quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Luis Eustáquio Soares: As guerras culturais dos EUA

A “ideologia da desideologização” foi uma estratégia central do imperialismo estadunidense nas duas Guerras Frias. Esse discurso – que nega classes, verdades históricas e projetos coletivos – preparou o terreno para o identitarismo despolitizado e a “oligarquia operária” atual 

<><> Daniel Bell e o fim das ideologias

Daniel Bell, fundador, com Irving Kristol, da revista que se tornou a referência da intelligentsia neoconservadora estadunidense dos últimos sessenta anos, é autor do premiado livro O fim das ideologias (1960), obra na qual prognosticou a morte das ideologias, em função do advento do Estado de bem-estar social e também do fim do próprio humanismo, compreendido, subtende-se, como história humana, de humanos, para humanos.

Como em tudo há um conteúdo manifesto, aquilo que se diz; e um conteúdo latente, aquilo que é o recado ideológico do que se disse, o objetivo de Daniel Bell, em O fim das ideologias, não era outro senão o de desqualificar a forma como Marx e Engels definiram o termo, em A Ideologia alemã (1846), a saber: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante “(ENGELS&MARX, 2007, p. 47).

Ora, se, em conformidade com O fim das ideologias, não há mais classe social oprimida, desse modo se subentende que não existam classes dominantes e tampouco ideologias que correspondam aos interesses destas últimas. Esse tipo de sofisma cínico, tão comum nos livros dos principais estrategistas ianques, tem seus efeitos, digamos (para ser irônico), ideológicos, que são: (i) se não há ideologias, porque não há mais classes oprimidas e nem opressoras, também não há luta de classes; (ii) ora, se as ideologias e o humanismo deixaram de existir, então o que passa a advir é o triunfo do niilismo, compreendido como a vontade do nada e como um nada a fazer senão aceitar o mundo como é: o mundo da hegemonia mundial do imperialismo estadunidense.

No entanto, como se sabe, ideologia não é uma categoria estanque, no tempo e no espaço; muda em conformidade ao processo histórico material, como o é, o capitalismo; um processo. Por exemplo, no livro Imperialismo: etapa final do capitalismo (1916), Vladímir Lênin, seu autor, observou, com muita perspicácia, que a fase imperialista do capitalismo engendrou um perfil até então desconhecido de operário, a que deu o nome de aristocracia operária, constituída por trabalhadores que exerciam funções, geralmente gerenciais, no âmbito das grandes empresas que surgiram com o capitalismo monopólico.

A análise objetiva do papel dessa aristocracia operária, do período imperialista do capitalismo, nos bastidores da Primeira e da Segunda Guerras mundiais, é um estudo que ainda falta a ser realizado. Tal pesquisa poderia gerar um livro que seria como um segundo volume de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852, obra em que Karl Marx tinha analisado a importância fundamental da aristocracia burocrática do Estado francês, para a consecução do golpe de Estado, levado a cabo na França por Luís Bonaparte, em 1851.

Para fazer uso de um método comparativo, o tal período do fim das ideologias, de Daniel Bell, foi definido por György Lukács, no final da década de sessenta e início da seguinte, não como fim das ideologias, mas como época em que dominavam as ideologias que ele chamou de ideologias da desideologização, procedimento ideológico que consiste em negar a ideologia de classe para substituí-la por outras formas de ideologia, como as que dizem respeito ao estilo americano de vida. Com isso, evidencia-se que o argumento central do autor de Fim das ideologias, expresso no título do livro, não passaria de uma nova forma de ideologia: a ideologia da negação da ideologia de classe, que é, em linhas gerais, a ideologia da Guerra Fria, em sua versão estadunidense.

<><> O efeito acadêmico da ideologia da desideologização

Como essa obra de Daniel Bell influiu na Universidade? Com um pouco de atraso, talvez por causa do golpe de Estado de 1964, nos idos da década de noventa, quando o país era governado por Fernando Henrique Cardoso, começara a circular nas Universidades brasileiras o clichê dos fim das ideologias. Para aqueles que frequentaram os cursos de ciências humanas, na década de noventa, ousar empregá-lo de forma positiva era como uma confissão de anacronismo, porque a maioria dos artigos e livros que circulava repetia, como ventríloquos, os argumentos usados por Daniel Bell para decretar o fim da era do humanismo ideológico.

Mas havia e há uma moral hierárquica para o uso do termo, a depender do adjetivo que determinasse a categoria em questão, cuja morte se aceitava como líquida e certa. Por exemplo, falar em ideologia nacionalista era considerado uma falta grave.

O nacionalismo, seja no sentido negativo, usado pela extrema direita, o nacionalismo fascista; seja no que se refere ao seu sentido positivado, associado à independência nacional e à soberania popular, eram, ambos, proibidos, embora o segundo sentido ideológico fosse considerado uma falta gravíssima em relação ao primeiro, considerado uma falta, digamos, menos grave. Pior ainda era falar em ideologia socialista. Nesse caso, a acusação de stalinista era a glória do censor, porque seria visto certamente como uma pessoa democrática, delicada; civilizada; gente boa, inteligente, jamais como um agente de censura.

Com essa história toda, a verdade histórica é que sofria implacavelmente o seu primeiro grande revés, no interior da primeira Guerra Fria, pois passou a ser considerada como totalitária, tendo sofrido a seguinte acusação: “A verdade é uma ideologia, logo é autoritária!” Esse se tornou o mantra dos bárbaros civilizados, bem-pensantes.

<><> O fim das grandes narrativas

Em 1979, o filósofo francês, Jean-François Lyotard, publicou o livro A condição pós-moderna, obra que imediatamente passou a circular nos programas de pós-graduação das consideradas melhores universidades brasileiras, no âmbito das ciências humanas. O que dizia essa obra? Basicamente nela se decretou o fim das grandes narrativas, ligadas à ideia de revolução, de luta de classes, de socialismo, de comunismo.

Se torcesse, como se torce um pano de chão, o livro em questão, de Jean-François Lyotard, a conclusão a que se chegava era: as grandes narrativas são autoritárias porque são insensíveis às diferenças de gênero, étnicas; assim como indiferentes ao cotidiano, à micro-história local e às alteridades. Com isso, o filósofo francês ajudou a preparar o caminho para a ideologia do identitarismo, dominante hoje.

E nenhuma palavra, no livro de Jean-François Lyotard citado, sobre as quatro grandes narrativas realmente despóticas da história humana: a grande narrativa das civilizações que se enriqueceram com o trabalho escravo; a grande narrativa do período colonial, que produziu a escravidão negra!; a grande narrativa da ditadura do capital; e a grande narrativa do inferno na terra para os povos, que é o imperialismo, principalmente considerando a sua versão dominante, a estadunidense, com a sua grande narrativa do petro-dólar.

Como Jean-François Lyotard se tornou um clichê nas Universidades brasileiras? A partir de sua obra, uma produção em série de pesquisas de mestrado e doutorado ( e de pós-doutorado) começou a ser defendida vomitando opiniões do tipo: “Lukács é um autor que não nos serve hoje, porque sua crítica desconsidera a questão feminina, a singularidade da questão racial”. “O marxismo é uma grande narrativa e como tal é insensível às diferenças e às alteridades”. “O marxismo é uma grande narrativa do Ocidente e o Ocidente (europeu, bem entendido, porque, ao que parece, EUA não é ocidental) é a pior grande narrativa de todas”. “Luta de classes é puro autoritarismo anacrônico”.

E, principalmente: “O nacionalismo (o independentista, sobretudo) deve ser evitado porque é o maior exemplo de uma grande narrativa e por isso é impróprio para entender a questão negra, a questão feminina, a questão indígena”, tratadas, é claro, fora da história da luta de classes do operariado feminino, indígena, negro ou homoafetivo, porque, puxando o fio de Daniel Bell, a categoria de classe é uma ideologia, e esta não existe.

E a verdade levou o seu segundo revés histórico que se expressou assim: “A verdade é uma grande narrativa e por isso tem que sumir do mapa, pelo bem das diferenças!”.

<><> A era do fim da história

Em 1992, Francis Fukuyama, outro estrategista da dominação estadunidense, publicou o livro O fim da história e o último homem, obra em que defendia que havíamos chegado ao fim da história. “Doravante o tempo presente é a nossa referência; um presente alargado, sem passado ( sobretudo o passado de luta de classes) e sem futuro”. É o que é possível depreender da leitura de sua obra.

É preciso não esquecer, a propósito, o seguinte: em 1991, a União Soviética deixou de existir, porque sofreu um golpe de Estado, ao estilo de uma “revolução colorida”. Em razão disso, os EUA estavam mais presunçosos do que nunca e decretaram: “Somos os vencedores da Guerra Fria!” “O socialismo está morto e enterrado para sempre”. “Marx foi uma fraude completa!” É nesse sentido que o livro de Francis Fukuyama em questão deve ser lido como a obra que tinha decretado e reverenciado a ideologia decadente do presente eterno da dominação estadunidense, tendo a globalização de seu estilo de vida como cenário de base.

E o nacionalismo? Nem o nacionalismo fascista da extrema direita era mais possível, pois prevalecia, com o fim história, o tempo alargado da dominação estadunidense; tempo das ideologias da desideologização; de estilos de vida – ianques, bem entendido.

Em 1997, o poeta brasileiro, Haroldo de Campos publicou o ensaio “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”. Nesse texto, para sustentar o argumento de que vivíamos, na década de noventa, o período do fim do poema utópico, o poeta concretista paulista usou todos os clichês que circulavam no período, a saber: o clichê do fim das ideologias, o clichê do fim das grandes narrativas e o clichê do fim da história.

Daí por diante esses três clichês passaram a ser a regra, nas Universidades. Quem não seguisse a cartilha deles era imediatamente visto como anacrônico, sem rigor acadêmico; uma múmia, sem, sequer, ter a mínima chance de ser objeto de interesse arqueológico.

E a verdade sofrera seu terceiro revés: “A verdade é um pesadelo da história. Está morta e enterrada, com o fim da história!” Bingo!

<><> O novo milênio e as duas Guerras Frias

Segundo Luiz Alberto Muniz Bandeira, em A segunda Guerra Friageopolítica e dimensão estratégica de Estados Unidos (2013), o período de dominação do imperialismo estadunidense tem como interface histórica duas guerras frias: a primeira começou em 1947, com Henry Truman; a segunda logo após o fim da União Soviética, em 1991. Em ambas, o aspecto a ser destacado é: a ideologia da desideologização como ao mesmo tempo tática e estratégia de guerra contra as três formas de lutas de classes historicamente constituídas: a do trabalho contra a exploração do capital; a luta de classes contra a divisão internacional do trabalho; a da soberania popular-nacional contra a submissão colonial imperialista.

Em linhas gerais, a ideologia da desideologização da primeira Guerra Fria teve como referência a ser negada o eixo socialista, liderado pela União Soviética. Expressa-se pela publicidade integral, tendo a indústria cultural e principalmente o cinema como arma ‘fria’ de sua plataforma, que se estruturava tendo em vista o pressuposto do fim das ideologias, do fim das grandes narrativas e do fim da história.

O enredo básico dessas edições cinematográficas era: personagens anarcoliberais ‘vestidas’ pelo estilo ianque de vida, afirmando a liberdade sexual, as pulsações do corpo, o desejo, em uma perspectiva underground, irracional, romântica, tendo a juventude como ícone e o rock and roll como modelo anarcoestético.

Trata-se, simplesmente, do triunfo do anarquismo corporal-comportamental; daí o espontaneísmo; daí a indisciplina e a rebeldia contra o Estado burguês e suas instituições, como a escola, a família, a fábrica; daí, ao focar a desrepressão do corpo do jovem perante a repressão reprimida do corpo do adulto, conter, não obstante o fetichismo corporal, uma dimensão semilaica, porque não determinada nem pela moral nem por valores religiosos, mas por uma perspectiva romântico-secular, impulsionada pelo heroísmo individual, passional-pessoal.

Se alteridade é o outro para a norma ( e a norma é sempre uma impostura imposta pela força), assim como a mulher é uma alteridade porque é outra perante a norma patriarcal ou o negro é alteridade porque não corporifica, pela pele, a norma ocidental-branca, a relação entre alteridade e norma da primeira Guerra Fria estadunidense se expressou assim: o jovem perante o adulto ou, como variação desta última, o presente perante o passado, uma vez que o jovem representava o presente ( o presente do estilo ianque de vida) e o adulto representava o passado, sobretudo o passado da luta de classes.

O novo milênio, cenário da segunda Guerra Fria, começou não com o pressuposto, mas com a certeza de que se vive no fim das ideologias, no fim das grandes narrativas, no fim da história, enfim, para ser redundante, no fim do marxismo, da luta de classes, do socialismo, das lutas pela independência nacional dos povos, proibida em todo o planeta, por meio de uma espécie de grande narrativa despótica, que diz respeito à ampliação mundial da Doutrina Monroe de 1823.

O “terreno histórico” estava, assim, terraplanado (para usar uma linguagem ao mesmo tempo obscurantista e agrícola ) para uma nova virada do parafuso do revisionismo histórico, ocorrida com a derrocada da União Soviética em 1991, que decretou simultaneamente o fim da primeira Guerra Fria e, ato contínuo, o início da segunda.

Para compreender os bastidores estratégicos da Segunda Guerra Fria, um estrategista estadunidense fundamental é Walter Russell Mead, que foi também editor da citada revista, O interesse público, título que em si pressupõe uma crítica ao estilo de vida dispendioso, underground e festivo, relacionado ao Estado de Bem-Estar Social, dominante, ao menos no centro do sistema, no período da Primeira Guerra Fria. Em contraposição, a Segunda Guerra Fria, na linha dos neoconservadores, convoca um estilo de vida contido, casto, puritano, como se fosse um retorno ( e o é ), para fazer um diálogo com Max Weber, à ética protestante e a espírito do capitalismo, com uma diferença: castidade e contenção para a classe operária e desperdício e luxo, para as classes dominantes.

Em um livro como Uma orientação especial: a política externa norte-americana e sua influência no mundo, publicado no Brasil pela Biblioteca do Exército Brasileiro, em 2006, é possível ler o seguinte fragmento escrito por Walter Meed, em um capítulo sugestivamente intitulado “Mudança de paradigmas”: “A diferença entre os aparentes ingredientes da tradicional política externa norte-americana – isolacionismo e protecionismo – e a necessidade, ditada pela Guerra Fria, de uma política intervencionista e de livre comércio era de tal ordem, que não houve muito empenho na ligação entre a antiga e a nova política”( MEED, 2006, p. 98).

A citação desse trecho foi apresentada porque sintetiza a proposta de Walter Meed, que é a base estratégica da Segunda Guerra Fria, a saber: a aliança entre a tradicional política externa norte-americana – lastreada no amálgama do isolacionismo com o protecionismo – com a política intervencionista e de livre comércio da Primeira Guerra Fria. Está em jogo, assim, o desafio de unir os dois lados do imperialismo estadunidense: o continentalista, representado pelo Partido Republicano; e o globalista, referendado no Partido Democrata.

Sob o ponto de vista da ideologia da desideologização, a relação conflitante entre juventude semilaica versus adulto e, por extensão, entre presente versus passado, traço da Primeira Guerra Fria, deve ser substituída pela relação conflitiva entre o passado, o presente e o futuro. Esse conflito entre temporalidades se traduz, na prática, como conflitos entre identidades, o que significa que a alteridade deixa de existir porque não deseja mais ser alteridade, um outro em relação a um padrão. A alteridade quer ser padrão e o padrão é a dominação estadunidense.

O fim suposto das alteridades tem um objetivo que tem a ver com a categoria de alteridade: por ser outro em relação a um padrão historicamente imposto, a alteridade guarda em si o desejo de outro mundo; um desejo de realizar um mundo habitável pelo outro. Na civilização burguesa, o capital é o padrão e o trabalhador é a alteridade. Deixar de ser alteridade, na prática, é deixar de ser trabalhador; é desejar ser o capital.

Se, com Vladímir Lênin, o advento do imperialismo, propiciou a emergência da aristocracia operária, fração de classe vinculada ao capital monopolista, um novo segmento de classe emergiu com o advento da Segunda Guerra Fria, a saber: a classe (embora jamais se conceba como classe) da oligarquia operária. Bem-vindos ao mundo dos empoderados! O mundo suposto do fim da história, do fim das grandes narrativas coletivas, do fim das ideologias dos não empoderados.

A palavra de ordem agora é: oligarquizar-se, traduzida simplesmente como o “meu lugar ao sol” na ideologia dominante da classe que detém os bens materiais: a oligarquia do capital monopólico do espírito do imperialismo estadunidense.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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