Sintonias
na “Argentina profunda”
No dia
27 de agosto, na Argentina, comemora-se o Dia Nacional do Rádio, porque nessa
data foi, em 1920, a primeira transmissão radial no país. Esta crônica tenta se
aproximar do rádio nos laços sociais nesse país, e da interrogação sobre a
permanência ou não da percepção de um coletivo.
Em
janeiro de 2024, fiz uma viagem pela província de Santa Cruz, extremo sul da
Patagônia antes da ilha de Tierra del Fuego. É um dos estados mais extensos e
menos povoados da Argentina. Percorri partes das suas três regiões: o litoral
oceânico, a estepe central e a montanha, uma das últimas linhas dos Andes, que
nessa latitude de bosques e lagos glaciais são mais baixos do que no resto do
continente.
Foi uma
travessia Leste – Oeste e depois inversamente, mas por vias diferentes, várias
delas caminhos de terra ou de um tipo de cascalho firme que na Argentina é
chamado de “ripio”. Fui sozinho, dirigindo um carro, e mesmo nos longos trechos
pavimentados, encontrando pouquíssimo trânsito em comparação com outras partes
do país.
Escutava
o rádio enquanto dirigia, e, durante muitos quilômetros quase sem população
visível, e sem sinal de celular nem de internet, era a Rádio Nacional a que
conseguia ouvir melhor. Uma estação que eu escutava muito pouco nos tempos
quando morava na Argentina, mas que durante essa viagem acabou sendo costume, e
que escolhi para as horas de estrada.
Fui
ficando seduzido pelo modo como a emissora alternava os momentos de alcance
nacional com a comunicação mais local mediante as afiliadas de cada lugar:
“transmite Radio Nacional de Gobernador Gregores“, “transmite Radio Nacional de
Perito Moreno“. Uma coisa é ter estudado, ensinado e até escrito sobre o papel
da radiofonia na formação de uma representação do território e de um imaginário
de nação, inclusive de um efeito de “unidade” da língua, outra é verifica-lo no
meio dessas solidões e neste momento perturbador da história argentina.
Minha
viagem aconteceu já sob o insólito governo “libertário” de ultradireita, que
tinha apenas um mês no poder, e já se propunha a desmontar os meios de
comunicação públicos porque sua existência seria “desnecessária”. Não conseguiu
privatizar, nem desmontar, apesar de provocar certo esvaziamento.
Naqueles
dias, Radio Nacional, tanto na emissão central de Buenos Aires como na sua
capilarização por afiliadas locais, continuava basicamente a mesma. Os
radialistas que falavam na programação iam escandindo as notícias e comentários
sobre todos os assuntos locais e nacionais, incluindo a vida cultural e os
acontecimentos mais cotidianos, com cautelosas alusões à ameaça que paira sobre
todas as atividades produtivas, sobre o meio ambiente, o atendimento da saúde,
sobre a educação ainda em férias, o transporte, a provisão de energia, o
abastecimento, a ajuda social e tantos outros aspectos da existência em
sociedade.
Relembro
algumas das coisas que ouvi, dentre muitas, em dias que incluíram uma
paralisação geral de 12 horas que se sentiu forte no interior. Associações de
pais de alunos e mutuais de bairro (o que, na Argentina, é chamado de “sociedad
de fomento”) de diversas cidades e povoados comentavam dúvidas sobre como
seriam abastecidos os refeitórios escolares quando as aulas recomeçassem.
A
prefeitura de algum território da província tinha enviado à Câmara de
Vereadores uma regulamentação para que o hospital municipal começasse a cobrar
por cada atendimento. A locutora explicitava que a prefeita era da aliança
governante.
Alguns
eventos recreativos em diferentes pontos do país, que se realizam entre janeiro
e fevereiro e favorecem o turismo local, como a Festa da Fruta em El Bolsón, a
colônia de férias em Isla Pavón, e inclusive um de grande porte como o Festival
de Folclore de Cosquín, aconteceriam enfraquecidos e sob a preocupação,
explicada pelos protagonistas, com a possível revogação de leis que protegem
atividades culturais e de lazer.
Aproximadamente
cada duas horas soavam, nessa região pouco povoada, costumeiros avisos de e
para a zona rural, que me interessaram muito durante a viagem porque eram como
uma descoberta que me levava para épocas não vividas, apenas ouvidas nos
relatos dos mais velhos. A seção começa precedida por uma estrofe de milonga
que canta algo como “no rádio pode haver uma mensagem para você, compadre”.
Passavam
informações tais como alguém que anuncia para outro que “o cavalo morreu”, ou
uma família que antecipa a um parente que estão pensando em “ir de visita ao
seu sítio no final de semana”. Um que especialmente chamou minha atenção, e que
foi repetido várias vezes no mesmo dia, era “Olivia avisa Maria que está
esperando por ela no lago”.
Durante
a programação de alcance nacional, os ouvintes ligavam ou gravavam mensagens
pedido determinadas canções. O presente também respingava nessas falas, de modo
geral como desafio ou ironia. Muitos pedidos de músicas de Peteco Carabajal,
compositor de fusão que recentemente tinha pedido que ninguém ficasse em pé
quando a nova vice-presidenta ingressou a um festival onde ele estava tocando.
Outro
ouvinte solicitava, com intenção na voz ao dizer o título, a canção “La
cultura”, de León Gieco. E eram muitos os pedidos em vozes de cidades grandes e
pequenas do país todo, por músicas de compositores e intérpretes conhecidos por
algum tipo de engajamento.
Toda
essa escuta, dos locutores aos avisos rurais e aos ouvintes mais ou menos
urbanos me fez pensar que aquilo que poderia ser chamado de “Argentina
profunda” conserva laços que ainda a diferenciam dos níveis “profundos” que
sustentaram e sustentam os Bolsonaros e Trumps de outras planícies tanto ou
mais vastas.
No
Brasil “profundo”, creio que, essa percepção de comunidade se verifica somente
entre previamente excluídos: sem teto, sem-terra, favelados, ou no raio de
influência de algum movimento social, ou (ai, ai!) de alguma igreja. Não no
tipo de âmbito que, na Argentina, dá lugar às assembleias barrais, ou a que a
população inteira de uma cidade ocupe as ruas, como já aconteceu, contra a
mineração a céu aberto.
Reconfortava
notar, pelo rádio, que, apesar de tudo, o tecido continua existindo. As
sintonias ainda podem desafiar a que, das muitas tentativas de desmonte que o
país já sofreu, é a que mais descaradamente propõe sua dispersão em pedaços que
já não consigam recombinar-se.
Havendo
olhares e escutas acordadas, não cegadas pelas muitas decepções, a dissolução
sai do horizonte, pelas tramas longamente urdidas nos teares. Quero e aposto em
que seja possível que tantos laços conjurem a catástrofe.
Nisso
também o rádio me acompanhou durante a viagem, e até hoje. E também espero que
Maria tenha encontrado Olívia no lago.
Fonte:
Por Adrián Pablo Fanjul, em A Terra é Redonda

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