A
nova face do crime no Brasil: empresas legais, bancos reais e facções
criminosas atuam na mesma engrenagem
O
Brasil está atravessando uma metamorfose silenciosa — e devastadora — na forma
como a criminalidade se organiza. Por muito tempo, a elite política tratou o
crime organizado como um fenômeno restrito a periferias, presídios e
fronteiras. Mas a realidade de 2025 mostra outra coisa: o crime sofisticou-se,
empresarializou-se e corporativizou-se. Hoje, ele opera em escritórios de
arquitetura moderna, em refinarias privadas, em bancos licenciados pelo Banco
Central e em distribuidoras de combustível com CNPJ impecável. Ao que parece,
hoje, empresas legais, bancos reais e facções criminosas atuam na mesma
engrenagem.
Dois
casos recentes — Refit (a antiga Refinaria de Manguinhos) e Banco Master —
expõem com precisão cirúrgica esse novo modelo de criminalidade: um crime que
se disfarça de economia formal, que circula entre sonegadores bilionários,
bancos permissivos e redes clandestinas operadas por facções como o PCC.
Trata-se de uma engrenagem híbrida que mistura quatro esferas: economia,
política, finanças e crime organizado.
A Refit
e a economia do crime: quando o CNPJ se torna arma
A Refit
sempre buscou transmitir a imagem de empresa moderna, visionária, eficiente.
Mas por trás das fachadas iluminadas e dos anúncios publicitários havia uma
máquina de sonegação e corrupção que se projetou por décadas. A empresa
acumulou dívidas bilionárias de ICMS, PIS, COFINS e outros tributos — dívidas
que nunca foram pagas não por incapacidade, mas por opção.
O mais
simbólico, porém, não está apenas nos números, mas na cultura interna revelada
pelas investigações: parte do esquema de corrupção era literalmente anotado
numa janela de vidro, como se fosse um quadro branco improvisado. Ali, expostos
ao sol, estavam códigos de propina, repasses, instruções de “segurar
fiscalização”, contas paralelas e o mapa da sonegação.
A
naturalidade do gesto revela algo maior: a corrupção deixou de ter vergonha.
Quando um grupo econômico escreve seu esquema num vidro, dentro da própria
sede, é porque sente-se blindado — por advogados, liminares, políticos,
lobistas, operadores financeiros e pela própria fragilidade institucional do
Estado brasileiro.
O que
operava ali não era improviso: era sonegação estruturada, desenhada com
precisão empresarial.
Fraudes,
triangulações, notas frias, transportadoras de fachada, exportações fictícias e
redes clandestinas alimentavam um sistema em que pagar tributos deixou de ser
uma obrigação e tornou-se uma escolha — e sempre se escolhia não pagar.
O
encontro com o crime organizado: a logística invisível que move bilhões
Nos
últimos anos, investigações estaduais e federais revelaram que parte da cadeia
clandestina de combustíveis vinculada à Refit, sobretudo na ponta da
distribuição, era operada por grupos criminosos, incluindo vínculos diretos e
indiretos com o Primeiro Comando da Capital (PCC).
É aqui
que entra a nova criminalidade brasileira:
as
facções descobriram que o setor de combustíveis é ideal para lavagem de
dinheiro, porque envolve:
•
grande volume de capital circulando rápido,
• alta
informalidade no varejo,
•
facilidade de diluir produto legal e ilegal,
• ampla
rede de transportadoras e depósitos paralelos,
•
margens artificiais geradas pela sonegação.
No caso
da Refit, a relação não se dava dentro da refinaria, mas na cadeia subterrânea
que distribuía combustível mais barato porque não pagava impostos. O PCC, que
já controla parte da logística clandestina em São Paulo, encontrou ali a peça
perfeita: abastecer e distribuir combustível irregular gerava lucros
gigantescos com aparência de legalidade.
Crime
organizado trocou a violência ruidosa pelo silêncio da contabilidade
Essa
relação, nunca assumida, mas comprovada por investigações, compõe um retrato
perigoso: a empresa legal fornece o produto; o crime organizado fornece a
logística; e ambos se fortalecem. A sonegação vira lavagem. A lavagem vira
expansão. A expansão vira poder econômico — que depois vira poder político.
Banco
Master e o sistema financeiro capturado
Se a
Refit representa a perna “empresa” da nova criminalidade, o Banco Master
representa a perna “finança”.
O
Master é um banco oficialmente constituído, autorizado pelo Banco Central,
operando sob todas as formalidades legais. Mas, ao mesmo tempo, as
investigações revelam que a instituição se tornou um dos corredores
privilegiados para movimentar dinheiro de origem ilegal, incluindo recursos de
facções, operadores políticos, lobistas, doleiros e empresas com histórico de
irregularidades.
A
engrenagem funcionava porque o Master tinha algo que bancos grandes perderam:
opacidade operacional.
Pequenos
e médios bancos, quando capturados por interesses privados, tornam-se perfeitos
para:
•
trânsito veloz de recursos de origem duvidosa,
•
abertura de contas de fachada,
• uso
de empresas de prateleira para mascarar circulação de valores,
•
operações estruturadas que passam por “inside channels”,
•
saques, depósitos e transferências que ocorrem sob baixa supervisão interna.
Era o
banco da economia cinzenta — assim como a Refit era a refinaria da economia
cinzenta.
O
Master não lavava dinheiro com a cores do submundo tradicional; lavava com
extratos, plataformas digitais e departamentos de compliance feitos para
parecer, não para funcionar.
Assim
como a Refit vendia combustível barato porque não pagava imposto, o Master
movimentava recursos porque não fiscalizava origem. Era a simetria perfeita.
O
Triângulo da Criminalidade Empresarial: Empresa – Banco – Facção
O
elemento mais perturbador é a conexão estrutural entre esses três vértices:
1.
Empresa legal (Refit) – gera fluxo de recursos sonegados, que precisam ser
lavados;
2.
Banco permissivo (Master) – oferece a engenharia financeira para circular esse
capital;
3.
Crime organizado (PCC, milícias, quadrilhas) – fornece logística, força
territorial e rede paralela de distribuição.
É um
triângulo funcional, altamente lucrativo e extremamente difícil de quebrar.
Nenhuma
das partes existe isoladamente; todas se reforçam mutuamente.
O PCC
tem hoje mais controle territorial e econômico sobre combustíveis do que muitas
distribuidoras formais. Milícias dominam o varejo em regiões inteiras. Empresas
privadas se aproveitam da informalidade para turbinar lucros. Bancos oferecem
anonimato digital e circulação rápida de capital.
O
Estado que não enxerga ou não quer enxergar
A
pergunta que o leitor se faz é simples: como isso durou tanto tempo?
A
resposta é incômoda: porque o Estado brasileiro foi capturado.
Capturado
por liminares que suspendem autuações por anos.
Capturado
por lobistas que atuam no Congresso para defender sonegadores contumazes.
Capturado
por parlamentares financiados por grupos que devem bilhões ao fisco.
Capturado
por advogados que transformam o Judiciário em arena de guerra tributária
infinita.
Capturado
por bancos que operam com dupla contabilidade moral.
Capturado
por facções que, silenciosamente, compraram pedaços inteiros da economia.
Enquanto
isso, o cidadão comum, o trabalhador, tem imposto retido na fonte.
A
Refit, não.
O
Master, não.
As
facções, muito menos.
O
Brasil descobriu que o crime virou elite, e que parte da elite virou crime.
A
janela de vidro como alegoria nacional
A cena
da janela de vidro, rabiscada com códigos de propina e instruções para fraudar
o fisco, é a metáfora perfeita do país: o crime está tão confortável que não se
esconde. Está ali, escrito à luz do dia, numa empresa que atravessou governos,
trocou de nome, expandiu operações e manteve, por décadas, o mesmo mecanismo
clandestino de enriquecimento.
No
fundo, aquela janela é o retrato da impunidade.
E da
certeza da impunidade. Porque o crime organizado descobriu o melhor lugar para
se esconder: no interior da economia formal.
O
futuro do Estado e o risco de não acordar agora
Se o
Brasil não enfrentar essa engrenagem agora, não enfrentará nunca.
A
criminalidade empresarial já não está na periferia; está na macroeconomia.
Está no
balanço das empresas, nos extratos bancários, nos postos de combustíveis, nas
rotas logísticas, nos contratos políticos e na contabilidade criativa das
chamadas “empresas-modelo”.
O país
que permite que refinarias funcionem como máquinas de sonegação e bancos
funcionem como lavanderias não perde apenas arrecadação.
Perde
soberania.
Perde
governabilidade.
Perde
futuro.
O crime
organizado venceu quando deixou de ser criminoso e passou a ser empresário.
E
talvez, quando finalmente o Estado se der conta da dimensão da tragédia,
descubra que a janela de vidro da Refit era menos um documento e mais um aviso:
a corrupção tinha deixado de ser segredo.
E
ninguém, absolutamente ninguém, quis apagar.
Fonte:
Por Maria Luiza Falcão, em Brasil 247

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