Economia
e democracia num mundo em crise
Quero,
em primeiro lugar, agradecer o convite que me foi feito para estar, em tão
honrosa companhia, na mesa de encerramento deste evento.
Seus
organizadores, que, com justa razão comemoram os cinco anos de existência do
Made – este Centro de Pesquisas em Macroeconomia das Desigualdades que tão
milagrosamente nasce e sobrevive numa escola tão conservadora como esta – me
pedem que fale sobre as “perspectivas da economia e da democracia num mundo em
crise”.
Mas,
neste mundo em crise, acossado por ameaças e flagelos de natureza vária, do
imponderável da inteligência artificial à anomia social, do imperialismo
explícito ao inaceitável genocídio, da catástrofe climática ao perigo nuclear,
não é possível falar em democracia sem falar simultaneamente em seu antípoda, o
fascismo, ou neofascismo, e seu cortejo de crenças e práticas autoritárias que
hoje nos assombra.
E que,
no entanto, como mostra o filósofo alemão Theodor Adorno, não é uma deformação
que possa ser depurada de um organismo saudável; é um traço latente e profundo
da modernidade burguesa, e isso tem tudo a ver com economia, e com
desigualdade.
Em seus
escritos e intervenções dos anos 1960 do século passado, o conhecido filósofo
ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas,
permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções
extrassistêmicas. Em palestra de 1967, Theodor Adorno fala, em Viena, a convite
de estudantes austríacos, preocupados que estavam então com o crescimento e
fortalecimento, na Alemanha, no seio de uma democracia aparentemente
consolidada, de um novo partido neonazista, e isso em pleno capitalismo
pacificado dos “anos dourados”.
Ele
afirma então que os movimentos fascistas são “como feridas, são cicatrizes de
uma democracia que ainda não faz justiça a seu próprio conceito”. E pouco
depois acrescenta que a relação desses movimentos com a economia é uma “relação
estrutural”, pois o processo irrefreável de concentração de capital aumenta
permanentemente a desigualdade e a pauperização, degradando camadas sociais
antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista e produzindo
assim uma sociedade continuadamente melindrada e repressiva.
Theodor
Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco
quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial
demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado
pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos
princípios liberais que daí resultou, agregou-lhe elemento ainda mais
pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que
sustentam a luta pela democracia.
Depois
de quase meio século de políticas que só fizeram aumentar a desigualdade mundo
afora, com a democracia reiteradamente traindo suas promessas, o resultado é o
que vemos: as cicatrizes tornaram-se feridas abertas, com a ascensão
indiscriminada, no centro e nas periferias do sistema, de grupos, movimentos e
governos de perfil e vocação fascistas.
E é
assim que assistimos hoje, abatidos e inertes, ao retorno de doutrinas e teses
que pensávamos pertencerem ao passado, como o supremacismo branco, a crítica ao
fato de as mulheres votarem, a defesa da homofobia e os ataques reiterados à
cultura, para não falar do negacionismo climático e do negacionismo científico
em geral.
Ora, se
o que coloca em xeque a democracia é a reiterada produção sistêmica de
desigualdades, é preciso, em primeiro lugar, averiguar qual é o estatuto que a
igualdade ocupa no capitalismo. Para começar, deveríamos indagar se a
preocupação com a desigualdade faz sentido em outras formações históricas.
As
perguntas sobre ela (sua dimensão, suas causas, seus desdobramentos) fariam
sentido no mundo feudal, desigual por definição, ou na antiguidade clássica,
movida pelo trabalho escravo, ou no comunismo primitivo, onde giraria em falso
qualquer colocação do tipo igualdade x desigualdade?
É
evidente que as citadas questões só fazem sentido na e para a sociedade
moderna, porque é nela que a igualdade está pressuposta. Basta lembrarmos aqui,
para não ter que ir muito longe, do grito de guerra da Revolução Francesa. Mas,
quando dizemos que no capitalismo a igualdade está pressuposta, este termo deve
ser entendido de modo rigoroso. Dialeticamente, o que está pressuposto é
exatamente aquilo “que não está posto” e esse “não estar posto” pode se dar em
dois sentidos diferentes, ou por duas razões diferentes: pode se tratar de algo
ainda não posto, ou de algo que está posto como negado.
No caso
da igualdade, poderíamos dizer que ela está pressuposta nos dois sentidos. No
sentido de algo que é posto como negado, a igualdade está pressuposta porque,
ainda que fenomenicamente, no âmbito do mercado, ela exista (uma das leis da
circulação simples diz que valor se troca por valor igual, ou não poderíamos
colocar os sinais de igual nas equações de troca: 1 litro de leite = 2
pãezinhos, ou 1 litro de leite = R$ 5,00), ainda que a igualdade exista,
portanto, fenomenicamente, Marx nos mostra que ela se interverte em
desigualdade, ou seja, se nega, quando a força de trabalho assume, ela própria,
a forma de mercadoria e entra no lado esquerdo da equação.
Essa
igualdade presente no plano da circulação e, pois, no plano dos valores/preços
das mercadorias implica uma igualdade também presente, e da mesma maneira
negada, no plano dos agentes da troca: temos, em ambos os lados de uma
transação, iguais proprietários de mercadorias, que trocam obedecendo tão
somente seu livre arbítrio, mas, para alguns deles, a força de trabalho é sua
única mercadoria, o que vai introduzir de partida, nessa relação de iguais, uma
desigualdade imanente.
Já no
sentido de algo ainda não posto, a igualdade está pressuposta porque ela pode
ser tomada como um vir-a-ser, como algo cuja posição se deve buscar, e/ou como
algo que a Modernidade prometeu à humanidade, ainda não entregou, mas poderá –
ou nós devemos lutar para – ser entregue. Claro está que, para Karl Marx, a
pressuposição da igualdade por conta de sua posição como algo negado é o que
prevalece, sendo que a luta que deve ser feita para acabar com o caráter
contraditório da igualdade dentro dos limites desse sistema pode ser uma luta
inglória.
A
percepção do caráter pressuposto da igualdade na sociedade capitalista, ou
seja, de seu caráter contraditório de existir não existindo, ou de se colocar
como um eterno vir-a-ser, deriva da compreensão da ordem do capital como algo
sistêmico, e que, portanto, só pode ser corretamente entendido se o enxergarmos
em sua totalidade.
Pensar
a questão da desigualdade como mero “problema”, e que, enquanto tal, pode ser
resolvido com a aplicação dos remédios corretos, é entendê-la como um acidente,
como algo que pode ou não ocorrer, e não como algo que resulta necessariamente
da essência desigual do sistema.
E
voltamos com isso às preleções de Theodor Adorno e à sua afirmação de que a
democracia ainda não fez jus a seu próprio conceito. É verdade que ele
denunciou tal violação há quase 60 anos, mas, de lá para cá, o mundo não andou
na direção de contradizê-la, antes o inverso. Isto posto, dado este quadro tão
pouco alvissareiro, chegamos às perspectivas que se podem traçar, neste
momento, para a economia e para a democracia.
A crise
enfrentada hoje pelo sistema capitalista, que se tornou pela primeira vez de
fato mundial, é resultado da tendência à sobreacumulação que lhe é inerente, a
qual despontou com força nos anos 70 do século passado e permanece ainda hoje
irresolvida. Foram a financeirização do processo de acumulação, a ascensão da
China e o próprio levante neoliberal que possibilitaram sua sobrevida até aqui.
A
primeira porque, graças à profusão na emissão de capital fictício, vai
permitindo deslocar no tempo, e, nesse sentido, ajudando a “resolver”, a
questão das alternativas à valorização do capital (por mais, é claro, que faça
isso alavancando o potencial de contradições do sistema).
A
segunda porque o gigante asiático representava, até o terceiro quartel do
século passado, um continente inteiro à margem do moinho capitalista,
configurando desde então uma colossal fonte de demanda efetiva adicional a
serviço da acumulação. Por fim, o advento do neoliberalismo, com sua homília
cotidiana em torno das benesses das privatizações e dos cortes de gastos
públicos, age no mesmo sentido, produzindo uma fonte quase permanente de novos
ativos capazes de sustentar o processo.
Mas
tudo isso está hoje em xeque. O processo de financeirização levou um golpe
severo com a grande crise internacional de 2008. É verdade que, depois de três
ou quatro anos de moderação, o processo de emissão de capital fictício retomou
com força. De acordo com os últimos dados disponíveis, a relação estoque
mundial de ativos financeiros/PIB mundial passou de 2,9 em 2008 para 5,4 em
2021.
De toda
forma, como tal processo, por conta da atividade especulativa que a ele se
vincula, está inerentemente associado a estouro de bolhas e crises abruptas,
ele parece estar mais para problema do que para solução. Por exemplo, algumas
cassandras, encontradas, pasmem, no Deutsche Bank, perguntaram recentemente
(isso saiu no jornal Financial Times em julho último) se o crescente aumento de
empréstimos para financiar a compra de ações não seria um sinal de “intensa
euforia”, não perceptível desde 1999 e 2007.
A
China, de seu lado, perdeu um pouco do fôlego inicial, ainda que com um
desempenho robusto e de modo nenhum próximo a qualquer performance em curso no
assim chamado mundo desenvolvido. O gigante asiático, contudo, permanece um
enigma: com seu capitalismo potente e exuberante, que empurra a acumulação e
serve aos capitais de todo o globo, coordenado e dirigido, porém, pelo partido
comunista, fascina e ao mesmo tempo apavora as cabeças pensantes do mundo
ocidental.
Por
fim, o neoliberalismo. Há um debate intenso sobre o que aconteceu e está
acontecendo com o dito-cujo. Morreu, se transformou, está em transição? Essas
perguntas, diga-se, fizeram-se à larga quando da crise de 2008, sobretudo por
conta das soluções que então apareceram: forte intervenção do Estado,
estatização de instituições financeiras, quantitative easing. O neoliberalismo
ficou keynesiano?
Mas a
verdade é que, depois da crise, mesmo com todos os desdobramentos, a pregação
em torno dos princípios e das prescrições liberais redobrou e continuou a
espalhar desigualdade – com as exceções de praxe, claro, sob os auspícios de
políticas sociais de forte impacto, como aconteceu em alguns períodos no
Brasil. Só que, hoje, o neoliberalismo é muito mais reacionário, pois deixou de
lado as veleidades progressistas que usou como ornamento durante um bom tempo.
Seja
como for, mesmo se os três expedientes estivessem em sua melhor forma, ainda
haveria que enfrentar aquele que é talvez o principal problema para um sistema
que requer produção sem limites: a questão ambiental. O último relatório do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, o qual se
tornou referência mundial sobre o tema, assevera que o aquecimento global está
se acelerando numa velocidade nunca antes vista, ao ponto de podermos atingir,
já em 2030, a elevação da temperatura média do globo em 2oC relativamente ao
nível pré-industrial, marca essa, não custa lembrar, que o Acordo de Paris,
firmado em 2015, tinha por objetivo justamente impedir de atingir em… 2100!
Isto
posto, não dá para dizer que podem ser boas as perspectivas da economia. A
economia brasileira, por sinal, até que não anda se saindo tão mal, com taxa de
juros de 15% e tudo. Mas o contexto geral é muito pouco promissor.
E a
democracia? Bem, quanto à democracia, não fosse por todo o obstáculo que
representa a própria disseminação e aprofundamento da desigualdade, temos
agora, no comando do ainda maior PIB do mundo, uma mistura tóxica de
reacionarismo, xenofobia, supremacismo, misoginia, homofobia, ódio à cultura,
censura, prepotência e mandonismo imperial, de modo que hoje, sobre os Estados
Unidos da América, pode-se dizer qualquer coisa, menos que continue a ser uma
democracia.
Mas
este não é, como pode parecer, um elemento que simplesmente se adiciona a uma
situação já muito complicada. Ele é o resultado mesmo dessa falência sistêmica
geral, que arrasta consigo a hegemonia americana.
O
sociólogo alemão Wolfgang Streeck afirma que, a despeito da sempre presente
exaltação dos valores democráticos pela sociedade de hoje, o mundo moderno só
experimentou uma única vez aquilo que se poderia chamar de “capitalismo
democrático”, ou seja, um arranjo capaz de conciliar o feitio naturalmente
antidemocrático da acumulação capitalista com os anseios de igualdade e
respeito pelo ser humano.
O santo
responsável pelo milagre teria sido justamente o cenário auspicioso, marcado
pelo crescimento econômico forte e persistente, que caracterizou os trinta anos
gloriosos iniciados no pós-Segunda Guerra e que precederam a etapa atual, de
gestão neoliberal do sistema.
Repetir
tal façanha parece, todavia, cada vez mais improvável, e não só porque a roda
da história não gira para trás. É sobretudo porque temos um único planeta,
finito e limitado, incapaz de acomodar, em suas estreitas balizas, um sistema
econômico de vocação infinita, vocação, porém que não age em prol da
emancipação humana, mas tão somente em benefício da acumulação infindável de
riqueza abstrata.
Qualquer
mudança efetiva no sentido de tornar o planeta e o mundo ambiental e
socialmente mais habitáveis depende cada vez mais e mais da luta política e do
auxílio que a ciência pode prover.
Daí a
imensa importância de monitorar as mazelas cotidianamente produzidas, zelar
pelas feridas que vão se abrindo. Uma macroeconomia da desigualdade, como
propõe o Made, é uma macroeconomia que enobrece a ciência econômica, que a
torna digna do nome de ciência, e, mais importante ainda, que joga no time da
democracia, tão precisado, como vimos, de craques verdadeiros.
Parece
ainda muito longe o dia em que a democracia venha a fazer jus a seu conceito,
como reclama Theodor Adorno, mas o Made faz a sua parte. Parabéns, Made, pelos
cinco anos! Que muitos mais venham pela frente. Muito obrigada.
Fonte:
Por Leda Paulani, em A Terra é Redonda/Brasil 247

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