terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O que são as engenhosas caixas de Ward e como elas transformaram a economia mundial

A história das descobertas científicas está repleta de criações que tomaram rumos inesperados. E também de paixões transformadoras.

A de Nathaniel Bagshaw Ward nasceu numa viagem à Jamaica, aos 13 anos, quando ele se encantou com a flora exótica.

Ward não estava sozinho nessa fascinação: no século 19, a Inglaterra vivia uma verdadeira febre botânica, com amadores e cientistas competindo para cultivar espécies vindas dos cantos mais remotos do planeta.

Assim, embora tenha se tornado médico, também estudou botânica e entomologia.

Apesar de reunir uma extensa coleção de exemplares, sofreu uma decepção: muitas plantas, especialmente fetos e musgos, não prosperavam em seu jardim em Londres.

O Reino Unido estava em plena Revolução Industrial, o que significava que sua casa estava "cercada e impregnada pela fumaça de inúmeras fábricas", que sufocavam suas plantas preciosas.

A solução veio, por acaso, de um inseto.

Por volta de 1829, ele tentava criar uma mariposa-esfinge a partir de uma crisálida colocada sobre mofo úmido num frasco selado quando percebeu que um feto havia começado a brotar ali.

Ele observou a água evaporar, condensar-se e retornar ao mofo — reproduzindo, em miniatura, o ciclo básico dos sistemas climáticos terrestres.

Seria possível que aquele microcosmo de vidro fosse a forma ideal de controlar a qualidade do ar e a umidade, permitindo a sobrevivência de espécies que antes morriam?

O invento de Ward era simples: vidro, madeira, massa, tinta... basicamente uma estufa selada em miniatura.

Não era um prodígio tecnológico, mas fruto de uma mente inquisitiva. Até então, acreditava-se que plantas precisavam do ar livre. Ward questionou se isso era mesmo necessário, observa o jornalista econômico Tim Harford.

Seus primeiros testes para cultivar fetos dentro daquele pequeno ecossistema selado deram certo.

Animado, passou a acreditar que talvez tivesse resolvido um problema que afligia os coletores de plantas: como mantê-las vivas durante longas viagens marítimas.

Sob o convés, as plantas careciam de luz; sobre o convés, o orvalho salgado era fatal.

Para testar a ideia, Ward enviou duas de suas caixas para a Austrália.

Meses depois, recebeu uma carta do capitão do navio oferecendo "calorosos parabéns": a maioria dos fetos estava "viva e vigorosa", e os capins "tentavam empurrar a parte superior da caixa".

O navio voltou com caixas de Ward repletas de plantas australianas, igualmente saudáveis.

Ward publicou um livro sobre seu invento e sonhou com impactos amplos. Tinha razão, embora não da forma que imaginava.

Ele previu que amantes de plantas poderiam ter pequenas florestas tropicais em suas casas e acertou: recentemente os terrários, descendentes diretos das caixas de Ward, voltaram à moda impulsionados pelas redes sociais.

Mas, como médico, imaginou também grandes estufas seladas onde pacientes poderiam se recuperar de sarampo ou tuberculose sem respirar o ar contaminado das cidades.

O que ele não antecipou é que suas caixas estavam prestes a transformar a agricultura, a política e o comércio global.

<><> Sem permissão

Graças às caixas de Ward, o transporte de plantas ultramarinas avançava rapidamente.

Em 1833, o importador George Loddiges usou o método e relatou que, enquanto antes perdia 19 de cada 20 plantas durante a viagem, agora "19 de cada 20 sobreviviam".

Naturalmente, o método se popularizou.

Mas foram mentes mais estratégicas que a do criador que perceberam seu potencial para reorganizar a economia em favor dos impérios dominantes da época. Começando pelo império cuja capital era a cidade onde Ward tivera sua ideia: Londres.

Trabalhos da Indústria de Todas as Nações, em 1851, em Londres

Ward havia publicado seu livro em 1847, poucos anos depois de o Reino Unido vencer a Primeira Guerra do Ópio.

Quando os chineses decidiram deixar de aceitar o ópio indiano em troca de seu chá, os britânicos enviaram canhoneiras para fazê-los mudar de ideia.

Não era apenas uma questão de gosto pela bebida: os impostos sobre o chá representavam cerca de um décimo da receita do governo britânico.

Mas a poderosa Companhia Britânica das Índias Orientais — que praticamente governava o subcontinente indiano — precisava de outra estratégia: cultivar mais chá na Índia.

Isso significava contrabandear plantas de chá da China. E havia um homem perfeito para isso: o botânico e caçador de plantas Robert Fortune.

Ele já havia tentado sem sucesso, mas aprendera, em sua primeira expedição, que, raspando a cabeça, usando peruca e roupas chinesas, podia passar quase despercebido.

Disfarçado, enviou secretamente "caixas envidraçadas com plantas vivas para a Inglaterra" entre 1848 e 1851, segundo relatou em suas memórias.

Com isso, grandes plantações de chá foram estabelecidas em Assam e Darjeeling, quebrando o monopólio chinês.

Algo talvez tão impactante ocorreu 25 anos depois.

Com a alta nos preços da borracha, o Ministério das Relações Exteriores britânico enviou o botânico amador Henry Wickham à Amazônia para obter sementes da seringueira, a Hevea brasiliensis.

Em 1876, ele enviou cerca de 70 mil sementes em caixas de Ward, que germinaram nos Jardins de Kew; as mudas foram então enviadas ao Sudeste Asiático.

O Brasil não conseguiu competir com as plantações coloniais e acabou perdendo seu domínio no comércio da borracha, enquanto este se tornava uma das indústrias mais lucrativas do Império Britânico.

Esses são dois grandes exemplos — mas não os únicos.

<><> Chocolate com baunilha

Não foram apenas os britânicos a explorar as caixas de Ward em seu projeto de dominação global.

Outro grande império colonial europeu foi o primeiro a retirar dos Andes uma das plantas mais cruciais para esse processo: a Cinchona officinalis.

De sua casca extraía-se a quinina — o remédio milagroso descoberto por povos andinos, que, entre outras propriedades, protegia contra a malária. A doença representava uma ameaça mortal para europeus que se aventuravam nos trópicos — trópicos onde, ironicamente, a malária havia sido introduzida pelos próprios colonizadores.

Justus Karl Hasskarl, botânico alemão a serviço do Império Holandês, foi o primeiro a transportar plântulas dos Andes para a ilha de Java usando caixas de Ward (1854–1856).

Ao fim do século 19, essa colônia neerlandesa produzia cerca de 90% da quinina mundial — viabilizando campanhas coloniais e a expansão europeia com muito menos mortalidade.

Enquanto a quinina abria os trópicos aos europeus, outra planta de valor incalculável avançava rumo à globalização: o cacau.

Originário da bacia amazônica, durante séculos o cultivo significativo concentrou-se na Venezuela e no Equador.

Seu fruto era cobiçado por aristocratas e comerciantes europeus; chocolates de luxo eram considerados quase um manjar divino. Como comentam Sophie e Michael Coe no livro The True History of Chocolate (A verdadeira história do chocolate, em português), nobres do século 18 o chamavam de "néctar dos deuses".

A introdução do cacau na África Ocidental, no final do século 19, começou de modo simples, sem caixas de Ward: bastou transportar vagens frescas e sementes viáveis. As primeiras plantações prosperaram na Costa do Ouro e em Gana.

Mas quando o cacau passou a viajar entre continentes — rumo à Ásia, ao Índico ou a jardins botânicos europeus — as caixas de Ward se tornaram decisivas: permitiram que mudas delicadas sobrevivessem meses de travessia desde as Américas até o Ceilão, Java ou Reunião.

O impacto foi enorme: a África Ocidental passou de produtora nula a responsável por quase todo o cacau global no início do século 20, enquanto Ceilão e Java também viraram polos importantes.

A fruta, antes exclusiva das Américas, tornou-se pilar de impérios coloniais e redes de comércio transoceânicas (como mostram Science and Colonial Expansion, de Lucile Brockway, e An Empire of Plants, de Toby e Will Musgrave).

E, se o cacau levou o luxo do chocolate a novas latitudes, a baunilha o tornou ainda mais sofisticado.

Europeus a cobiçavam como artigo de luxo: aromatizava bolos, confeitos e bebidas; era símbolo de riqueza e refinamento.

A orquídea Vanilla planifolia crescia nas florestas úmidas do México, da América Central e do norte da América do Sul.

Estudos históricos e etnográficos apontam que os Totonacas de Veracruz foram dos primeiros a domesticá-la.

O fato é que, por séculos, o México manteve um monopólio global da baunilha — em parte porque era extremamente delicada: sua flor só frutificava na presença de seu polinizador natural, a abelha melipona.

Mesmo assim, franceses levaram estacas de baunilha do México para Reunião, Maurício e Madagascar usando caixas de Ward.

Mas o problema da polinização persistia — até que a solução veio não de botânicos ilustres, mas de um menino escravizado de 12 anos: Edmond Albius.

Em 1841, na ilha de Reunião — então um pequeno território francês no Índico — ele descobriu um método simples e rápido de polinizar a flor manualmente.

Sua técnica permitiu que a planta frutificasse longe de seu berço original. Poucos anos depois, Madagascar — e não o México — tornou-se o maior produtor mundial.

A baunilha malgaxe se tornou "o ouro aromático do oceano Índico", como escreve Tim Ecott em Vanilla: In Search of the Orchid. Até hoje, Madagascar responde por 60% a 80% da produção global.

Esses, claro, são apenas alguns exemplos: belas orquídeas, fúcsias e rosas, além de mangas saborosas e palmeiras exóticas navegaram pelos mares protegidas nessas simples caixas de madeira e vidro.

Como resume o historiador Luke Keogh, autor de The Wardian Case: "essa invenção impulsionou uma revolução no movimento de plantas… e as repercussões dessa revolução ainda estão conosco hoje".

O que começou como o experimento engenhoso de um amante da flora terminou como uma engrenagem que transformou mercados, redesenhou paisagens e deixou uma marca profunda na geografia botânica e agrícola mundial.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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