Quem
exorcizará os exorcistas?
Será o
tema do abuso espiritual a próxima grande purificação da Igreja Católica, após
os escândalos de pedofilia?
O
artigo é de Luís Alberto Bassoli, graduando em Teologia pela UCB, licenciado em
Filosofia e Pedagogia. Educador desde 1989, vive a espiritualidade carismática
católica desde 1983.
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Eis o artigo.
Os
exorcistas são, na doutrina da Igreja Católica, um pequeno grupo de padres
escolhidos a dedo pelos bispos para acompanhar casos de pessoas com
comportamentos inusuais. Devem discernir e descobrir a origem dos fenômenos
para, sendo o caso, libertar o infiel da influência maligna.
Fora do
Direito Canônico, no senso comum da população exorcistas são padres, pastores
ou leigos e leigas que expulsam espíritos de pessoas endemoniadas, até com
algum espetáculo, como se vê em cultos e programas da TV.
E tais
espetáculos são tão ‘diabólicos’ que fica a pergunta: quem vai exorcizar os
exorcistas?
Lembrei-me
desta frase que eu e Antônio Carlos Santini lemos quando evangelizávamos juntos
na Belo Horizonte dos anos 80 ao ler o livro Abuso Espiritual: A Manipulação
Invisível, de Gabriel Perissé .
O
autor, renomado educador, psicanalista e teólogo, adentra um tema que aflorou
não só na Igreja Católica, mas em diferentes denominações e religiões a partir
de inúmeras denúncias e abordagens mundo afora.
São
abusadores anônimos ou famosos, como o caso do goiano João Teixeira Faria, o
João de Deus, líder espiritual inclusive de muitas celebridades, denunciado por
inúmeros estupros.
Na
Igreja Católica vieram à tona mundo afora neste século denúncias de abusos
sexuais, depois de abafados por décadas, inicialmente contra menores e depois
também contra religiosas.
O tema
do livro é a gênese do abuso. Que envolve, além de possíveis intimidades
sexuais, a vida profissional e financeira, vocacional e estudantil, familiar e
em especial a própria consciência do indivíduo: o uso da autoridade religiosa,
do nome de Deus, para manipular o fiel seguidor.
O autor
discorre sobre a relação entre os vários abusos e o abuso espiritual; o perfil
do fiel manipulável; como se dá a manipulação no dia a dia; as características
sociológicas, psicológicas, teológicas e pastorais de grupos onde a manipulação
ocorre. Por fim, sugere dois caminhos para a defesa contra a manipulação: a
libertação do medo (arma principal no processo de abuso) e a prática de um
maduro discernimento.
Este
último permite que não se confundam normais ‘embates’ da vida social como se
fossem abusos espirituais, para evitar o risco de uma caça às bruxas devido às
nuances do tema.
Discordâncias,
algumas acaloradas, sempre vão acontecer. Nem tudo é abuso.
Com
extensa bibliografia e a partir de sua vivência educacional, profissional e
pastoral, o autor permeia o livro de experiências dolorosas e práticas de um
fenômeno ainda não enfrentado diretamente pelas autoridades da Igreja Católica.
Abuso
espiritual é um tema conhecido, mas normalmente tratado como de ‘casos isolados
e lamentáveis’, ou seja, são pessoas isoladas que abusam de sua autoridade,
ministério e ou carisma, e isso é triste. E, o quanto e quando possível,
minimizado.
Observe
que esta abordagem foi a mesma sobre os abusos contra menores no século
passado: não seria um problema institucional, mas localizado em alguns
elementos que ‘caíram em pecado’.
O tempo
mostrou o que a sociologia já ensina desde o fim do século XIX: fenômenos
‘isolados’ que se repetem frequentemente em determinada realidade não são
‘isolados’. Possuem uma explicação sistêmica.
Isso é
percebido mais facilmente por pessoas que foram abusadas, ou ainda seus filhos
e filhas, do que pelos praticantes da fé, que tendem sempre a relativizar os
abusos que se passam em seu ambiente.
Enquanto
congregações e ordens religiosas caminharam após o Concílio Vaticano II para
uma abordagem menos rigorista sobre a obediência, buscando uma maturidade maior
do indivíduo ao se posicionar diante do chamado de Deus por meio do carisma
institucional, o fenômeno das Novas Comunidades (nem todas, mas muitas delas
ligadas à Renovação Carismática Católica) tem trazido à tona inúmeros relatos
de abusos no ambiente religioso na relação de obediência/autoridade.
Perissé
não nomina quase nenhuma instituição em sua obra, que tem uma abordagem mais
estrutural sobre o tema. E isso é muito bom, já que como ele demonstra o
problema não seria o Monsenhor X, a Irmã Y, o Frei Z, o leigo 0: é uma dinâmica
construída em relações que se baseiam em falsas premissas e pode acontecer em
qualquer grupo religioso.
Não são
‘fatos isolados e lamentáveis’.
E isso
provoca bastante o leitor.
Ao ler
o livro termina-se por lidar com as próprias histórias de abusos (em maior ou
menor grau), ou mesmo fazendo um exame de consciência, levando o leitor a rever
suas ações abusivas.
Quem
viveu ou vive a espiritualidade da Renovação Carismática Católica, como eu
desde 1983, alguns insights são oportunos. Sobre esta espiritualidade, a monja
beneditina Irmã Blandina, do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças de Belo
Horizonte, sintetizava que deveria ser como aquela que a trajetória da
espiritualidade da vida religiosa oriental tanto valorizou, ou seja, a da
iluminação pessoal pelo Espírito Santo, de forma a amadurecer a vida espiritual
do fiel a ponto de não ‘depender’ totalmente da obediência cega ao superior.
Algo impensável na vida religiosa do Ocidente, segundo ela.
Isso
coincidia com aqueles que viam na espiritualidade carismática a vivência da
Nova Aliança, expressa no capítulo 31 do livro de Jeremias:
Eis que
dias virão—oráculo de Iahweh—em que selarei com a casa de Israel (e com a casa
de Judá) uma aliança nova. Não como a
aliança que selei com seus pais, no dia em que os tomei pela mão para fazê-los
sair da terra do Egito — minha aliança que eles mesmos romperam, embora eu
fosse o seu Senhor, oráculo de Iahweh! Porque esta é a aliança que selarei com
a casa de Israel depois desses dias, oráculo de Iahweh. Eu porei minha lei no
seu seio e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu Deus e eles serão
meu povo. Eles não terão mais que
instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: “Conhecei a Iahweh!” Porque todos
me conhecerão, dos menores aos maiores, (grifo do autor) — oráculo de Iahweh —
porque vou perdoar sua culpa e não me lembrarei mais de seu pecado.
Isso
destoa completamente de alguns fenômenos na história da RCC no Brasil, que se
configuram praticamente em um novo clericalismo, agora também de leigos, sobre
o qual o Papa Francisco alertou os riscos:
“O
clericalismo deve ser expulso. Um sacerdote, um bispo que cai nesta atitude faz
muito mal à Igreja. Mas é uma doença contagiosa e pior que um padre ou bispo
clerical são os leigos clericalizados: por favor, são uma peste na Igreja.
Leigo é leigo.”
No
início do movimento aspirava-se ouvir o Espírito Santo. Depois, parecia
aspirar-se a ouvir o que o líder ouviu do Espírito. E, após isso, há líderes
que fazem parecer de que querem deixar claro que o Espírito que fala a ele é
mais do que o dos ouvintes.
O
falecido Dom Mário Gurgel, bispo da Diocese de Itabira-Fabriciano, dizia
existir um ditado na igreja da Alemanha que ensinava que todo mundo tem um
‘passarinho doido’ na cabeça, mas os bispos pensam que o ‘passarinho doido’
deles é o Espírito Santo. Alertava aos carismáticos o risco sobre o próprio
‘passarinho doido’.
Voltando
ao tema do livro. Sinto que se pode ainda aprofundar em sua abordagem um
fenômeno (cabe continuação!): enquanto enfatiza o abuso, visando o apoio a
abusados, podemos e devemos nos voltar também à gênese do próprio abusador e
abusadora.
Considerando
que necessariamente não são todos e todas sociopatas, como pode uma religiosa
piedosa se transformar em uma impiedosa líder de comunidade, vivendo no oculto
uma vida ‘folgada’ (embora com uma imagem pública de ‘santinha’), ao mesmo
tempo que suas noviças são massacradas no dia a dia? Como uma comunidade que
começa vivendo pela Providência Divina se torna uma empresa capitalista que,
após pedir ouro aos seus seguidores, busca dinheiro público indevido? Como um
piedoso sacerdote que se dedica aos pobres mais excluídos, mimetizando um
Francisco de Assis do século XX, revela-se abusador de suas seguidoras? Como
uma carreira política de um católico se inicia com apelo do testemunho cristão
em busca de uma civilização do amor se transforma em discurso de ódio a
demonizar os opositores, abusando de sua condição de católico até apoiar um
golpe de Estado que incluía assassinato dos adversários?
E abuso
não é exclusividade do âmbito de apenas ‘uma linha pastoral’ na Igreja. Certa
vez um político entrou na escola de Ensino Médio em que eu trabalhava com ódio
mortal sobre mim (segundo a diretora, se estivesse armado ele teria atirado)
devido a um mal-entendido sobre uma aula que eu dera ao seu filho. A diretora
que o recebeu o ouviu e percebeu que o descontrole tinha origem emocional do
fato de que uma freira ligada à Teologia da Libertação (TdL) usava as aulas de
religião em uma escola pública para atacá-lo, quando ele era prefeito de uma
pequena cidade. Na sala do filho dele. De 10 anos de idade.
O
ambiente dos anos 80 no Brasil, em torno da TdL, era profundamente abusador
sobre quem pensava diferente.
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Tem que ser assim?!
Não
tenho, e talvez nem haja, resposta total para esta pergunta. Mas, se o poder
corrompe, talvez haja uma forma de se exercê-lo sem dele abusá-lo.
A
leitura de Abuso Espiritual nos faz refletir que temos uma situação muito mais
complexa do que de ‘fatos isolados’ para lidar. Talvez mais ampla do que a dos
abusos de menores, já que estes eram feitos ocultamente. Os abusos espirituais,
no geral, são ‘públicos’ e até mesmo valorizados, por darem a entender que:
a) são
caminhos legítimos de poder, porque quem faz age como iluminado) e
b) de
santidade para quem recebe o abuso, pois precisa passar por muitas provações
para entrar no Reino de Deus.
Aliás,
usar versículos da Bíblia para ‘justificar’ o injusto é sintoma deste abuso.
Sonhar
e trabalhar para uma Igreja em que o abuso espiritual seja visto de uma forma
mais clara e rejeitado por todos é necessário.
Até
porque o Mestre dedicou um ensino bem claro contra o abuso espiritual, relatado
pelo evangelista Mateus:
Jesus
então dirigiu-se às multidões e aos seus discípulos: “Os escribas e fariseus
estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos
disserem. Mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem. Amarram
fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos nem com um
dedo se dispõem a movê-los. Praticam todas as suas ações com o fim de serem
vistos pelos homens. Com efeito, usam largos filactérios e longas franjas. Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos
primeiros assentos nas sinagogas, de receber as saudações nas praças públicas e
de que homens lhes chamem ‘Rabi’.
Agora,
parece que está dizendo hoje para nós:
Quanto
a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos
vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois um só é o vosso Pai, o
celeste. Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é o vosso guia,
Cristo. Antes, o maior dentre vós será aquele que vos serve. Aquele que se
exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será exaltado.
Francisco
de Buenos Aires, ouvindo a Voz do Espírito aos nossos dias, retomou o tema da
Sinolidade como forma de vivência do poder e discernimento na Igreja. E
praticou isso. É um bom caminho.
Ecoa e
muito o ensinamento de Jesus, que parece ter sido esquecido na Igreja que chama
seus líderes de pai (papa, padre) e ama exaltar guias, cantores, pregadores e
mestres da sua fé.
Afinal
de contas, quem vai exorcizar os exorcistas?!
Fonte:
IHU

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