Intoxicações
por agrotóxicos crescem 545% em área de soja e milho no Pará
O
avanço da soja e do milho no oeste do Pará vem elevando a produção agrícola de
municípios como Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, mas também tem agravado
um problema de saúde pública: as intoxicações por agrotóxicos.
Os
casos de contaminação aumentaram 545% nos últimos cinco anos, segundo o Painel
de Vigilância em Saúde das Populações Expostas a Agrotóxicos (VSPEA), do
Ministério da Saúde. Foram 200 casos registrados entre 2021 e 2025, ante 31 no
quinquênio anterior. Juntos, os três municípios respondem por 10% das
intoxicações no Pará na década.
O
cenário regional supera a tendência no estado, onde as intoxicações também
cresceram, mas em ritmo menor: 150% em cinco anos, passando de 669 notificações
(2016–2020) para 1.671 (2021–2025).
O
levantamento do Tapajós de Fato e da Repórter Brasil foi feito por meio de
edital da Ajor (Associação de Jornalismo Digital) e do InfoAmazonia, com apoio
do Instituto Serrapilheira. A análise considera apenas os chamados “casos não intencionais”, excluindo
suicídios, abortos, homicídios e outros episódios em que a contaminação foi
intencional.
Comunidades
indígenas, quilombolas e de trabalhadores rurais relatam impactos diários por
pulverizações no oeste do Pará, que afetariam não só as famílias, mas rios e
igarapés. O MPF (Ministério Público Federal) afirma que as aplicações de
agrotóxicos não respeitam as distâncias mínimas de segurança. Por isso, entrou
na Justiça para cobrar fiscalização e outras providências das autoridades.
“Tem
dias que a gente precisa sair de casa, parar de almoçar ou fechar a casa,
porque não aguenta esse fedor. Dá ânsia”, relata uma liderança Munduruku da
aldeia Açaizal, na região do planalto da cidade de Santarém.
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Área com lavouras de soja e milho triplicam em uma década
Situado
na bacia do rio Tapajós, o Planalto Santareno é uma área de terras mais altas e
argilosas com potencial agrícola, abarcando parte dos territórios de Santarém,
Belterra e Mojuí dos Campos. Na região, vivem comunidades Munduruku e também da
etnia Apiaká, além de quilombolas e agricultores familiares.
Na
última década, a área plantada de soja e milho mais que triplicou nos
municípios: subiu de 66 mil hectares em 2014 para 217 mil hectares em 2023,
segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) — equivalente
a duas vezes a área de Belém. No mesmo período, culturas tradicionais recuaram,
como a mandioca, que caiu de 39 mil hectares para apenas 8 mil hectares.
Das 231
intoxicações no Planalto Santareno nos últimos dez anos, 181 casos (78%) estão
relacionados a agrotóxicos usados em lavouras — excluindo os de uso doméstico
ou veterinário, por exemplo. Desse total, 90% se referem a aplicações na soja,
segundo o painel de vigilância do Ministério da Saúde. Apenas Belterra
concentra 135 registros na década.
É na
zona rural do município onde fica a escola Vitalina Motta. Cercada por campos
de soja, a unidade vem enfrentando vários episódios de contaminação nos últimos
anos, conforme reportagem do Tapajós de Fato. Alunos e servidores precisaram
ser levados até postos de saúde após a pulverização causar sintomas como
coceira, náusea, alergias, dor nos olhos e dores de cabeça.
“Tem
comunidades inteiras que a gente só vê a soja mesmo”, conta Sileuza Barreto,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar de
Mojuí dos Campos. “As famílias que utilizavam os igarapés para seu próprio
lazer ou para consumo, hoje em dia não usam mais por estarem impróprios”,
continua.
“Que
progresso é esse que traz a nossa destruição?”, questiona o líder Munduruku de
Santarém, que prefere não se identificar por já ter sofrido ameaças de
produtores rurais locais.
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Pesquisas apontam danos à saúde causados por agrotóxicos
Os
impactos à saúde e ao meio ambiente vêm sendo confirmados também por pesquisas
da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará) e do Instituto Evandro Chagas.
A
pesquisadora Annelyse Rosenthal Figueiredo, da Ufopa, começou seus estudos na
região em 2017, após ser procurada por uma professora de Belterra preocupada
com a situação no entorno de sua escola.
No
doutorado, Figueiredo investigou os impactos das monoculturas de soja e milho
sobre a população local. Entre outros achados, ela identificou uma alta de 667%
nas mortes por doenças do sistema nervoso em Belterra entre 2011 e 2020, em
comparação à década anterior.
“Verifica-se
que 30% dos casos [mortes por doenças do sistema nervoso] foram ocasionados por
doença de Alzheimer. Estudos relacionam essa doença ao uso de agrotóxicos por
idosos. Já no caso de crianças, problemas relacionados a má formação congênita
e leucemias também são indicadores de intoxicação subaguda e crônica,
respectivamente, por agrotóxicos”, concluiu Figueiredo na tese.
Outro
estudo da Ufopa — cujos resultados ainda não foram divulgados em revista
científica —, identificou moradores da aldeia Açaizal e também da comunidade
Jatobá, de trabalhadores rurais, que residem a menos de 50 metros das
plantações, com déficit visual na diferenciação de cores. Trata-se de um
indicativo de exposição ambiental contínua. “As pessoas inalam uma quantidade
tão intensa [durante as aplicações de agrotóxicos] que elas sentem o sabor
dessas substâncias. Isso é um nível de exposição extremamente alto”, declarou a
pesquisadora Eliza Brito Lacerda, durante reunião com o MPF em julho deste ano.
Pesquisas
feitas pelo médico Marcos Mota, do Instituto Evandro Chagas, apontam no mesmo
sentido. “Sintomas neurológicos estão amplamente confirmados no nosso estudo,
tanto em Mojuí dos Campos quanto em Belterra”, ele diz, apontando também outros
sintomas, como alteração do sono, quadro depressivo e irritabilidade.
Mota
destaca impactos sobre a saúde reprodutiva das mulheres, como alterações no
crescimento e desenvolvimento fetal. Os
resultados da pesquisa — que ainda não foram publicados em revista científica,
e por isso não podem ser divulgados — são associados ao uso do glifosato,
agrotóxico mais utilizado do Brasil e de ampla aplicação na soja.
“Esse é
um motivo de grande preocupação, porque os nossos resultados estão de acordo
com a literatura mundial relacionada ao glifosato”, diz o pesquisador, que
investiga os efeitos dos agrotóxicos na região desde 2022.
Um
estudo de 2019 da Universidade de Brasília, em parceria com outras
instituições, já havia identificado a presença do glifosato nos igarapés e na
urina de moradores locais. “Não é uma surpresa para nós. Os casos [de enfermos]
que acompanhamos no sindicato são de pessoas que vivem ao redor da expansão da
soja”, diz Sileuza Barreto.
A
mobilização popular e de movimentos sociais, em colaboração com as instituições
de pesquisa, é o principal motivo para a alta das notificações de intoxicação,
afirma Annelyse Figueiredo.
Ela
destaca o engajamento da comunidade escolar da Vitalina Motta, “que têm
realizado discussões e reflexões, inclusive do ponto de vista pedagógico, sobre
o tema dos agrotóxicos, o que tem refletido no aumento dos casos notificados na
UBS vizinha da escola.”
Apesar
da mobilização, a pesquisadora diz que muitos episódios ainda não são
registrados. “A gente fica sabendo de vários casos, alguns até graves.”
Figueiredo
alerta para a necessidade de a população procurar as Unidades Básicas de Saúde
quando se sentirem mal após uma situação de pulverização e cobrarem que as
notificações sejam feitas. “Isso é direito das pessoas e obrigação dos
profissionais de saúde. O Estado só vai se sensibilizar se conseguirmos mostrar
que existe um problema de saúde pública”, ela diz.
“Muitas
vezes sentimos um mal estar como dor de cabeça, tontura, coceira no corpo e
tentamos resolver em casa mesmo. É preciso entender que a exposição repetida
aos agrotóxicos muitas vezes é silenciosa, mas leva a intoxicações crônicas,
que são as responsáveis pelos casos de doenças degenerativas e câncer, por
exemplo”, completa.
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Aldeia Açaizal convive com pulverizações rotineiras de agrotóxicos
Em
Santarém, a aldeia Açaizal abriga cerca de 50 famílias da etnia Munduruku,
cercadas por campos de soja e milho e afetadas constantemente pelas
pulverizações de agrotóxicos.
“A
gente tinha muitas riquezas naturais, caçava, pescava, colhia frutas. Ninguém
passava necessidade”, relembra uma das lideranças do território, sobre a vida
antes da chegada do agronegócio.
A
partir de 2003, com a instalação do porto da Cargill em Santarém, o avanço das
monoculturas transformou a paisagem: áreas de floresta foram substituídas por
grandes lavouras de soja e milho.
Dados
do sistema Prodes, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), apontam
desmatamento acumulado de 97 mil hectares nos últimos 15 anos em Belterra,
Mojuí dos Campos e Santarém. A maior parte da devastação ocorreu nos últimos
cinco anos: foram 61 mil hectares entre 2021 e 2025.
Os
indígenas relatam diversos efeitos da pulverização, como dor de cabeça,
coceira, alergia e ânsia de vômito — além do forte odor que os obriga a sair de
casa. “A gente sabe que as aplicações são de propósito, nas horas das
refeições, para fazer a gente desistir da terra”, relata a liderança.
A Terra
Indigena Planalto Santareno, onde fica Açaizal, está em processo de demarcação
há mais de uma década, o que deixa as comunidades mais vulneráveis pela falta
de regularização. Eles relatam sofrer ameaças de fazendeiros e grileiros, além
de impedimentos de usarem as estradas de acesso, entre outros constrangimentos.
“A
gente perdeu aquela liberdade de viver como a gente vivia antigamente. Hoje a
gente está passando por essa situação de ser intimidado. Eles disseram que iam
me matar se eu pisasse na área deles”, relata com preocupação e tristeza uma
outra liderança que tem resistido às pressões.
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MPF aciona Justiça por fiscalização e medidas de proteção
A
comunidade Açaizal diz não haver fiscalização quanto à aplicação correta de
agrotóxicos, que garantiria distâncias mínimas entre os campos de soja e as
moradias. Por isso, os próprios moradores têm feito o trabalho de
monitoramento, buscando levar denúncias a entidades como universidades e
organizações de direitos humanos, além do MPF.
A
Procuradoria acionou a Justiça neste ano contra a União, o governo do Pará e a
prefeitura de Santarém, apontando os órgãos públicos como “omissos”.
A ação
pede “um plano emergencial para prevenir e minimizar os impactos da atividade
de pulverização terrestre”, que devem contemplar distâncias mínimas de
segurança entre as áreas de aplicação e zonas urbanas, “especialmente de
comunidades tradicionais, como aldeias e quilombos, escolas, unidades de saúde,
cursos d’água e outras áreas sensíveis”.
O MPF
sustenta que a União deveria ser responsabilizada pela omissão do Ministério da
Agricultura em relação à regulamentação de agrotóxicos; o Estado do Pará e
Adepará por não fiscalizar de forma correta. O município de Santarém é citado
por ser responsável pelo licenciamento ambiental local e não coibir o uso
irregular de agrotóxicos.
O MPF
destaca ainda que o próprio governo do Pará informou, em ofício enviado ao
órgão, nunca haver realizado fiscalização no Planalto Santareno até o ano de
2022.
“Na
Terra Indígena Munduruku Apiaká do Planalto Santareno, a aldeia Açaizal é de
fato a mais afetada pela expansão da pecuária e pelas monoculturas de soja e
milho. No entanto, as demais aldeias da TI — Ipaupixuna, Cavada e Amparador —
também enfrentam graves violações ambientais e aos direitos indígenas, com
registros recorrentes de intimidações e ameaças às lideranças locais”, diz a
inicial.
Nos
autos, a União, por meio da AGU, informou não ser responsável pela fiscalização
das aplicações, que caberia aos entes estaduais.
A
Justiça Federal concordou com a argumentação e se declarou incompetente para
julgar o caso, remetendo-o à Justiça estadual. O MPF, contudo, entrou com
recurso para que o caso seja mantido na vara federal. O processo agora está
suspenso, até que o TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) decida de
quem é a competência.
Procuradas,
a Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará), a Semas (Secretaria de
Estado de Meio Ambiente, Clima e Sustentabilidade) e a Sespa (Secretaria de
Estado de Saúde Pública) disseram que não foram notificadas judicialmente sobre
a ação civil pública. Já a Prefeitura de Santarém não retornou os e-mails da
reportagem.
O
Ministério da Saúde, por sua vez, declarou que monitora “continuamente as
notificações” em todo o país e que o Pará tem 71 municípios considerados
prioritários para a Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos.
“Desse total, 39 já implantaram a estratégia, entre eles Mojuí dos Campos e
Santarém. Belterra ainda não cumpriu todos os critérios necessários”.
Ainda
segundo a nota, a pasta oferece apoio e capacitação aos entes estaduais para a
implementação da política de vigilância, incluindo “incentivo à análise da
qualidade da água destinada ao consumo humano”. Por fim, a Saúde diz que os
Dseis (responsáveis pela saúde indígena) monitoram as denúncias.
Para a
liderança Munduruku da aldeia Açaizal, não se trata apenas de contaminar as
pessoas e o meio ambiente, mas destruir seu modo de vida e sua ancestralidade.
“Quando uma árvore centenária cai, é como se tirassem um pedaço da gente. A
gente adoece espiritualmente”, desabafa.
“A
gente quer continuar vivendo aqui, onde nossos antepassados estão enterrados. É
o nosso lar, o nosso território sagrado”.
Fonte:
Tapajós de Fato e Repórter Brasil

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