quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Gilberto Maringoni: México – como nasce uma revolta

O roteiro é conhecido. Milhares de pessoas, convocadas majoritariamente em redes sociais saem às ruas em fúria, exigindo a derrubada de governos eleitos. Aparentemente sem lideranças definidas, a massa se concentra em locais públicos, brandindo difusas pautas contra a corrupção, a insegurança, os partidos tradicionais e a própria democracia. Logo aparecem grupos de provocadores, munidos de marretas, barras de ferro e serras elétricas, que partem para a depredação de edifícios públicos.

Foi o que se viu no sábado, 15 de novembro, no Zócalo, principal praça da Cidade do México, em frente ao Palácio Nacional, sede do governo. Planejados como eventos simultâneos em várias cidades, os protestos fracassaram na maior parte delas. Calcula-se, no entanto, que 17 mil pessoas tenham marchado na capital, estabelecendo um confronto que resultou em cerca de uma centena de policiais e vinte manifestantes feridos. Nova tentativa de protesto na quinta, 20 de novembro, fracassou, ao levar menos de 200 pessoas às ruas da capital.

A mídia tradicional logo definiu o movimento como uma rebelião da geração Z, aquela nascida entre 1995 e 2010. A classificação busca estabelecer conexões com mobilizações semelhantes no Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Marrocos e Peru. Pesquisas de opinião mostram a fragilidade do rótulo, ao constatar que 71% dos jovens entre 18 e 25 anos aprova o governo de Claudia Sheinbaum.

Uma investigação da Infodemia – órgão público voltado à análise da internet – revela que a marcha foi “impulsionada artificialmente” por “uma rede digital de contas (…) promovida por políticos, comentaristas e até mesmo ex-presidentes do México”. O ponto de partida, de acordo com a instituição, se deu em 3 de outubro, através de reportagem da TV Azteca que ligava o descontentamento dos jovens mexicanos a um suposto “movimento global”.

A partir daí, 179 contas de Tiktok e 359 comunidades do Facebook começaram a difundir a organização de uma passeata contra o governo, com farto uso de imagens geradas por inteligência artificial. A elas se juntou a Atlas Network, rede de comunicação internacional acusada de realizar campanhas de denúncias contra administrações progressistas, como as de Lula, no Brasil, Cristina Kirchner, na Argentina, Evo Morales, na Bolívia, e Pedro Castillo, no Peru. Cerca de US$ 5 milhões foram gastos na empreitada, relata Infodemia.

A figura mais notável a incentivar os protestos atende pelo nome de Ricardo Salinas Pliego, com forte influência entre o grande empresariado. Dono da já citada TV Azteca, do Banco Azteca, da Seguradora Azteca e do Grupo Elektra, rede varejista presente no México, Guatemala, Honduras e Panamá, entre outros empreendimentos, Salinas Pliego detém a quinta maior fortuna do país.

Ex-aliado de Andrés Manuel López Obrador (2018-2024), correligionário e antecessor da atual presidenta, ele afastou-se do governo e passou a atacar Claudia Sheinbaum, movido por causa pouco nobre: evitar por todos os meios pagar US$ 4 bilhões em impostos sonegados por anos a fio. Sua ira explodiu quando a presidenta rejeitou publicamente perdoar a dívida, no início do ano.

Desde então, não mede palavras para acusar uma trama “do regime narcotraficante”, criminoso, corrupto e comunista do Morena (Movimento Regeneração Nacional), partido do governo. Para coroar o imbróglio, é preciso assinalar que o milionário foi derrotado na Suprema Corte.

Os ânimos se radicalizaram em 1º. de novembro, quando foi assassinado Carlos Manzo, prefeito de Uruapan, cidade de 240 mil habitantes localizada no estado de Michoacán, um dos mais violentos da federação. Carlos Manzo defendia linha dura contra o crime organizado e ganhara o apelidado de “Bukele mexicano”, em referência ao presidente de El Salvador, que estabeleceu uma espécie de estado de sítio permanente em seu país. Desde o início do ano, outros seis prefeitos foram mortos de forma violenta.

Claudia Sheinbaum herdou uma realidade calamitosa que remonta mais de meio século de desmonte social e concentração de renda. Acusada de nada fazer para deter as facções do crime organizado, que domina vastas partes do território e da institucionalidade, ela tem se colocado de maneira firme na defesa de direitos das maiorias empobrecidas. Se na década passada o mote central da direita era denunciar redes de corrupção incrustadas em governos progressistas, a chave agora virou, a partir de Washington, que coloca o “narcoterrorismo” alvo principal na América Latina.

Apesar disso, a insuspeita Economist da semana passada constatou: “O México se tornou um lugar menos perigoso sob a liderança de Claudia Sheinbaum”. Uma reportagem de duas páginas aponta que em 14 meses de governo, a atual presidenta reduziu a taxa de mortes violentas em 14%. “Contar apenas os homicídios ignora uma parte importante do problema: as milhares de pessoas que desaparecem todos os anos, muitas assassinadas e enterradas em covas sem identificação”, afirma a publicação. Dois terços desses crimes estão associadas ao crime organizado.

Desafiada internamente pela extrema direita, Claudia Sheinbaum é também atacada por Donald Trump, a quem critica duramente. “Não estou feliz com o México”, declarou ele no dia 17 de novembro. Citando sua provocação militar contra a Venezuela, o chefe da Casa Branca, afirmou que teria “orgulho” de atacar barcos de narcotráfico do país vizinho, de onde se origina a maior parte do fentanil que circula nos EUA.

Em 3 de novembro, a NBC News já noticiara que o governo republicano traça planos para deslocar forças de segurança para o interior do México. A exaltação da guerra purificadora contra o crime passou a unificar a atuação extremismo reacionário no plano internacional.

Claudia Sheinbaum comanda uma administração progressista num continente marcado pelo avanço da extrema-direita, mantendo altos índices de aprovação. Os números oscilam entre 70% (El Financiero) e 78% (Enkoll). Sua gestão conta com mais de dois terços de apoio nas duas casas Legislativas. Em junho último, o México se tornou o primeiro país do mundo a eleger juízes, dos tribunais locais à Suprema Corte, num total de quase três mil cargos. É possível que tais iniciativas dificultem o surgimento de lideranças nacionais neofascistas no país.

Segunda maior economia da América Latina e fortemente dependente dos Estados Unidos, seu principal parceiro comercial, o México, a exemplo da maioria dos países do continente, pratica políticas monetária e fiscal restritivas. O país oscila há quatro décadas na média de 2% de crescimento ao ano (em 2020, auge da pandemia, o PIB despencou 8,4%).

A inflação deve fechar o ano em 3%, de acordo com projeções do FMI. Embora apresente baixíssima taxa de desemprego (2,4%), a informalidade alcança 53,7% da população. Os governos do Morena exaltam o feito de retirarem 8,3 milhões de pessoas da linha de pobreza, entre 2022 e 2024.

No mundo das realidades paralelas nada disso importa. Como em “Assim é (se lhe parece)”, clássico da dramaturgia escrita por Luigi Pirandello (1867-1936), que transitou do fascismo ao antifascismo, a realidade objetiva seria uma impossibilidade lógica. A extrema direita atual leva a máxima do escritor italiano ao paroxismo em sua ação política.

¨      A verdade sobre o protesto da “Geração Z” mexicana. Por Kurt Hackbarth

Uma marcha juvenil com a notável ausência de jovens. Uma marcha contra a violência que terminou em violência deliberadamente provocada. Uma marcha apartidária com um de seus principais proponentes a soldo do partido conservador do país. Uma marcha inspirada em imagens do popular quadrinho de esquerda One Piece, que degenerou em um turbilhão de ódio da extrema direita.

As contradições em torno da chamada marcha da “Geração Z” no México, em 15 de novembro — também conhecida como os “protestos e tumultos do 15N” — são inúmeras. Além disso, elas oferecem uma lição prática sobre o “modelo de franquia” do simbolismo de manifestações internacionais, no qual um evento doméstico é apropriado para atender à agenda dos franqueados. Mas, principalmente, demonstram a deliberada obtusidade da imprensa corporativa internacional, que se deixa levar, repetidamente, pela história aparente em detrimento da real.

<><> A terra quente

Oevento que desencadeou a marcha foi certamente real. Em 1º de novembro, Carlos Manzo, o polêmico prefeito da cidade de Uruapan, em Michoacán, foi assassinado a tiros em um evento público durante as festividades do Dia dos Mortos. Após ser contido, o assassino, um jovem de dezessete anos da cidade vizinha de Paracho, foi morto pelas forças de segurança em circunstâncias misteriosas.

Agindo rapidamente, o governo federal prendeu o suposto mentor intelectual, membro de uma célula criminosa ligada ao cartel Jalisco Nueva Generación, juntamente com sete guarda-costas pessoais de Manzo, sob suspeita de cumplicidade. A presidenta Claudia Sheinbaum também anunciou seu “Plano Michoacán”, um pacote de MX$ 57 bilhões (US$ 3 bilhões) em medidas de segurança, econômicas, educacionais e culturais para auxiliar o estado em dificuldades e sua região, apropriadamente chamada de Tierra Caliente, ou Terra Quente.

Em meio a todas as manchetes oportunistas que surgiram a partir do evento, um breve contexto é importante. Sheinbaum conseguiu reduzir a taxa de homicídios em impressionantes 37% em seu primeiro ano de mandato. Juntamente com seus altíssimos índices de aprovação, uma sólida maioria dos eleitores aprova sua gestão da questão da segurança. De acordo com pelo menos uma importante pesquisa realizada nos dias seguintes ao tiroteio, seus índices de aprovação na verdade aumentaram.

Tudo isso, é claro, é um consolo insuficiente para aqueles que vivem em áreas onde a violência relacionada ao crime organizado ainda faz parte do cotidiano. O assassinato de Manzo certamente não foi um caso isolado — rico em água, minerais e produtos de exportação como abacates e limões, o estado de Michoacán viu um número alarmante de sete prefeitos assassinados apenas de 2022 para cá. Outros, como o prefeito da cidade de Cuitzeo, na região de Bajío, sofreram múltiplas tentativas de assassinato. Para piorar a situação, o governador de Michoacán, Alfredo Ramírez Bedolla, se desviou da missão mais ampla de restaurar a paz na região, com sua administração atolada em escândalos pessoais e disputas políticas internas.

<><> Desestabilização dramatizada

Mas como as crises de Michoacán culminaram na marcha na Cidade do México é uma questão completamente diferente. Bem cientes de sua profunda impopularidade entre os eleitores, os partidos de direita do México tornaram-se especialistas em disfarçar eventos altamente partidários como manifestações não partidárias da “sociedade civil”. Um exemplo disso são as manifestações da Marea Rosa, ou Maré Rosa, realizadas esporadicamente durante o governo do antecessor de Sheinbaum, Andrés Manuel López Obrador (AMLO).

Desta vez, os mesmos interesses decidiram importar o pacote da “Geração Z”, que recentemente ganhou destaque em países como Indonésia, Nepal e Madagascar, enxertando-o em uma “marcha da juventude” previamente anunciada. Um dos principais líderes jovens da marcha, no entanto, acabou sendo contratado pelo Partido de Ação Nacional (PAN), de direita, por mais de 2 milhões (US$ 115.000). Quanto às contas de mídia social, elas foram rastreadas até uma agência de marketing no estado de Jalisco e, de lá, até um ex-congressista do outro partido de oposição, o Partido Revolucionário Institucional (PRI).

Nos dias que antecederam a marcha, e sob o pretexto de simplesmente explorar a iconografia pirata do mangá One Piece, essas contas de redes sociais se engajaram em uma clara campanha de incitação à violência, com pôsteres de Sheinbaum e AMLO com a legenda “Procurados Vivos ou Mortos”, além de vídeos grosseiros, gerados por inteligência artificial, do Palácio Nacional e da Catedral Metropolitana em chamas. (Vídeos de IA também seriam usados ​​após a marcha para simular as multidões que a marcha não conseguiu atrair por si só.) Mesmo uma análise superficial das contas deixou abundantemente claro que esses esforços no estilo “como vão, jovens?” estavam longe de ser a manifestação espontânea de uma campanha juvenil.

De fato, no dia da marcha, a relativa ausência de jovens tornou-se dolorosamente evidente. Aliás, o perfil demográfico dos manifestantes era bastante similar ao das marchas da Marea Rosa de anos anteriores: classe média a média-alta, faixa etária média a alta. Enquanto isso, o assassinato de Manzo — em teoria, a razão de ser da marcha — acabou se perdendo em meio a uma enxurrada de insultos dirigidos à presidenta. Paralelamente, surgiram os ataques usuais, agora exaustivamente repetidos, ao MORENA, à presidenta Sheinbaum e ao partido de AMLO, além de uma confusão fundamental sobre se os manifestantes estavam enfrentando um “narcogoverno” ou — ao contrário — um “governo dominado pelo crime organizado”. Um orador competente poderia ter dado alguma coerência a essa confusão e encontrado uma maneira de canalizar as reivindicações dos manifestantes em uma mensagem mais unificada. Mas, à medida que as pessoas entravam na principal praça da Cidade do México, a Praça da Constituição, não havia palco nem orador.

Em vez disso, um grupo de provocadores armados com ferramentas especiais e cordas começou a desmantelar as barreiras que protegiam o Palácio Nacional e a atacar o cordão policial atrás dele. Em uma cena particularmente brutal, incitada pelo site argentino de extrema-direita La Derecha Diario, um policial foi cercado, chutado e espancado com essas mesmas ferramentas. Entre os dezoito presos por atos violentos estava uma delegada regional do PAN no bairro de Cuauhtémoc, cuja chefe de distrito, Alessandra Rojo de la Vega, foi acusada de financiar os provocadores.

A meio quarteirão de distância, sem conseguir chegar às portas do Palácio Nacional, neonazistas estavam ocupados pichando “putia judía” nas portas da Suprema Corte. O horror havia sido desencadeado e o efeito desejado, alcançado. “A revolução popular global é imparável!”, bradou Alex Jones. “Visitei a Cidade do México no fim de semana; há alguns problemas sérios lá”, disse Donald Trump, acrescentando que “não estava feliz” com o país. Provocando a ideia de uma invasão, a Embaixada dos EUA no México — chefiada pelo ex-boina verde e agente da CIA Ron Johnson — tuitou a seguinte mensagem : “Só acontecerá se eles [o México] solicitarem”.

Segundo uma reportagem do jornal Milenio, cerca de oito milhões de bots pagos por membros do PAN e organizações privadas trabalharam intensamente na preparação para o 15N, ocupando cerca de 46% de toda as conversas nas redes sociais. É a maior campanha desse tipo no México desde a massiva campanha presidencial de 2024. E o efeito não foi sentido apenas pela extrema-direita.

Da Reuters à BBC e ao Guardian, os meios de comunicação anglófonos acolheram acriticamente a narrativa pretendida. Um exemplo ilustrativo foi a Associated Press, cujo artigo em espanhol admitiu, no parágrafo inicial, que havia mais críticos do governo do que jovens presentes na marcha, um fato omitido da versão em inglês do artigo.

<><> Bilionários se comportando mal

Por trás desse espetáculo midiático internacional, interesses mais locais trabalhavam arduamente. Após a emenda da reforma judicial, ratificada em setembro de 2024, eleições diretas foram realizadas em junho deste ano para metade do judiciário federal e para todo o Supremo Tribunal Federal. Em 13 de novembro, apenas dois dias antes da marcha, o novo tribunal rejeitou a última tentativa do magnata Ricardo Salinas Pliego de se esquivar do pagamento de impostos atrasados ​​de seu Grupo Elektra em sete processos que remontam a 2008.

Os processos, que notoriamente foram engavetados pelo ex-ministro Luis María Aguilar, totalizaram a impressionante quantia de 48,3 bilhões de pesos (US$ 2,6 bilhões). Salinas Pliego também é o chefe da segunda maior rede de televisão do México, a TV Azteca, que ele, previsivelmente, vem instrumentalizando tanto contra a nova Suprema Corte quanto a favor da retórica mais repugnante da extrema direita. No dia da decisão da Suprema Corte, o principal âncora da Azteca anunciou, em meio a uma tempestade, que era a “Quinta-feira Negra”. Quanto à marcha em si, ela recebeu ampla cobertura. Agora que a oligarquia mexicana não tem mais o judiciário sob seu controle, e com uma perspectiva de retomar a presidência e o Congresso, podemos esperar mais agitação artificial desse tipo nos próximos meses e anos.

No fim das contas, porém, tudo foi em vão. Uma nova marcha, rapidamente convocada para 20 de novembro, dia em que se comemora o início da Revolução Mexicana, teve uma adesão tão escassa que os jornalistas superavam em número os manifestantes. A expressão de decepção no rosto de Ciro Gómez Leyva, apresentador do programa Ciro por la Mañana da Rádio Fórmula, resumiu a reação de todo um grupo. O evento de desestabilização que haviam planejado fracassou. Sem dúvida, tentarão novamente.

 

Fonte: Jacobin Brasil

 

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