terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Dom Pedro II: Abolicionista tardio ou refém das elites?

Dom Pedro II, o último imperador do Brasil, é, certamente, uma das figuras mais contraditórias de nossa história política. Se por um lado, o monarca costuma ser lembrado como uma figura culta, diplomática e supostamente abolicionista, por outro, a liderança brasileira mais longeva foi estabelecida sobre uma nação sustentada pela escravidão. Por esse motivo, a própria abolição, oficializada por sua filha ao final do século 19, foi um dos fatores determinantes para o fim da monarquia.

Para tentar elucidar se o monarca teria sido um abolicionista tardio ou um governante refém das elites, o Aventuras na História ouviu três especialistas no assunto. Para o pesquisador Paulo Rezzutti, Dom Pedro II viveu preso a uma engrenagem política que, desde a abdicação de seu pai, era controlada por grupos conservadores favoráveis à escravidão. Segundo ele, o imperador era “um liberal preso num Estado conservador”, refém de elites que dominavam a política desde a queda de Dom Pedro I — queda, aliás, diretamente ligada a tensões envolvendo o tráfico negreiro e pressões britânicas, que mais tarde culminariam na Lei Eusébio de Queirós, responsável por extinguir oficialmente o tráfico transatlântico.

<><> Passos calculados

Rezzutti reforça que, dentro dessa teia de interesses, cada passo de Dom Pedro II precisava ser calculado. Qualquer movimento brusco em direção à abolição poderia lhe custar o trono. Por isso, diz o historiador, o imperador “tentava costurar alianças” e avançar dentro da lógica gradualista defendida desde José Bonifácio: acabar com a escravidão passo a passo, substituindo a mão de obra cativa por trabalhadores livres e, ao mesmo tempo, tentando garantir que os próprios ex-escravizados pudessem, em algum momento, se integrar ao mercado de trabalho livre. No entanto, esse gradualismo também revela seus limites e contradições.

Sobre a Lei Áurea, Rezzutti destaca: quem a assina é a Princesa Isabel. E isso não acontece por acaso. O imperador, segundo ele, deliberadamente se ausentava do país em momentos decisivos, permitindo que a filha assumisse o protagonismo das ações abolicionistas. Assim, criava-se um vínculo simbólico entre Isabel e a libertação dos escravizados — reconhecimento que ele acreditava que sua própria geração não havia conseguido conquistar plenamente.

Mas o gesto teve efeitos profundos. Para muitos fazendeiros, a abolição sem indenização representou uma ruptura intolerável. Eles viam os escravizados como propriedade privada, e a ação da princesa de libertá-los sem compensação foi interpretada como um ataque direto. Isso deu origem aos chamados “republicanos do 14 de maio”: monarquistas que, um dia após a Lei Áurea, aderiram à causa republicana por sentirem-se traídos pelo Império. Assim, a vitória moral da abolição tornou-se também um golpe político mortal para a monarquia.

<><> Uma grande contradição

O pesquisador Mauro Henrique Miranda de Alcântara, autor de “D. Pedro II e a emancipação dos escravos”, descreve Dom Pedro II como um homem pessoalmente abolicionista desde jovem, influenciado por sua educação liberal e pela pressão britânica. Mas o imperador, afirma ele, dependia politicamente justamente da elite escravista que dava sustentação ao regime. Daí nasce a contradição central: entre convicção pessoal e sobrevivência política.

Segundo Alcântara, as leis gradualistas — Ventre Livre, Sexagenários e, finalmente, a Lei Áurea — são a prova desse jogo de tensões. Ele cita José Murilo de Carvalho, que afirma que Dom Pedro II “empurrou” a abolição dentro do possível, avançando sempre no limite do que a estrutura política permitia. Mas também lembra o contraponto do historiador Barman, que enxerga na postura imperial uma espécie de “covardia política”: a incapacidade de romper de fato com os interesses escravistas que sustentavam o Império.

O paradoxo, diz Alcântara, é que a Lei Áurea cumpriu simultaneamente duas funções contraditórias: coroou moralmente o regime como uma monarquia “civilizada”, ao mesmo tempo em que o deixou sem base social. Perdeu os fazendeiros e não ganhou o apoio político dos ex-escravizados, que permaneciam excluídos. O Império, conclui, ficou “no ar”.

<><> Disposição para as consequências

A análise de Luca Lima Lacomini, doutorando e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná, é ainda mais crítica. Para ele, Dom Pedro II “estava mais próximo de ser refém das elites, porque se ele de fato se importasse com a vida dos escravizados, com todas as injustiças que eles viviam, ele teria feito algo para inseri-los na sociedade.”

Assim, se o imperador estivesse realmente preocupado com a dignidade dos escravizados, teria ido além da assinatura de leis libertadoras. Mas isso não aconteceu. Os ex-escravizados seguiram à margem, sem recursos, sem terra e sujeitos a salários miseráveis. A abolição, nesse sentido, foi um marco jurídico, mas não uma transição digna.

As leituras dos três especialistas, embora distintas, convergem num ponto: a questão sobre qual teria sido papel de Pedro II no processo da abolição não pode ser entendida sem que sejam encaradas as contradições profundas entre seu posicionamento pessoal e a estrutura política que o cercava. Ele foi liberal, mas governou sustentado por conservadores. Pode ter sido pessoalmente contrário à escravidão, mas foi politicamente incapaz — ou indisposto — de romper com ela antes de 1888. Defendeu valores modernos, mas não preparou o país para integrar os libertos. No fim, a abolição fortaleceu sua imagem moral, mas acabou por acelerar a queda do regime que ele tanto buscou preservar.

 

Fonte: Aventura na História

 

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