua língua: uma retórica hipnótica, repetitiva e estruturalmente eficiente. Ele parte de uma premissa schmittiana – definir o inimigo – para em seguida armar os exércitos que lutarão ao seu lado. Arrogando para si a voz de todo o “povo evangélico”, ele mobiliza o termo bíblico “nação” para definir sua tribo: a heteronormativa, branca e, acima de tudo, fiel à sua liderança.

Embora, com uma boa dose de probabilidade, nunca tenha lido o jurista alemão Carl Schmitt (1888 – 1985), ele opera por sua lógica filosófico-política. Cria uma espécie de “estado de exceção” schmittiano. Suspende, pelo discurso, as regras do sistema democrático brasileiro. Elege como inimigo o Ministro do Supremo Alexandre de Moraes (1968), o comunismo e o Presidente Lula: todos eles são anulados, não há espaço para negociação. A execução de sua ópera bufa resulta numa convocação para a guerra total contra os dois maiores nomes da República, e contra uma ideia difusa. A operação intelectual que utiliza, repito, é simples, mas a retórica inflamada e a energia para proclamá-la são eficientes. O gestual corta o ar enquanto fala, perdigotos inundam o microfone, a língua salta da boca, e uma multidão na Av. Paulista pula e grita como se estivesse numa micareta de Jesus, onde a guitarrada vem da boca do homem Silas.

Malafaia se converte então num jesuíta canhestro, sem Exercícios Espirituais, sem Constituição, sem ardor Missionário legítimo, que o levaria às costas da Indonésia para pregar, se necessário, e, o mais importante, sem o quarto voto feito pelos jesuítas ao Papa, aquele da obediência irrestrita ao pontífice que a maioria das ordens católicas não o faz. Malafaia faz o Quarto Voto unicamente a si mesmo, e sua lealdade flutua conforme as circunstâncias do poder: ontem com o Lula de 2002, hoje com o bolsonarismo, amanhã com quem detiver as chaves do cofre e do palácio.

O contraste com o jesuíta de formação, o Papa Francisco, é absoluto. Se o corpo de Malafaia é um espetáculo de agressão provinciana, o corpo ferido do pontífice foi seu próprio grito silencioso. Seus gestos foram medidos não por fraqueza, mas por necessidade: não falou para a Avenida Paulista, mas para os quatro cantos de um globo fraturado. O homem que se vestiu de branco se opõe ao homem em mangas de camisa amarelas, que faz do patriotismo, como sentenciou Samuel Johnson (1709 – 1784), o seu último refúgio.

Por natureza e projeto, Francisco não pôde operar sob a lógica schmittiana. Seu método foi outro, e pode ser descrito pelo conceito foucaultiano de parrhesia: a coragem de dizer a verdade ao poder, arriscando-se no processo. Seu capital político não foi uma denominação religiosa, mas a autoridade moral para interpelar o sistema financeiro, a indústria bélica e a indiferença global. Não buscou tomar o poder, mas desnudá-lo.

A Polícia Federal, portanto, não investiga um pastor, mas um projeto de poder que só serve a si mesmo e que jurou fidelidade à exceção como regra. Este projeto está fadado ao fracasso, não por paralelos históricos complexos, mas por uma lógica imanente: a exceção permanente que Malafaia propõe exige a criação constante de inimigos, até que a própria República se torne o inimigo final. Nesse ponto, ou o projeto devora o Estado, ou o Estado, por sobrevivência, age para conter o projeto. É o que assistimos agora.

Em meio ao rio caudaloso e hostil da política contemporânea, Francisco se esforçou para construir uma ponte, ciente de que ela é a única via para um futuro que não nos anule, mas nos enriqueça. O projeto de Malafaia, por outro lado, dinamita todas as pontes em nome da pureza de sua cidadela. Para o Brasil, a escolha se impõe com urgência: ou a travessia arriscada rumo ao outro, ou a segurança do bunker, entrincheirados em uma batalha inglória e permanente contra nós mesmos.

 

Fonte: Diálogos do Sul Global

 

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