Marx
e Espinosa como críticos da religião
“…
entre a fé, ou teologia, e a filosofia não existe nenhuma relação nem nenhuma
afinidade”, escreveu o filósofo holandês Baruch Espinosa em seu Tratado
teológico-político, texto publicado em 1670. Tal afirmativa contraria uma longa
tradição que sempre vira a filosofia em estreita relação com a fé e a teologia.
E não é preciso recorrer aos exemplos proeminentes de Agostinho de Hipona e
Tomás de Aquino para corroborar tal relação. Séculos após o auge da
Escolástica, encontraremos também num pensador da estatura de Hegel — a quem
tanto devemos por suas inovadoras contribuições em várias áreas do pensamento —
uma compreensão da filosofia em solução de continuidade com a teologia. Na
Introdução às suas Lições sobre a Filosofia da Religião, podemos ler a explícita
tese hegeliana: “a filosofia é teologia, e a ocupação com a filosofia — ou
melhor, na filosofia — é em si mesma o serviço de Deus.”
Em
contrapartida, todo o esforço de Espinosa foi no sentido de separar a filosofia
da teologia, afirmando que o objetivo e o fundamento dessas duas disciplinas
são “em tudo divergentes”. A primeira, segundo nosso filósofo, se guia pela
investigação da verdade e do conhecimento. Já a segunda, a teologia, encontra
sua origem na elaboração de regras de conduta para os agrupamentos humanos.
Desconcertante num primeiro momento, tal concepção aclara-se durante a leitura
do Tratado teológico-político, quando se vê que Espinosa está particularmente
interessado em pesquisar nas Escrituras a função das leis no Estado hebraico,
que esquadrinhavam a vida de seu povo de ponta a ponta: “[O povo hebraico] não
podia lavrar, semear ou ceifar à vontade, mas unicamente segundo um certo e
determinado preceito da lei; nem se quer podia comer alguma coisa, vestir-se,
cortar o cabelo ou a barba, divertir-se ou fazer fosse o que fosse a não ser de
acordo com as ordens e indicações prescritas nas leis.”
Mais do
que isso, também a concepção de Deus de Espinosa era radicalmente subversiva.
Seu Deus Natureza, no qual estaríamos imersos, rompe com a usual representação
antropomórfica de “um juiz sentado nos céus sobre um trono real”. Ao invés
disso, o filósofo nos fala de uma causa de si, impessoal, que gera efeitos
imanentes em si mesma e em todas as suas modificações. Mesmo as coordenadas
espaciais básicas para definir qualquer ente são impróprias para referir-se a
este Deus que “não tem direita nem esquerda, que não se move nem permanece
imóvel, que não está num determinado lugar mas que é absolutamente infinito”.
Até entre os correspondentes de Espinosa, que acompanhavam com interesse seu
pensamento, sua concepção de Deus gerou enorme estranheza. Foi o caso de Hugo
Boxel que, em carta de 1674, escreveu que Espinosa descreve e representa “o ser
infinitamente perfeito ao modo de um monstro”.
Afirmar
um cosmos apenas imanente era visto, portanto, como uma monstruosidade que
contradiria qualquer concepção racional e mesmo a possibilidade de uma ética.
E, ousadia suprema, Espinosa afirmava também que os profetas “falam segundo a
capacidade de compreensão do vulgo, ao qual a Escritura não pretende tornar
sábio mas obediente”. Assim, quando Espinosa investigava a Escritura, isso se
devia a um interesse histórico acentuado pelo texto e por suas prescrições
morais, mas não por atribuir a ele uma verdade filosófica. Ora, nada poderia
estar mais distante da compreensão predominante na época de Espinosa: o Tratado
teológico-político despertou reações muito passionais, gerando um clima hostil
em relação ao seu autor. Mesmo os representantes das correntes religiosas mais
tolerantes da época perceberam, não sem razão, a extensão da ruptura ali
existente. Philipp van Limborch enviou o livro a um amigo, com um comentário
que se tornou célebre:
“Não me
lembro de ter lido um livro tão pestilento (pestilentiorem). Ele ridiculariza
os profetas e apóstolos e, segundo ele, nenhum milagre aconteceu nem jamais
poderá acontecer. […] ele descreve Deus de tal forma que parece destruí-lo
completamente. Envio-o a você […], para que saiba que monstros produz a nossa
Holanda (quae monstra producat Batavia nostra).”
Em
1841, cerca de 170 anos depois da publicação do Tratado teológico-político, o
então jovem Marx reescreve o texto espinosano, alterando a ordem de várias de
suas passagens, num caderno de estudos que foi descoberto apenas após a sua
morte. Nele, encontramos documentado o interesse de Marx pelo pensamento do
filósofo holandês, principalmente no que diz respeito ao desvendamento das
raízes terrenas do poder teológico. Seguindo o rastro de aquisições
espinosanas, retomadas por Feuerbach, Marx também apontará para a projeção
humana, antropomórfica, que dá origem ao Deus da teologia. Assim, na abertura
da Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, texto de 1843, há uma
polêmica explícita com o pensamento religioso. Marx escreve que “o homem, que na
realidade fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o
reflexo de si mesmo […]”. A religião é formulada aqui como resultado da
projeção de uma imagem humana que duplica o mundo existente num outro, celeste.
Se a fonte mais imediata desta afirmação é Ludwig Feuerbach (que em seu livro A
essência do Cristianismo desenvolveu seu conceito de alienação religiosa), ela
também evoca o procedimento de Espinosa, ao criticar aqueles que projetam
categorias humanas sobre um mundo impessoal. Marx prossegue enfatizando as
necessidades terrenas insatisfeitas, a situação extremamente precária da
realidade alemã (“o vale de lágrimas”), que finda por demandar um complemento
ideal, satisfação imaginária de necessidades reais. Como se sabe, esse texto gerou
ataques de religiosos exaltados a Marx, por referir-se à religião como “o ópio
do povo”. Mas tais ataques desconhecem que outros pensadores já haviam
utilizado a imagem do ópio para designar a simultânea euforia e anestesiamento
religiosos, inclusive o filósofo romântico Novalis — pouco suspeito, com seu
idealismo mágico, de ter simpatias materialistas.
Entendendo
a crítica da religião como “o pressuposto de toda crítica”, Marx nos lembra que
a crítica do céu deve se transformar em “crítica da terra”. Ou seja, é preciso
ultrapassar o recinto do discurso religioso para encontrar o terreno onde ele
lança suas raízes. Temos aqui enunciada, de modo programático, a necessidade de
se investigar a sociedade civil, profundamente fragmentada, que mantém ativo o
carecimento religioso. Investigação que se materializará no longo investimento
marxiano na economia política. E não é verdade que, nos textos da maturidade de
Marx, a crítica à religião tenha desaparecido. Já no primeiro capítulo de O
capital encontraremos a seção intitulada “O caráter fetichista da mercadoria e
seu segredo”. Nela, nosso autor apresenta uma analogia entre a lógica alienada
que comanda o circuito da produção de mercadorias e as criações
religiosas:
“[…]
para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do
mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com
os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão
humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão
logo eles são produzidos como mercadorias…”
Para se
contrapor a essa fetichização da atividade humana, Marx propõe uma associação
de produtores livres, que dispõem de meios de produção coletivos e deliberam em
comum os rumos de suas vidas. Tal é o projeto social e político marxiano,
visando uma emancipação que não recorre a uma aposta transcendental para se
realizar: ela será obra da própria atividade humana, com seus acertos e erros.
Por
outro lado, se nos deslocarmos agora para a primeira terça parte do século XX,
encontraremos exemplos de intelectuais famosos que, a partir dos avanços
consideráveis no desenvolvimento das ciências e de sua utilização na vida
cotidiana, previram um enfraquecimento progressivo da religião. Tomemos o caso
de Max Weber em sua conferência de 1917, A ciência como vocação. Nela, podemos
ler que “hoje é apenas nos grupos menores, entre os seres humanos, em
pianíssimo, que se encontra a pulsação que, em tempos idos, anunciava o
espírito profético que varria as grandes comunidades como um incêndio”. Segundo
sua perspectiva, a expansão da racionalidade científica subtrairia
progressivamente o espaço para explicações religiosas.
Sabemos,
contudo, que essa previsão não se cumpriu: os desdobramentos da sociedade
capitalista — que demandam conhecimento científico especializado — nem de longe
extinguiram o carecimento religioso. Como observou agudamente György Lukács, a
acumulação capitalista, ao mesmo tempo que utiliza as descobertas da ciência na
economia, mantém “historicamente ativa nas massas uma necessidade religiosa.
Configuração não intencional, mas que pode ser atestada pelo contínuo
crescimento de fiéis e de suas lideranças, ocupando espaços que em tese
estariam reservados ao poder laico. Bancadas religiosas em casas legislativas e
juízes nas cortes supremas que pautam seus votos pela adesão a um certo credo
religioso, longe de serem uma exclusividade brasileira, se espalham em várias
partes do mundo no nosso século XXI.
Nada
disso exclui, por óbvio, a existência de movimentos religiosos progressistas,
como a Teologia da Libertação, ou mesmo como algumas vertentes do
pentecostalismo (pois é um preconceito supor que todos evangélicos sejam
conservadores). De nossa parte, não nos furtamos a escrever: grande respeito
pelos corajosos ativistas desses movimentos religiosos progressistas, que em
alguns casos colocam suas próprias vidas em risco na luta contra diferentes
opressões e, por vezes, assumem posições mais à esquerda do que partidos
políticos que se enunciam como tais. Contudo, isso não nos impede de enunciar
de modo transparente uma diferença relevante principalmente — mas não apenas —
para aqueles interessados em conhecer melhor as obras de Marx e Espinosa. Pois
estes defendem um projeto imanentista laico que baseia sua ética de conduta
numa aposta nas capacidades da espécie humana. Postura distinta de uma
invocação religiosa que procura em Deus o fundamento moral último de seu
protesto político. Não seria este o local para desenvolvermos tal diferença,
mas deixamos pelo menos anotado que ela envolve algumas ramificações e
consequências nas tomadas de posição no espaço público.
Até
porque chama a atenção no atual debate sobre o tema da tolerância religiosa
quão escassas são as referências aos direitos de expressão e ativismo dos
sujeitos ateus, cuja moralidade, aliás, é atacada da maneira mais cínica,
principalmente por tendências religiosas conservadoras. Daí a necessidade de
enunciar com todas as letras o que deveria ser apenas uma obviedade: ateias e
ateus têm absoluta legitimidade para expandir seu espaço na arena pública.
Talvez esta seja mesmo uma forma de se superar uma atual configuração
regressiva. De um lado, religiosos fanáticos que insistem em enxertar no Estado
laico suas crenças: pensemos na recente entrada dos “intervalos bíblicos” em
vários espaços educacionais públicos, uma indisfarçada violência contra aqueles
estudantes de outras denominações religiosas ou que não professam uma religião.
De outro, setores de intelectuais que adotaram uma espécie de relativismo
integral que finda por subtrair qualquer critério de verdade no debate público,
afirmando por exemplo que até a astrologia é alternativa a ser endossada frente
a uma presumida crise do “paradigma dominante”. Diante deste panorama, entender
com seriedade o que Espinosa e Marx disseram sobre a religião é uma tarefa
estimulante. Desejamos que eles sejam ouvidos.
Fonte:
Por Maurício Vieira Martins, no Blog da Boitempo

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