Dom
Pedro II: Abolicionista tardio ou refém das elites?
Dom
Pedro II, o último imperador do Brasil, é, certamente, uma das figuras mais
contraditórias de nossa história política. Se por um lado, o monarca costuma
ser lembrado como uma figura culta, diplomática e supostamente abolicionista,
por outro, a liderança brasileira mais longeva foi estabelecida sobre uma nação
sustentada pela escravidão. Por esse motivo, a própria abolição, oficializada
por sua filha ao final do século 19, foi um dos fatores determinantes para o
fim da monarquia.
Para
tentar elucidar se o monarca teria sido um abolicionista tardio ou um
governante refém das elites, o Aventuras na História ouviu três especialistas
no assunto. Para o pesquisador Paulo Rezzutti, Dom Pedro II viveu preso a uma
engrenagem política que, desde a abdicação de seu pai, era controlada por
grupos conservadores favoráveis à escravidão. Segundo ele, o imperador era “um
liberal preso num Estado conservador”, refém de elites que dominavam a política
desde a queda de Dom Pedro I — queda, aliás, diretamente ligada a tensões
envolvendo o tráfico negreiro e pressões britânicas, que mais tarde culminariam
na Lei Eusébio de Queirós, responsável por extinguir oficialmente o tráfico
transatlântico.
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Passos calculados
Rezzutti
reforça que, dentro dessa teia de interesses, cada passo de Dom Pedro II
precisava ser calculado. Qualquer movimento brusco em direção à abolição
poderia lhe custar o trono. Por isso, diz o historiador, o imperador “tentava
costurar alianças” e avançar dentro da lógica gradualista defendida desde José
Bonifácio: acabar com a escravidão passo a passo, substituindo a mão de obra
cativa por trabalhadores livres e, ao mesmo tempo, tentando garantir que os
próprios ex-escravizados pudessem, em algum momento, se integrar ao mercado de
trabalho livre. No entanto, esse gradualismo também revela seus limites e
contradições.
Sobre a
Lei Áurea, Rezzutti destaca: quem a assina é a Princesa Isabel. E isso não
acontece por acaso. O imperador, segundo ele, deliberadamente se ausentava do
país em momentos decisivos, permitindo que a filha assumisse o protagonismo das
ações abolicionistas. Assim, criava-se um vínculo simbólico entre Isabel e a
libertação dos escravizados — reconhecimento que ele acreditava que sua própria
geração não havia conseguido conquistar plenamente.
Mas o
gesto teve efeitos profundos. Para muitos fazendeiros, a abolição sem
indenização representou uma ruptura intolerável. Eles viam os escravizados como
propriedade privada, e a ação da princesa de libertá-los sem compensação foi
interpretada como um ataque direto. Isso deu origem aos chamados “republicanos
do 14 de maio”: monarquistas que, um dia após a Lei Áurea, aderiram à causa
republicana por sentirem-se traídos pelo Império. Assim, a vitória moral da
abolição tornou-se também um golpe político mortal para a monarquia.
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Uma grande contradição
O
pesquisador Mauro Henrique Miranda de Alcântara, autor de “D. Pedro II e a
emancipação dos escravos”, descreve Dom Pedro II como um homem pessoalmente
abolicionista desde jovem, influenciado por sua educação liberal e pela pressão
britânica. Mas o imperador, afirma ele, dependia politicamente justamente da
elite escravista que dava sustentação ao regime. Daí nasce a contradição
central: entre convicção pessoal e sobrevivência política.
Segundo
Alcântara, as leis gradualistas — Ventre Livre, Sexagenários e, finalmente, a
Lei Áurea — são a prova desse jogo de tensões. Ele cita José Murilo de
Carvalho, que afirma que Dom Pedro II “empurrou” a abolição dentro do possível,
avançando sempre no limite do que a estrutura política permitia. Mas também
lembra o contraponto do historiador Barman, que enxerga na postura imperial uma
espécie de “covardia política”: a incapacidade de romper de fato com os
interesses escravistas que sustentavam o Império.
O
paradoxo, diz Alcântara, é que a Lei Áurea cumpriu simultaneamente duas funções
contraditórias: coroou moralmente o regime como uma monarquia “civilizada”, ao
mesmo tempo em que o deixou sem base social. Perdeu os fazendeiros e não ganhou
o apoio político dos ex-escravizados, que permaneciam excluídos. O Império,
conclui, ficou “no ar”.
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Disposição para as consequências
A
análise de Luca Lima Lacomini, doutorando e mestre em História pela
Universidade Federal do Paraná, é ainda mais crítica. Para ele, Dom Pedro II
“estava mais próximo de ser refém das elites, porque se ele de fato se
importasse com a vida dos escravizados, com todas as injustiças que eles
viviam, ele teria feito algo para inseri-los na sociedade.”
Assim,
se o imperador estivesse realmente preocupado com a dignidade dos escravizados,
teria ido além da assinatura de leis libertadoras. Mas isso não aconteceu. Os
ex-escravizados seguiram à margem, sem recursos, sem terra e sujeitos a
salários miseráveis. A abolição, nesse sentido, foi um marco jurídico, mas não
uma transição digna.
As
leituras dos três especialistas, embora distintas, convergem num ponto: a
questão sobre qual teria sido papel de Pedro II no processo da abolição não
pode ser entendida sem que sejam encaradas as contradições profundas entre seu
posicionamento pessoal e a estrutura política que o cercava. Ele foi liberal,
mas governou sustentado por conservadores. Pode ter sido pessoalmente contrário
à escravidão, mas foi politicamente incapaz — ou indisposto — de romper com ela
antes de 1888. Defendeu valores modernos, mas não preparou o país para integrar
os libertos. No fim, a abolição fortaleceu sua imagem moral, mas acabou por
acelerar a queda do regime que ele tanto buscou preservar.
Fonte:
Aventura na História

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