Teologia
da prosperidade: como igrejas neopentecostais se proliferam em Portugal e
Alemanha
Em
situações de crise, quando se extremam os sentimentos profundos, a humanidade
revela a sua face verdadeira, normalmente oculta sob o disfarce social ou pelo
verniz cultural. E a face revelada é a de uma espécie dominada pelo medo
insano, preconceitos e na maioria das vezes pela ignorância ontológica. Durante
a pandemia de coronavírus, os sacerdotes na Grécia afirmaram, com o testemunho
de Deus, que a comunhão, onde todos os fiéis provam da mesma colher, não
transmitia o vírus da Covid-19. O Santo Sínodo grego emitiu um comunicado em
que afirmava que a comunhão é com o corpo de Deus e o corpo de Deus não tem
vírus. O Bispo Serafeim, do Pireu, disse que as pessoas sem fé, elas sim,
corriam mesmo o risco de se infectar. O ex-vice-ministro da coligação de esquerda
Syriza, Pavlos Polakis, contradisse afirmando que “não se pode deixar que as
pessoas bebam da mesma colher e dizer-lhes que não há perigo – isto é
talibanismo cristão”.
No
Brasil, as igrejas neopentecostais celebram seus cultos para recolher dízimos.
Um oportunista que se autointitula pastor, de nome Silas Malafaia, e o notório
Edir Macedo, asseguram que os fiéis que pagam dízimo não devem se preocupar com
nenhuma enfermidade porque estão protegidos pelo nome de Jesus e pela fé.
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A instrumentalização da fé
Há, em
todos os países, entre eles os da culta Europa, a propagação de crenças para o
enfrentamento dos fantasmas da dor, da solidão e da pobreza. Há o apego à
convicção de que Deus é fundamental na luta contra os males do mundo e a
religião, mais uma vez, se prova inimiga dos homens. Pois as igrejas
oportunistas alimentam-se do medo e da insegurança dos seus seguidores. E neles
alicerçam vantagens financeiras e suas bases de poder político.
As
igrejas evangélicas cresceram nos países europeus, especialmente a partir da
diáspora latino-americana, com destaque para o Brasil. Este processo tornou-se
mais visível desde a década de 1980, quando as primeiras igrejas brasileiras,
como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), se instalaram em nações como
Portugal, Espanha, Itália, Irlanda e Alemanha. O fenômeno é impulsionado tanto
pela migração de fiéis quanto por estratégias missionárias adotadas por essas
seitas.
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As
igrejas neopentecostais desafiam e diversificam o tradicional predomínio do
catolicismo e dos protestantismos históricos. Difundem práticas e doutrinas
baseadas em “milagres”, cura divina, exorcismos e, sobretudo, na chamada
“teologia da prosperidade”.
A
“teologia da prosperidade” é a doutrina teológica neopentecostal que defende
que a fé em Deus, expressa em práticas como doações financeiras, orações e
confissão positiva, leva à obtenção de prosperidade material, saúde e sucesso
na vida. Segundo essa teologia, a abundância material é vista como uma bênção
merecida e uma manifestação da fé verdadeira, enquanto a pobreza, doença e
sofrimento são interpretados como sinais de falta de fé ou castigos divinos.
Essa
teologia baseia-se na ideia de que há uma “lei da reciprocidade” ou uma espécie
de “troca” entre o fiel e Deus: se o fiel for fiel e generoso, Deus é
“obrigado” a recompensá-lo com prosperidade.
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Portugal
Apesar
do discurso de universalidade, muitas dessas igrejas permanecem associadas à
comunidade imigrante — especialmente de origem brasileira, africana e
latino-americana — o que contribui para sua rápida expansão nesses nichos, mas
limita parcialmente sua inserção na população nativa.
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Em
Portugal, o neopentecostalismo importado do Brasil já desenvolveu
características particulares, constituindo um fenômeno local com práticas
adaptadas ao contexto português, chamado “neopentecostalismo português”.
As
igrejas oferecem uma rede de apoio simbólico, material e social para
imigrantes, facilitando a integração desses grupos e promovendo vínculos e
identidades coletivas. Sua penetração no debate público e político europeu, no
entanto, ainda é restrita, diferentemente do que ocorre na América Latina, onde
o impacto político é maior.
A
Europa, tradicional exportadora de doutrinas religiosas, tornou-se um alvo de
“missão reversa”, sendo evangelizada por grupos vindos do Sul Global,
especialmente do Brasil.
Em
resumo, o principal impacto das igrejas neopentecostais na Europa é observado
no alargamento do “campo simbólico-religioso”, fortalecimento de comunidades de
imigrantes e na introdução de novas práticas religiosas e sociais, com
adaptações contextuais que refletem tanto a origem quanto os desafios locais
dessas populações.
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Alemanha
As
igrejas neopentecostais tendem a crescer onde exista carência e sentimentos de
abandono. Guiadas pelos cultos originários do Brasil, mas que beberam na fonte
estadunidense e lideradas pela Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir
Macedo, elas estão a conquistar a Europa sob o lema de que o continente se
tornou excessivamente materialista e é preciso recristianizar a Europa. Outras
igrejas com presença crescente identificam-se sugestivamente com os nomes de
Deus é Amor, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus e Internacional da
Graça de Deus, esta última pertencente a R.R. Soares, concorrente de Edir
Macedo. Seu programa “Show da Fé”, produzido no Brasil e dublado em alemão, de
uma hora de duração, sem interrupções comerciais, faz parte da programação,
três vezes por semana, da Rhein Main TV – uma emissora regional emitida por
satélite para toda a Europa. O diretor da estação, Stephan Seeländer, diz que
está satisfeito com a audiência do programa, que tem tendência de crescimento.
Os pedidos de doação são de 30, 50 e 100 euros.
Depois
de uma tentativa fracassada em Stuttgart, a Universal de Edir Macedo abriu sede
em Berlim, onde há grande número de brasileiros. Hoje, tem templos em Munique,
Hamburgo, Colônia, Würzburg e está de volta a Stuttgart. Os cultos são diários
e temáticos: no domingo, as orações são dirigidas ao “fortalecimento e
reavivamento da fé”, na segunda-feira, “pela prosperidade financeira” e, na
terça-feira, é o “dia do descarrego”.
A
Assembleia de Deus visa os imigrantes brasileiros. Há 15 anos no país, o
presidente Everaldo Lopes é um dos mais antigos pastores evangélicos do Brasil
a pregar na Alemanha. Ele e seu irmão Dionísio encarregam-se dos cultos em
Mülldorf, Regensburg, Landshut, Mannheim e Ingolstadt, onde fica a atual sede
da Assembleia – uma sala alugada onde cabem 200 pessoas sentadas.
Há um
fluxo de pastores missionários vindos do Brasil que trabalham prioritariamente
as comunidades de imigrantes latinos, africanos e orientais. Pessoas carentes,
solitárias num país estrangeiro.
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A salvação pelo divino
Nas
igrejas improvisadas, ouvem-se palavras de invocação de divindades estranhas e,
acima de tudo, o medo. Demonstrações de solidariedade procuram afirmar-se para
enfrentar o medo, mas o medo e os sentimentos de abandono acabam por dominar a
frágil natureza humana.
No Irã,
300 pessoas morreram após beberem metanol por acreditarem que o álcool as
protegeria contra as doenças. Em todo o mundo as pessoas procuram a salvação
pela forte crença no divino.
“Contra
a estupidez os próprios deuses lutam em vão”. A frase é do poeta alemão
Friedrich Schiller.
• O pastor Malafaia e o Papa Francisco:
duas justiças em uma República em crise
Um
espectro ronda o Brasil, e não é o do Comunismo, conforme a predição de Karl
Marx (1818 – 1883) para a Europa — em seu “Manifesto Comunista”, de 1848 — e a
obsessão de muitos brasileiros que sequer sabem o que significa o termo
“mais-valia”.
A
cineasta Petra Costa (1983), em seu documentário “Apocalipse nos Trópicos”,
capturou com suas objetivas não o espectro de Marx, mas o avanço real de um
poder teológico-político que os indicadores do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mapeiam desde os anos 1980: o crescimento
vertiginoso do evangelicalismo. Mais do que um fenômeno demográfico, o que se
revela é a ascensão de figuras como o pastor Silas Malafaia (1958), a voz mais
agressiva do bolsonarismo. Sua recente inclusão no rol de investigados da
Polícia Federal por atentar contra o Estado de Direito não é um fato isolado,
mas a consequência lógica de um projeto de poder que visa refundar o Brasil à
sua imagem e semelhança.
O
historiador britânico Eric Hobsbawm (1917 – 2012), em “A Era dos Extremos”, já
havia diagnosticado este cenário: o colapso das grandes utopias seculares no
século 20 deixou um vácuo de sentido. No Brasil, este vácuo foi pragmaticamente
preenchido pela promessa de ganhos imediatos na Terra – a chamada “Teologia da
Prosperidade”, que líderes como Silas Malafaia manejam com notável eficácia
para uma massa desassistida pelo Estado. Em vez de esperar por uma revolução
distante, oferece-se a bênção material aqui e agora, promovendo um poderoso
reencantamento do mundo em chave capitalista e individual.
A nova
paisagem religiosa, mapeada pelo IBGE desde os anos 1980, revela uma revolução
demográfica sem precedentes. Naquela década, o Brasil contava com 90% de
católicos contra 6% de evangélicos. Os dados de 2022, porém, atestam não uma
transição gradual, mas uma avalanche de conversões que desafia os sociólogos:
os católicos decresceram para 56,7% da população, enquanto os evangélicos
saltaram para 26,9%.
Esta fé
não se traduz numa expressão passiva, que espera na imanência sua salvação
eterna. Seus conversos desejam a instalação do Reino de Deus na Terra, aqui e
agora, e veem na política nacional hodierna o principal instrumento de operação
para alcançar tal intuito.
A
hegemonia católica ruiu precisamente no período da redemocratização. O
passaporte para a relevância política, antes chancelado por outras
instituições, passou a exigir o selo de aprovação de uma nova força. O marco
desta mudança é indelével: se em 1985 Fernando Henrique Cardoso (1931) pôde se
esquivar sobre sua fé e ainda assim governar o país, em 2002 a eleição de Luiz
Inácio Lula da Silva (1945) já dependia de alianças explícitas com este novo
eleitorado. Foi nesse momento que, a partir da Zona Norte do Rio de Janeiro,
emergiu a figura que melhor encarnaria a face pública deste poder: Silas
Malafaia.
E, por
uma dessas ironias da História, no exato momento em que o poder de Malafaia se
consolidava em Brasília, o pontificado intelectual de Bento XVI (2005 – 2013)
dava lugar, em Roma, à agilidade pastoral do jesuíta argentino Jorge Mario
Bergoglio: o Papa Francisco (2013 – 2025). É neste ponto que se cristalizam os
dois projetos em disputa: de um lado, um cristianismo que busca a conquista do
Estado pela lógica schmittiana do amigo-inimigo; de outro, uma fé que busca
interpelar o poder a partir da defesa dos excluídos. Este ensaio se debruçará
sobre esta dualidade que, hoje, disputa a consciência da República.
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A anatomia do poder
O mundo
intelectual de Malafaia é simples; não oferece perigo. O que corta como lâmina
é sua língua: uma retórica hipnótica, repetitiva e estruturalmente eficiente.
Ele parte de uma premissa schmittiana – definir o inimigo – para em seguida
armar os exércitos que lutarão ao seu lado. Arrogando para si a voz de todo o
“povo evangélico”, ele mobiliza o termo bíblico “nação” para definir sua tribo:
a heteronormativa, branca e, acima de tudo, fiel à sua liderança.
Embora,
com uma boa dose de probabilidade, nunca tenha lido o jurista alemão Carl
Schmitt (1888 – 1985), ele opera por sua lógica filosófico-política. Cria uma
espécie de “estado de exceção” schmittiano. Suspende, pelo discurso, as regras
do sistema democrático brasileiro. Elege como inimigo o Ministro do Supremo
Alexandre de Moraes (1968), o comunismo e o Presidente Lula: todos eles são
anulados, não há espaço para negociação. A execução de sua ópera bufa resulta
numa convocação para a guerra total contra os dois maiores nomes da República,
e contra uma ideia difusa. A operação intelectual que utiliza, repito, é
simples, mas a retórica inflamada e a energia para proclamá-la são eficientes.
O gestual corta o ar enquanto fala, perdigotos inundam o microfone, a língua
salta da boca, e uma multidão na Av. Paulista pula e grita como se estivesse
numa micareta de Jesus, onde a guitarrada vem da boca do homem Silas.
Malafaia
se converte então num jesuíta canhestro, sem Exercícios Espirituais, sem
Constituição, sem ardor Missionário legítimo, que o levaria às costas da
Indonésia para pregar, se necessário, e, o mais importante, sem o quarto voto
feito pelos jesuítas ao Papa, aquele da obediência irrestrita ao pontífice que
a maioria das ordens católicas não o faz. Malafaia faz o Quarto Voto unicamente
a si mesmo, e sua lealdade flutua conforme as circunstâncias do poder: ontem
com o Lula de 2002, hoje com o bolsonarismo, amanhã com quem detiver as chaves
do cofre e do palácio.
O
contraste com o jesuíta de formação, o Papa Francisco, é absoluto. Se o corpo
de Malafaia é um espetáculo de agressão provinciana, o corpo ferido do
pontífice foi seu próprio grito silencioso. Seus gestos foram medidos não por
fraqueza, mas por necessidade: não falou para a Avenida Paulista, mas para os
quatro cantos de um globo fraturado. O homem que se vestiu de branco se opõe ao
homem em mangas de camisa amarelas, que faz do patriotismo, como sentenciou
Samuel Johnson (1709 – 1784), o seu último refúgio.
Por
natureza e projeto, Francisco não pôde operar sob a lógica schmittiana. Seu
método foi outro, e pode ser descrito pelo conceito foucaultiano de parrhesia:
a coragem de dizer a verdade ao poder, arriscando-se no processo. Seu capital
político não foi uma denominação religiosa, mas a autoridade moral para
interpelar o sistema financeiro, a indústria bélica e a indiferença global. Não
buscou tomar o poder, mas desnudá-lo.
A
Polícia Federal, portanto, não investiga um pastor, mas um projeto de poder que
só serve a si mesmo e que jurou fidelidade à exceção como regra. Este projeto
está fadado ao fracasso, não por paralelos históricos complexos, mas por uma
lógica imanente: a exceção permanente que Malafaia propõe exige a criação
constante de inimigos, até que a própria República se torne o inimigo final.
Nesse ponto, ou o projeto devora o Estado, ou o Estado, por sobrevivência, age
para conter o projeto. É o que assistimos agora.
Em meio
ao rio caudaloso e hostil da política contemporânea, Francisco se esforçou para
construir uma ponte, ciente de que ela é a única via para um futuro que não nos
anule, mas nos enriqueça. O projeto de Malafaia, por outro lado, dinamita todas
as pontes em nome da pureza de sua cidadela. Para o Brasil, a escolha se impõe
com urgência: ou a travessia arriscada rumo ao outro, ou a segurança do bunker,
entrincheirados em uma batalha inglória e permanente contra nós mesmos.
Fonte:
Diálogos do Sul Global

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