sábado, 30 de agosto de 2025

Sintonias na “Argentina profunda”

No dia 27 de agosto, na Argentina, comemora-se o Dia Nacional do Rádio, porque nessa data foi, em 1920, a primeira transmissão radial no país. Esta crônica tenta se aproximar do rádio nos laços sociais nesse país, e da interrogação sobre a permanência ou não da percepção de um coletivo.

Em janeiro de 2024, fiz uma viagem pela província de Santa Cruz, extremo sul da Patagônia antes da ilha de Tierra del Fuego. É um dos estados mais extensos e menos povoados da Argentina. Percorri partes das suas três regiões: o litoral oceânico, a estepe central e a montanha, uma das últimas linhas dos Andes, que nessa latitude de bosques e lagos glaciais são mais baixos do que no resto do continente.

Foi uma travessia Leste – Oeste e depois inversamente, mas por vias diferentes, várias delas caminhos de terra ou de um tipo de cascalho firme que na Argentina é chamado de “ripio”. Fui sozinho, dirigindo um carro, e mesmo nos longos trechos pavimentados, encontrando pouquíssimo trânsito em comparação com outras partes do país.

Escutava o rádio enquanto dirigia, e, durante muitos quilômetros quase sem população visível, e sem sinal de celular nem de internet, era a Rádio Nacional a que conseguia ouvir melhor. Uma estação que eu escutava muito pouco nos tempos quando morava na Argentina, mas que durante essa viagem acabou sendo costume, e que escolhi para as horas de estrada.

Fui ficando seduzido pelo modo como a emissora alternava os momentos de alcance nacional com a comunicação mais local mediante as afiliadas de cada lugar: “transmite Radio Nacional de Gobernador Gregores“, “transmite Radio Nacional de Perito Moreno“. Uma coisa é ter estudado, ensinado e até escrito sobre o papel da radiofonia na formação de uma representação do território e de um imaginário de nação, inclusive de um efeito de “unidade” da língua, outra é verifica-lo no meio dessas solidões e neste momento perturbador da história argentina.

Minha viagem aconteceu já sob o insólito governo “libertário” de ultradireita, que tinha apenas um mês no poder, e já se propunha a desmontar os meios de comunicação públicos porque sua existência seria “desnecessária”. Não conseguiu privatizar, nem desmontar, apesar de provocar certo esvaziamento.

Naqueles dias, Radio Nacional, tanto na emissão central de Buenos Aires como na sua capilarização por afiliadas locais, continuava basicamente a mesma. Os radialistas que falavam na programação iam escandindo as notícias e comentários sobre todos os assuntos locais e nacionais, incluindo a vida cultural e os acontecimentos mais cotidianos, com cautelosas alusões à ameaça que paira sobre todas as atividades produtivas, sobre o meio ambiente, o atendimento da saúde, sobre a educação ainda em férias, o transporte, a provisão de energia, o abastecimento, a ajuda social e tantos outros aspectos da existência em sociedade.

Relembro algumas das coisas que ouvi, dentre muitas, em dias que incluíram uma paralisação geral de 12 horas que se sentiu forte no interior. Associações de pais de alunos e mutuais de bairro (o que, na Argentina, é chamado de “sociedad de fomento”) de diversas cidades e povoados comentavam dúvidas sobre como seriam abastecidos os refeitórios escolares quando as aulas recomeçassem.

A prefeitura de algum território da província tinha enviado à Câmara de Vereadores uma regulamentação para que o hospital municipal começasse a cobrar por cada atendimento. A locutora explicitava que a prefeita era da aliança governante.

Alguns eventos recreativos em diferentes pontos do país, que se realizam entre janeiro e fevereiro e favorecem o turismo local, como a Festa da Fruta em El Bolsón, a colônia de férias em Isla Pavón, e inclusive um de grande porte como o Festival de Folclore de Cosquín, aconteceriam enfraquecidos e sob a preocupação, explicada pelos protagonistas, com a possível revogação de leis que protegem atividades culturais e de lazer.

Aproximadamente cada duas horas soavam, nessa região pouco povoada, costumeiros avisos de e para a zona rural, que me interessaram muito durante a viagem porque eram como uma descoberta que me levava para épocas não vividas, apenas ouvidas nos relatos dos mais velhos. A seção começa precedida por uma estrofe de milonga que canta algo como “no rádio pode haver uma mensagem para você, compadre”.

Passavam informações tais como alguém que anuncia para outro que “o cavalo morreu”, ou uma família que antecipa a um parente que estão pensando em “ir de visita ao seu sítio no final de semana”. Um que especialmente chamou minha atenção, e que foi repetido várias vezes no mesmo dia, era “Olivia avisa Maria que está esperando por ela no lago”.

Durante a programação de alcance nacional, os ouvintes ligavam ou gravavam mensagens pedido determinadas canções. O presente também respingava nessas falas, de modo geral como desafio ou ironia. Muitos pedidos de músicas de Peteco Carabajal, compositor de fusão que recentemente tinha pedido que ninguém ficasse em pé quando a nova vice-presidenta ingressou a um festival onde ele estava tocando.

Outro ouvinte solicitava, com intenção na voz ao dizer o título, a canção “La cultura”, de León Gieco. E eram muitos os pedidos em vozes de cidades grandes e pequenas do país todo, por músicas de compositores e intérpretes conhecidos por algum tipo de engajamento.

Toda essa escuta, dos locutores aos avisos rurais e aos ouvintes mais ou menos urbanos me fez pensar que aquilo que poderia ser chamado de “Argentina profunda” conserva laços que ainda a diferenciam dos níveis “profundos” que sustentaram e sustentam os Bolsonaros e Trumps de outras planícies tanto ou mais vastas.

No Brasil “profundo”, creio que, essa percepção de comunidade se verifica somente entre previamente excluídos: sem teto, sem-terra, favelados, ou no raio de influência de algum movimento social, ou (ai, ai!) de alguma igreja. Não no tipo de âmbito que, na Argentina, dá lugar às assembleias barrais, ou a que a população inteira de uma cidade ocupe as ruas, como já aconteceu, contra a mineração a céu aberto.

Reconfortava notar, pelo rádio, que, apesar de tudo, o tecido continua existindo. As sintonias ainda podem desafiar a que, das muitas tentativas de desmonte que o país já sofreu, é a que mais descaradamente propõe sua dispersão em pedaços que já não consigam recombinar-se.

Havendo olhares e escutas acordadas, não cegadas pelas muitas decepções, a dissolução sai do horizonte, pelas tramas longamente urdidas nos teares. Quero e aposto em que seja possível que tantos laços conjurem a catástrofe.

Nisso também o rádio me acompanhou durante a viagem, e até hoje. E também espero que Maria tenha encontrado Olívia no lago.

 

Fonte: Por Adrián Pablo Fanjul, em A Terra é Redonda

 

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