Luis
Eustáquio Soares: As guerras culturais dos EUA
A
“ideologia da desideologização” foi uma estratégia central do imperialismo
estadunidense nas duas Guerras Frias. Esse discurso – que nega classes,
verdades históricas e projetos coletivos – preparou o terreno para o
identitarismo despolitizado e a “oligarquia operária” atual
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Daniel Bell e o fim das ideologias
Daniel
Bell, fundador, com Irving Kristol, da revista que se tornou a referência
da intelligentsia neoconservadora estadunidense dos últimos
sessenta anos, é autor do premiado livro O fim das ideologias (1960),
obra na qual prognosticou a morte das ideologias, em função do advento do
Estado de bem-estar social e também do fim do próprio humanismo, compreendido,
subtende-se, como história humana, de humanos, para humanos.
Como em
tudo há um conteúdo manifesto, aquilo que se diz; e um conteúdo latente, aquilo
que é o recado ideológico do que se disse, o objetivo de Daniel Bell, em O
fim das ideologias, não era outro senão o de desqualificar a forma
como Marx e Engels definiram o termo, em A Ideologia alemã (1846),
a saber: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é,
ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante “(ENGELS&MARX, 2007, p. 47).
Ora,
se, em conformidade com O fim das ideologias, não há mais classe
social oprimida, desse modo se subentende que não existam classes dominantes e
tampouco ideologias que correspondam aos interesses destas últimas. Esse tipo
de sofisma cínico, tão comum nos livros dos principais estrategistas ianques,
tem seus efeitos, digamos (para ser irônico), ideológicos, que são: (i) se não
há ideologias, porque não há mais classes oprimidas e nem opressoras, também
não há luta de classes; (ii) ora, se as ideologias e o humanismo deixaram de
existir, então o que passa a advir é o triunfo do niilismo, compreendido como a
vontade do nada e como um nada a fazer senão aceitar o mundo como é: o mundo da
hegemonia mundial do imperialismo estadunidense.
No
entanto, como se sabe, ideologia não é uma categoria estanque, no tempo e no
espaço; muda em conformidade ao processo histórico material, como o é, o
capitalismo; um processo. Por exemplo, no livro Imperialismo: etapa
final do capitalismo (1916), Vladímir Lênin, seu autor, observou, com muita
perspicácia, que a fase imperialista do capitalismo engendrou um perfil até
então desconhecido de operário, a que deu o nome de aristocracia operária,
constituída por trabalhadores que exerciam funções, geralmente gerenciais, no
âmbito das grandes empresas que surgiram com o capitalismo monopólico.
A
análise objetiva do papel dessa aristocracia operária, do período imperialista
do capitalismo, nos bastidores da Primeira e da Segunda Guerras mundiais, é um
estudo que ainda falta a ser realizado. Tal pesquisa poderia gerar um livro que
seria como um segundo volume de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte,
de 1852, obra em que Karl Marx tinha analisado a importância fundamental da
aristocracia burocrática do Estado francês, para a consecução do golpe de
Estado, levado a cabo na França por Luís Bonaparte, em 1851.
Para
fazer uso de um método comparativo, o tal período do fim das ideologias, de
Daniel Bell, foi definido por György Lukács, no final da década de sessenta e
início da seguinte, não como fim das ideologias, mas como época em que
dominavam as ideologias que ele chamou de ideologias da desideologização,
procedimento ideológico que consiste em negar a ideologia de classe para
substituí-la por outras formas de ideologia, como as que dizem respeito ao
estilo americano de vida. Com isso, evidencia-se que o argumento central do
autor de Fim das ideologias, expresso no título do livro, não
passaria de uma nova forma de ideologia: a ideologia da negação da ideologia de
classe, que é, em linhas gerais, a ideologia da Guerra Fria, em sua versão
estadunidense.
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O efeito acadêmico da ideologia da desideologização
Como
essa obra de Daniel Bell influiu na Universidade? Com um pouco de atraso,
talvez por causa do golpe de Estado de 1964, nos idos da década de noventa,
quando o país era governado por Fernando Henrique Cardoso, começara a circular
nas Universidades brasileiras o clichê dos fim das ideologias. Para aqueles que
frequentaram os cursos de ciências humanas, na década de noventa, ousar
empregá-lo de forma positiva era como uma confissão de anacronismo, porque a
maioria dos artigos e livros que circulava repetia, como ventríloquos, os
argumentos usados por Daniel Bell para decretar o fim da era do humanismo
ideológico.
Mas
havia e há uma moral hierárquica para o uso do termo, a depender do adjetivo
que determinasse a categoria em questão, cuja morte se aceitava como líquida e
certa. Por exemplo, falar em ideologia nacionalista era considerado uma falta
grave.
O
nacionalismo, seja no sentido negativo, usado pela extrema direita, o
nacionalismo fascista; seja no que se refere ao seu sentido positivado,
associado à independência nacional e à soberania popular, eram, ambos,
proibidos, embora o segundo sentido ideológico fosse considerado uma falta
gravíssima em relação ao primeiro, considerado uma falta, digamos, menos grave.
Pior ainda era falar em ideologia socialista. Nesse caso, a acusação de
stalinista era a glória do censor, porque seria visto certamente como uma
pessoa democrática, delicada; civilizada; gente boa, inteligente, jamais como
um agente de censura.
Com
essa história toda, a verdade histórica é que sofria implacavelmente o seu
primeiro grande revés, no interior da primeira Guerra Fria, pois passou a ser
considerada como totalitária, tendo sofrido a seguinte acusação: “A verdade é
uma ideologia, logo é autoritária!” Esse se tornou o mantra dos bárbaros
civilizados, bem-pensantes.
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O fim das grandes narrativas
Em
1979, o filósofo francês, Jean-François Lyotard, publicou o livro A
condição pós-moderna, obra que imediatamente passou a circular nos
programas de pós-graduação das consideradas melhores universidades brasileiras,
no âmbito das ciências humanas. O que dizia essa obra? Basicamente nela se
decretou o fim das grandes narrativas, ligadas à ideia de revolução, de luta de
classes, de socialismo, de comunismo.
Se
torcesse, como se torce um pano de chão, o livro em questão, de Jean-François
Lyotard, a conclusão a que se chegava era: as grandes narrativas são
autoritárias porque são insensíveis às diferenças de gênero, étnicas; assim
como indiferentes ao cotidiano, à micro-história local e às alteridades. Com
isso, o filósofo francês ajudou a preparar o caminho para a ideologia do
identitarismo, dominante hoje.
E
nenhuma palavra, no livro de Jean-François Lyotard citado, sobre as quatro
grandes narrativas realmente despóticas da história humana: a grande narrativa
das civilizações que se enriqueceram com o trabalho escravo; a grande narrativa
do período colonial, que produziu a escravidão negra!; a grande narrativa da
ditadura do capital; e a grande narrativa do inferno na terra para os povos,
que é o imperialismo, principalmente considerando a sua versão dominante, a
estadunidense, com a sua grande narrativa do petro-dólar.
Como
Jean-François Lyotard se tornou um clichê nas Universidades brasileiras? A
partir de sua obra, uma produção em série de pesquisas de mestrado e doutorado
( e de pós-doutorado) começou a ser defendida vomitando opiniões do tipo:
“Lukács é um autor que não nos serve hoje, porque sua crítica desconsidera a
questão feminina, a singularidade da questão racial”. “O marxismo é uma grande
narrativa e como tal é insensível às diferenças e às alteridades”. “O marxismo
é uma grande narrativa do Ocidente e o Ocidente (europeu, bem entendido,
porque, ao que parece, EUA não é ocidental) é a pior grande narrativa de
todas”. “Luta de classes é puro autoritarismo anacrônico”.
E,
principalmente: “O nacionalismo (o independentista, sobretudo) deve ser evitado
porque é o maior exemplo de uma grande narrativa e por isso é impróprio para
entender a questão negra, a questão feminina, a questão indígena”, tratadas, é
claro, fora da história da luta de classes do operariado feminino, indígena,
negro ou homoafetivo, porque, puxando o fio de Daniel Bell, a categoria de
classe é uma ideologia, e esta não existe.
E a
verdade levou o seu segundo revés histórico que se expressou assim: “A verdade
é uma grande narrativa e por isso tem que sumir do mapa, pelo bem das
diferenças!”.
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A era do fim da história
Em
1992, Francis Fukuyama, outro estrategista da dominação estadunidense, publicou
o livro O fim da história e o último homem, obra em que defendia
que havíamos chegado ao fim da história. “Doravante o tempo presente é a nossa
referência; um presente alargado, sem passado ( sobretudo o passado de luta de
classes) e sem futuro”. É o que é possível depreender da leitura de sua obra.
É
preciso não esquecer, a propósito, o seguinte: em 1991, a União Soviética
deixou de existir, porque sofreu um golpe de Estado, ao estilo de uma
“revolução colorida”. Em razão disso, os EUA estavam mais presunçosos do que
nunca e decretaram: “Somos os vencedores da Guerra Fria!” “O socialismo está
morto e enterrado para sempre”. “Marx foi uma fraude completa!” É nesse sentido
que o livro de Francis Fukuyama em questão deve ser lido como a obra que tinha
decretado e reverenciado a ideologia decadente do presente eterno da dominação
estadunidense, tendo a globalização de seu estilo de vida como cenário de base.
E o
nacionalismo? Nem o nacionalismo fascista da extrema direita era mais possível,
pois prevalecia, com o fim história, o tempo alargado da dominação
estadunidense; tempo das ideologias da desideologização; de estilos de vida –
ianques, bem entendido.
Em
1997, o poeta brasileiro, Haroldo de Campos publicou o ensaio “Poesia e
modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”. Nesse texto,
para sustentar o argumento de que vivíamos, na década de noventa, o período do
fim do poema utópico, o poeta concretista paulista usou todos os clichês que
circulavam no período, a saber: o clichê do fim das ideologias, o clichê do fim
das grandes narrativas e o clichê do fim da história.
Daí por
diante esses três clichês passaram a ser a regra, nas Universidades. Quem não
seguisse a cartilha deles era imediatamente visto como anacrônico, sem rigor
acadêmico; uma múmia, sem, sequer, ter a mínima chance de ser objeto de
interesse arqueológico.
E a
verdade sofrera seu terceiro revés: “A verdade é um pesadelo da história. Está
morta e enterrada, com o fim da história!” Bingo!
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O novo milênio e as duas Guerras Frias
Segundo
Luiz Alberto Muniz Bandeira, em A segunda Guerra Fria: geopolítica
e dimensão estratégica de Estados Unidos (2013), o período de
dominação do imperialismo estadunidense tem como interface histórica duas
guerras frias: a primeira começou em 1947, com Henry Truman; a segunda logo
após o fim da União Soviética, em 1991. Em ambas, o aspecto a ser destacado é:
a ideologia da desideologização como ao mesmo tempo tática e estratégia de
guerra contra as três formas de lutas de classes historicamente constituídas: a
do trabalho contra a exploração do capital; a luta de classes contra a divisão
internacional do trabalho; a da soberania popular-nacional contra a submissão
colonial imperialista.
Em
linhas gerais, a ideologia da desideologização da primeira Guerra Fria teve
como referência a ser negada o eixo socialista, liderado pela União Soviética.
Expressa-se pela publicidade integral, tendo a indústria cultural e
principalmente o cinema como arma ‘fria’ de sua plataforma, que se estruturava
tendo em vista o pressuposto do fim das ideologias, do fim das grandes
narrativas e do fim da história.
O
enredo básico dessas edições cinematográficas era: personagens anarcoliberais
‘vestidas’ pelo estilo ianque de vida, afirmando a liberdade sexual, as
pulsações do corpo, o desejo, em uma perspectiva underground,
irracional, romântica, tendo a juventude como ícone e o rock and
roll como modelo anarcoestético.
Trata-se,
simplesmente, do triunfo do anarquismo corporal-comportamental; daí o
espontaneísmo; daí a indisciplina e a rebeldia contra o Estado burguês e suas
instituições, como a escola, a família, a fábrica; daí, ao focar a desrepressão
do corpo do jovem perante a repressão reprimida do corpo do adulto, conter, não
obstante o fetichismo corporal, uma dimensão semilaica, porque não determinada
nem pela moral nem por valores religiosos, mas por uma perspectiva
romântico-secular, impulsionada pelo heroísmo individual, passional-pessoal.
Se
alteridade é o outro para a norma ( e a norma é sempre uma impostura imposta
pela força), assim como a mulher é uma alteridade porque é outra perante a
norma patriarcal ou o negro é alteridade porque não corporifica, pela pele, a
norma ocidental-branca, a relação entre alteridade e norma da primeira Guerra
Fria estadunidense se expressou assim: o jovem perante o adulto ou, como
variação desta última, o presente perante o passado, uma vez que o jovem
representava o presente ( o presente do estilo ianque de vida) e o adulto
representava o passado, sobretudo o passado da luta de classes.
O novo
milênio, cenário da segunda Guerra Fria, começou não com o pressuposto, mas com
a certeza de que se vive no fim das ideologias, no fim das grandes narrativas,
no fim da história, enfim, para ser redundante, no fim do marxismo, da luta de
classes, do socialismo, das lutas pela independência nacional dos povos,
proibida em todo o planeta, por meio de uma espécie de grande narrativa
despótica, que diz respeito à ampliação mundial da Doutrina Monroe de 1823.
O
“terreno histórico” estava, assim, terraplanado (para usar uma linguagem ao
mesmo tempo obscurantista e agrícola ) para uma nova virada do parafuso do
revisionismo histórico, ocorrida com a derrocada da União Soviética em 1991,
que decretou simultaneamente o fim da primeira Guerra Fria e, ato contínuo, o
início da segunda.
Para
compreender os bastidores estratégicos da Segunda Guerra Fria, um estrategista
estadunidense fundamental é Walter Russell Mead, que foi também editor da
citada revista, O interesse público, título que em si pressupõe uma
crítica ao estilo de vida dispendioso, underground e festivo,
relacionado ao Estado de Bem-Estar Social, dominante, ao menos no centro do
sistema, no período da Primeira Guerra Fria. Em contraposição, a Segunda Guerra
Fria, na linha dos neoconservadores, convoca um estilo de vida contido, casto,
puritano, como se fosse um retorno ( e o é ), para fazer um diálogo com Max
Weber, à ética protestante e a espírito do capitalismo, com uma diferença:
castidade e contenção para a classe operária e desperdício e luxo, para as
classes dominantes.
Em um
livro como Uma orientação especial: a política externa norte-americana
e sua influência no mundo, publicado no Brasil pela Biblioteca do Exército
Brasileiro, em 2006, é possível ler o seguinte fragmento escrito por Walter
Meed, em um capítulo sugestivamente intitulado “Mudança de paradigmas”: “A
diferença entre os aparentes ingredientes da tradicional política externa
norte-americana – isolacionismo e protecionismo – e a necessidade, ditada pela
Guerra Fria, de uma política intervencionista e de livre comércio era de tal
ordem, que não houve muito empenho na ligação entre a antiga e a nova
política”( MEED, 2006, p. 98).
A
citação desse trecho foi apresentada porque sintetiza a proposta de Walter
Meed, que é a base estratégica da Segunda Guerra Fria, a saber: a aliança entre
a tradicional política externa norte-americana – lastreada no amálgama do
isolacionismo com o protecionismo – com a política intervencionista e de livre
comércio da Primeira Guerra Fria. Está em jogo, assim, o desafio de unir os
dois lados do imperialismo estadunidense: o continentalista, representado pelo
Partido Republicano; e o globalista, referendado no Partido Democrata.
Sob o
ponto de vista da ideologia da desideologização, a relação conflitante entre
juventude semilaica versus adulto e, por extensão, entre presente versus
passado, traço da Primeira Guerra Fria, deve ser substituída pela relação
conflitiva entre o passado, o presente e o futuro. Esse conflito entre
temporalidades se traduz, na prática, como conflitos entre identidades, o que
significa que a alteridade deixa de existir porque não deseja mais ser
alteridade, um outro em relação a um padrão. A alteridade quer ser padrão e o
padrão é a dominação estadunidense.
O fim
suposto das alteridades tem um objetivo que tem a ver com a categoria de
alteridade: por ser outro em relação a um padrão historicamente imposto, a
alteridade guarda em si o desejo de outro mundo; um desejo de realizar um mundo
habitável pelo outro. Na civilização burguesa, o capital é o padrão e o
trabalhador é a alteridade. Deixar de ser alteridade, na prática, é deixar de
ser trabalhador; é desejar ser o capital.
Se, com
Vladímir Lênin, o advento do imperialismo, propiciou a emergência da
aristocracia operária, fração de classe vinculada ao capital monopolista, um
novo segmento de classe emergiu com o advento da Segunda Guerra Fria, a saber:
a classe (embora jamais se conceba como classe) da oligarquia operária.
Bem-vindos ao mundo dos empoderados! O mundo suposto do fim da história, do fim
das grandes narrativas coletivas, do fim das ideologias dos não empoderados.
A
palavra de ordem agora é: oligarquizar-se, traduzida simplesmente como o “meu
lugar ao sol” na ideologia dominante da classe que detém os bens materiais: a
oligarquia do capital monopólico do espírito do imperialismo estadunidense.
Fonte:
A Terra é Redonda

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