Contra
o racismo no SUS, a luta por justiça reprodutiva
A
história do Brasil não pode ser contada sem a força e a resistência das
mulheres negras. Em um ato de mobilização que reverbera por toda a América
Latina, milhares de mulheres negras ocuparam Brasília no dia 25 de novembro,
para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Ocupar as ruas é
um gesto que reafirma um projeto de sociedade que busca a vida digna e livre de
violências.
A
mobilização se tornou histórica em 2015, quando mais de 100 mil mulheres
marcharam pela primeira vez sob o lema “Contra o Racismo, a Violência e pelo
Bem Viver”. Idealizada pela ativista paraense Nilma Bentes, em 2011, a Marcha
se consolidou como o maior movimento de mulheres negras do continente,
carregando a sabedoria ancestral do Bem Viver: a busca por uma vida plena que
só se realiza na ausência do racismo, da violência e na presença da liberdade.
Às
vésperas da grande Marcha, o movimento lançou uma pauta central e urgente para
a saúde e a vida de todas as pessoas que gestam: o Manifesto por Justiça
Reprodutiva. Este documento foi construído coletivamente pelo Comitê de Justiça
Reprodutiva da Marcha Nacional de Mulheres Negras, contando com a contribuição
de mais de 300 participantes por meio de consulta pública. Ele evidencia que o
racismo e outras desigualdades estruturais fazem da vida sexual e reprodutiva
das mulheres negras um campo de luta.
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Mas, afinal, o que é justiça reprodutiva?
Trata-se
de um conceito político que articula, de maneira indissociável, direitos
sexuais, direitos reprodutivos e justiça social. Inspirada em formulações do
movimento de mulheres negras nos Estados Unidos e nos debates
latino-americanos, essa perspectiva vai além do conceito tradicional de
liberdade de escolha e questiona as bases das desigualdades no acesso à saúde.
A
justiça reprodutiva parte de um reconhecimento fundamental: a decisão sobre os
corpos, sobre a vida das mulheres e sobre constituir ou não uma família depende
de condições concretas de existência.
Para as
mulheres negras, as condições concretas de existência envolvem renda, moradia,
saúde e segurança. Onde falta moradia, falta saúde de qualidade; onde falta
segurança, a violência institucional floresce. Por isso, a justiça reprodutiva
está diretamente vinculada à justiça social. É impossível falar de saúde sexual
e reprodutiva sem enfrentar o racismo que nega direitos básicos. Essa é a chave
para entender o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) nesta pauta: um sistema
que existe para garantir o direito à saúde para a maior parte da população do
país, mas que falha de forma grave com aquelas que mais dele dependem.
A
Marcha das Mulheres Negras, que reuniu cerca de 300 mil pessoas em sua segunda
edição, não reivindica apenas a correção de um passado longínquo, mas o acerto
de uma dívida que se manifesta no presente, ceifando vidas e negando dignidade.
O racismo, enquanto herança da escravidão e da exclusão pós-abolição, é o motor
da desigualdade que cerceia a plena cidadania ao impedir o acesso à segurança
alimentar, à autonomia econômica e, de forma essencial, ao direito à saúde de
qualidade.
A
reparação não se esgota em ações simbólicas; ela se materializa em medidas
concretas que desestruturam a lógica da desigualdade. Isso significa exigir do
Estado o reconhecimento formal da dívida, a implementação de políticas públicas
como um direito inegociável e não como concessão, além da participação efetiva
das mulheres negras nas instâncias de poder onde decisões sobre suas vidas são
tomadas.
O SUS,
que tem como um de seus pilares a universalidade, é o palco onde a maior parte
da vida reprodutiva das mulheres negras brasileiras se desenrola. Cerca de 67%
da população atendida no SUS é negra de cor preta ou parda e impressionantes
90% dos nascimentos de mulheres negras ocorrem em suas instalações.
Paradoxalmente,
é nesse sistema vital que a promessa de equidade se rompe diante do racismo
institucional. O indicador mais trágico e incontestável dessa falha é a
disparidade na mortalidade materna. De acordo com o Relatório da Oficina “Morte
Materna das Mulheres Negras no Contexto do SUS” (2025), a maternidade, momento
que deveria ser de máxima proteção, é transformada em um risco de sobrevivência
para as mulheres negras.
Pesquisas
demonstram que, ao buscar atendimento, mulheres negras frequentemente têm sua
dor subestimada e negligenciada por profissionais de saúde, uma desumanização
que remonta à objetificação histórica de seus corpos. Essa desassistência
aumenta o risco de violências, desde a falta de informação até o abuso físico,
elevando os índices de lesões no parto e, em casos extremos, levando à perda de
vidas.
A luta
por justiça reprodutiva é, portanto, a luta para que os corpos das mulheres
negras sejam finalmente tratados com humanidade. Envolve a necessidade de
cuidado integral no ciclo gravídico-puerperal e a garantia plena dos direitos
sexuais e reprodutivos, incluindo acesso a informações claras, a métodos
contraceptivos e, sobretudo, ao aborto legal e seguro, reconhecido como
componente essencial da saúde pública e da autodeterminação.
O
Manifesto por Justiça Reprodutiva não é apenas um documento de denúncia das
violências e iniquidades; ele é, sobretudo, um projeto de futuro. Ao exigir
reparação e Bem Viver, a Marcha das Mulheres Negras apresenta ao Estado uma
agenda política por justiça reprodutiva com ações concretas para transformar o
SUS e garantir que a autonomia corporal seja uma realidade e não um privilégio
racial e de classe.
O que
demanda o Manifesto
Em sua
primeira parte, o Manifesto inicia pelo Eixo 1 – Enfrentamento ao Racismo
Institucional e Reparação em Saúde, que exige o reconhecimento do racismo
institucional como uma emergência sanitária nacional, propondo sua incorporação
na estrutura do SUS, com metas, indicadores e orçamento definidos. Para que
isso se concretize, o eixo demanda a formação de profissionais para um SUS
livre de discriminações como racismo, transfobia, etarismo e capacitismo,
transformando as diretrizes curriculares e instituindo educação permanente
obrigatória e avaliação periódica.
É
essencial a criação de mecanismos de reparação para vítimas de violências
reprodutivas, instituindo um fundo de reparação célere e desburocratizado para
famílias afetadas por negligência, racismo obstétrico e discriminação, e
implementando medidas de memória e não repetição, como centros de referência e
memorial itinerante.
Em
seguida, o Eixo 2 – Saúde Mental, Sexual e Reprodutiva com Equidade Racial e o
Eixo 3 – Enfrentamento à Violência e Racismo Obstétrico e à Negligência Médica
garantem a autonomia corporal. O Manifesto foca em assegurar atendimento
integral e antirracista em saúde mental, incluindo cuidado psicológico do
pré-natal ao puerpério, e em valorizar saberes tradicionais, além de promover
educação sexual e reprodutiva e garantir acesso universal e sem barreiras a
métodos contraceptivos e ao aborto legal.
No que
tange ao racismo obstétrico, o documento exige a criação de protocolos
nacionais obrigatórios que definam casos, fluxos de denúncia e a
responsabilização legal de serviços e profissionais, garantindo o protagonismo,
o consentimento livre e esclarecido e o direito a acompanhante e doula.
A
segunda parte da agenda se concentra nas condições estruturais de vida,
começando pelo Eixo 4 – Dignidade Menstrual e Estrutura Sanitária. Para
enfrentar a precariedade menstrual e o racismo ambiental, o Manifesto exige a
distribuição universal, gratuita e contínua de itens de cuidado menstrual em
todos os equipamentos públicos e a garantia de infraestrutura sanitária
adequada, incluindo banheiros públicos e escolares limpos e seguros em
territórios prioritários.
Em
seguida, o Eixo 5 – Cuidado, Maternidade e Políticas de Suporte à Vida aborda o
trabalho invisível que sobrecarrega as mulheres negras. O eixo exige o
reconhecimento do trabalho de cuidado como essencial, com a implementação de um
sistema nacional de cuidados que remunere, proteja socialmente e garanta
descanso a cuidadoras familiares e comunitárias. Busca-se também a ampliação de
políticas de creches e a equiparação das licenças parentais para promover a
corresponsabilidade e apoiar a diversidade de maternidades.
Por
fim, o Eixo 6 – Saúde Sexual e Reprodutiva ao Longo da Vida e o Eixo 7 –
Memória, Reparação e Não Repetição completam a agenda. O primeiro garante
atenção integral à infância, à adolescência negra e à saúde sexual na menopausa
e no envelhecimento, promovendo saúde inclusiva para pessoas com deficiência. O
último eixo reitera a necessidade de criar fundos de reparação e implementar
políticas de memória e não repetição, além de garantir a participação das
mulheres negras cis e trans nas instâncias de decisão do SUS para assegurar que
as políticas sobre seus corpos sejam construídas com suas vozes e experiências.
A
justiça reprodutiva, entendida como o ápice da luta por equidade, aponta que a
universalidade não se cumpre sem autonomia, proteção e respeito às decisões
reprodutivas das mulheres negras. É nesse horizonte que o Bem Viver deixa de
ser apenas um ideal e se converte em direção política: a reparação histórica
começa nas relações de cuidado, na escuta qualificada, na porta de entrada do
SUS, e se materializa em políticas que garantam que nenhuma vida seja violada
ou perdida por causa da cor da pele.
Ao
exigir que direitos sejam efetivos, a Marcha convoca o Estado a construir um
futuro em que o SUS exerça de forma contundente o princípio da equidade,
promovendo um país que reconheça, proteja e celebre a vida das mulheres negras.
Fonte:
Por Marjorie Chaves, em Outras Palavras

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