quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

João dos Reis Silva Júnior: A arquitetura da dependência

Pensar o Brasil implica atravessar a longa história de sua subordinação econômica, política e cognitiva. A dependência, na América Latina, não é desvio de rota, mas forma estrutural do capitalismo periférico. Desde o século XIX, o Estado brasileiro vem reproduzindo um padrão de modernização que se alimenta do arcaico e o transforma em instrumento de acumulação. Como mostrou Francisco de Oliveira (2003), o moderno não substitui o precário, dele se nutre e com ele se reproduz.

A teoria aqui desenvolvida propõe compreender a dependência como racionalidade de dominação. Ela combina exploração econômica, hierarquia epistêmica e subordinação institucional. O Estado brasileiro é o mediador dessa estrutura, pois converte o fundo público em espaço de reprodução da desigualdade e em instrumento de legitimação de interesses privados. O resultado é uma modernidade administrada pela carência, sustentada por um sistema que transforma a precariedade em método de governo.

A hipótese central afirma que o país vive sob uma “arquitetura da dependência”. Essa forma se manifesta na economia, nas instituições e no pensamento. É o ponto de fusão entre o material e o simbólico, entre a dependência e a colonialidade.

<><> A dependência como forma histórica

Ruy Mauro Marini (1973) rompeu com o desenvolvimentismo ao demonstrar que a dependência é forma específica do capitalismo mundial. A superexploração do trabalho constitui sua base econômica: o salário reduzido abaixo do valor de reprodução da força de trabalho permite transferir excedente para o centro. Vânia Bambirra (1974) e Theotônio dos Santos (1978) ampliaram o conceito, mostrando que o subdesenvolvimento não é falha de governo, mas estrutura de poder.

A burguesia associada exerce papel decisivo nesse processo. Ela lucra com a inserção subordinada e se torna agente interna da dominação. A dependência é, assim, uma relação social completa, que articula o externo e o interno, o econômico e o político.

Durante as décadas de 1970 e 1980, o ciclo de endividamento, a financeirização e as reformas neoliberais consolidaram nova etapa dessa forma. O Estado passou de mediador nacional a gestor da austeridade. O pagamento da dívida substituiu o investimento social. O fundo público tornou-se o canal de transferência permanente ao capital financeiro. A dependência deixou de ser apenas comercial e industrial, convertendo-se em financeira e institucional (Boron, 2002).

Francisco de Oliveira (1972) introduziu um deslocamento fundamental: a dependência não é apenas relação econômica, mas também racionalidade ideológica. A chamada “razão dualista” é a forma de pensamento que legitima a desigualdade ao separar o moderno do arcaico, apresentando o primeiro como solução do segundo. Essa separação é ilusória, pois ambos compõem um mesmo sistema de dominação. <><> O atraso é funcional ao progresso.

Ao desmontar essa ideologia, Francisco de Oliveira revelou que o Estado brasileiro é o organizador dessa dualidade permanente. Ele administra a coexistência entre modernização tecnológica e precarização social. A racionalidade estatal é, portanto, expressão de uma consciência colonial internalizada. O Estado nacional repete a hierarquia do centro sobre a periferia dentro de suas próprias fronteiras.

Essa crítica rompeu com a visão evolucionista e abriu caminho para novas leituras. A dependência deixa de ser episódio econômico e passa a ser estrutura de pensamento. É nesse ponto que a obra de Oliveira antecipa a discussão posterior sobre colonialidade.

<><> Colonialidade e epistemicídio

Aníbal Quijano (2000) mostrou que o colonialismo político se transforma, após a independência, em colonialidade do poder. A exploração econômica é acompanhada por uma hierarquia racial e cognitiva que define quais saberes podem ser reconhecidos como válidos. Essa lógica sobrevive no interior das universidades, nas políticas públicas e nas formas de conhecimento importadas.

Boaventura de Sousa Santos (2006) denominou esse processo de epistemicídio: a destruição das epistemes subalternas. O Estado brasileiro participa dessa operação ao adotar padrões de avaliação, produtividade e mérito impostos por centros estrangeiros. O que Francisco de Oliveira identificara como razão dualista reaparece agora como colonialidade da razão moderna.

Enrique Dussel (1994) acrescenta que a modernidade europeia só pôde afirmar-se negando a periferia. A América Latina é a exterioridade constitutiva da modernidade. O pensamento brasileiro, ao tentar imitar o europeu, repete esse gesto de negação. Desse modo, a dependência é também um modo de ver o mundo. Ela se reproduz nas instituições porque está inscrita nas formas de pensamento que as legitimam.

A economia da dependência e a ideologia da modernização convergem no Estado. Desde o Império, o Estado brasileiro desempenha a função de administrar a desigualdade, convertendo-a em política. Raymundo Faoro (2001) mostrou que o patrimonialismo é o fio contínuo dessa história: o público se confunde com o privado, e o Estado serve de intermediário entre o capital externo e as elites locais.

Com a financeirização, esse padrão se aperfeiçoou. O fundo público passou a sustentar tanto a acumulação privada quanto a legitimação do Estado como gestor da escassez. Francisco de Oliveira (2003) analisou esse processo em O ornitorrinco: o Estado moderno no Brasil imita formas institucionais avançadas, mas mantém conteúdo oligárquico. A técnica substitui a política, a contabilidade substitui a justiça.

Essa é a essência da arquitetura da dependência. O Estado não apenas reproduz a subordinação material, mas também a traduz em linguagem moral: austeridade, eficiência, mérito. O discurso técnico disfarça a continuidade do poder.

<><> Universidade e saber colonizado

A universidade pública brasileira é um espelho dessa arquitetura. Desde sua origem, ela combina excelência seletiva e precariedade estrutural. O ensino superior foi construído como símbolo de modernidade, mas sustentado por trabalho docente instável e por desigualdade de acesso. A racionalidade que a rege é contábil e externa.

Os rankings, avaliações e métricas internacionais reforçam a dependência epistêmica. A pesquisa se orienta por agendas globais, e não por necessidades nacionais. Como observa Boaventura de Sousa Santos (2019), o conhecimento converteu-se em mercadoria e o dado substituiu o conceito. A ciência periférica passa a medir-se pelo olhar do centro.

Essa lógica transforma o fundo público universitário em instrumento de financeirização simbólica. O prestígio substitui a reflexão, e o conhecimento é avaliado por indicadores de desempenho. A universidade perde sua função crítica e se torna engrenagem da racionalidade dependente.

A convergência entre a teoria da dependência, a crítica de Francisco de Oliveira e o pensamento decolonial permite compreender o Estado brasileiro como estrutura total de subordinação. A dependência fornece a base econômica; a razão dualista, a ideologia legitimadora; a colonialidade, o elemento cognitivo que torna a dominação moralmente aceitável.

A arquitetura da dependência é, portanto, a fusão dessas dimensões. Ela se mantém porque o moderno necessita do arcaico e porque a elite nacional se reconhece no espelho europeu. O país vive em permanente tradução de modelos, sem projeto próprio de soberania.

Essa estrutura, contudo, não é invencível. Em cada crise econômica e política reaparecem brechas de consciência histórica. As lutas sociais, a produção cultural, a persistência de saberes populares e indígenas demonstram que há sempre vida além da racionalidade dominante. A dependência não é destino, mas forma histórica. E toda forma histórica pode ser desfeita.

A leitura de Marini, Oliveira, Quijano, Dussel e Boaventura de Sousa Santos revela que o Brasil não sofre de insuficiência moderna, mas de excesso de racionalidade dependente. A exploração, a desigualdade e o epistemicídio são partes de uma mesma engrenagem. O Estado administra a subordinação como se fosse normalidade, e as instituições, em vez de transformá-la, a reiteram.

Compreender essa arquitetura da dependência é condição para reconstruir o sentido da vida pública. O desafio não é alcançar a modernidade, mas libertar-se dela enquanto forma de dominação. O pensamento crítico latino-americano mostrou que a emancipação começa pela consciência do lugar que ocupamos na história. Pensar o Brasil é descolonizar o próprio ato de pensar.

•        A bolha potencial da Inteligência artificial. Por Marcos de Queiroz Grillo

A Inteligência artificial responde por significativa valorização do mercado acionário norte-americano que cresceu 75% desde o lançamento do ChatGPT em 2022, sendo que uns 80% dessa valorização proveio de ações atreladas à Inteligência artificial, o que dá indícios de grande concentração do mercado acionário nesse setor.

Como observou Pedro Doria em artigo no jornal O Globo, as sete magníficas ocupam as primeiras posições na NYSE em valor de mercado. São elas, a Nvidia, Microsoft, Apple, Google, Amazon, Meta e Tesla, que respondem por quase 35% do índice S&P 500, que reúne as 500 maiores companhias com capital aberto na NYSE e na Nasdaq.

Trata-se de uma concentração setorial inusitada com valores de mercado nunca antes existentes. O valor da Nvidia é superior a US$ 4 trilhões e os da Microsoft e Apple estão beirando essa cifra. Diante de tal valorização do setor, há uma preferência dos fundos de aposentadorias da classe média dos EUA pelas ações das sete magníficas. Além disso, observa-se uma teia de investimentos, empréstimos, fornecimentos e participações acionárias cruzadas ligando a Nvidia, OpenAI, Microsoft, Oracle, Meta, Intel, AMD e outras.

Segundo a Mc Kinsey 60% dos recursos do Inteligência artificial vão para chips e nuvem e 25% deles são gastos em energia. Os restantes 15% dos gastos são direcionados para construção civil. E os investimentos totais projetados para 2030 são da ordem de US$ 2 trilhões, para atender a robusta demanda futura. Some-se a isso investimentos de US$ 80 bilhões do governo dos EUA para ampliar a energia nuclear usada em sistemas de Inteligência artificial.

Como se observa, o dinheiro circula muito entre as próprias empresas do setor. A Nvidia vende chips para as empresas da nuvem (Microsoft, Google, Amazon e Oracle) e efetuará investimentos da ordem de US$ 100 bilhões na OpenAI para a construção de novos data centers de Inteligência artificial. Por seu turno, a OpenAI contrata a Microsoft e Oracle para rodarem seus modelos de inteligência artificial na nuvem. Seu faturamento deverá girar em torno de US$ 13 bilhões em 2025, com um valor de mercado de US$ 500 bilhões.

A Nvidia também efetua investimentos na Anthropic – concorrente da OpenAI – que roda seus modelos nas nuvens da Amazon, Google, Microsoft e acabou de divulgar um investimento de US$ 1 bilhão na Nokia para o desenvolvimento de redes inteligentes. OpenAI e Anthropic ainda não abriram seus capitais; se tivessem feito estariam entre as nove magníficas já que as sete grandes figuram como suas importantes acionistas. Há que se falar também da Qualcomm que para desafiar o domínio da Nvidia, lançou linha de chips, fato que valorizou bastante suas ações no mercado.

Como se vê, significativo volume de recursos circula entre elas, consideradas como o carro chefe do crescimento da economia norte-americana, que aposta na produção de Inteligência artificial para alavancar o aumento da produtividade da economia dos EUA como um todo.

Apesar da perda de empregos na indústria e mineração, afetados pelo aumento dos juros e choque tarifário do governo de Donald Trump, o impacto da automação é substancial já que praticamente todas as empresas puseram a Inteligência artificial em seus planos.

Segundo o jornal The New York Times, a própria Amazon planeja substituir 500 mil empregos por robôs. A construção de enormes data centers com gigantesco consumo de energia é outro elemento que aponta para a aposta no destaque e concentração de Inteligência artificial na economia norte-americana. A expectativa é que a Inteligência artificial provoque um salto de produtividade jamais visto no planeta, beneficiando setores de finanças, saúde, educação, agronegócio, serviços, dentre muitos outros.

Acontece que os resultados do aumento da produtividade proveniente dos investimentos em Inteligência artificial ainda são pouco significativos, se comparados com o peso relativo de tais empresas no mercado, fruto de sua portentosa valorização.

Pesquisa do Bank of America indica que 54% dos gestores de fundos têm a percepção de que as ações da Inteligência artificial estão sobrevalorizadas, lembrando o superciclo de investimentos que financiou as tecnologias 3G, 4G e 5G. Alguns investimentos podem não ter o retorno esperado, mas, outros, a exemplo da indústria de petróleo, possivelmente serão lucrativos.

Algumas empresas detêm robustos fluxos de caixa provenientes de outros negócios; outras, apesar de não contarem com um EBTIDA confortável, performam muito bem na bolsa, o que pode causar uma percepção de expectativas irreais. Trata-se de transformar investimentos bilionários em rendimentos que justifiquem o grau de valorização dos ativos.

Segundo o Massachussets Institute of Technology (MIT), 95% dos clientes ainda não obtiveram retorno em seus investimentos em Inteligência artificial. Estudos de Harvard e Stanford indicam que ainda falta qualidade aos conteúdos gerados, os quais ainda estão muito longe de apresentarem comportamentos semelhantes ao humano (a inteligência artificial geral). Há, também, a competição dos modelos mais baratos da DeepSeek chinesa, que consiste em relevante ameaça comercial.

Gita Gopinath, professora de Harvard e ex-economista chefe do FMI, alerta em artigo na The Economist, para a exuberância do mercado acionário provocada pela inteligência artificial, identificando semelhanças com o mercado aquecido do final da década de 1990 que culminou na debacle de 2000. Segundo ela, as consequências de um ajuste no mercado acionário americano seriam bem mais sérias do que a verificada 25 anos atrás. A perda de riqueza seria da ordem de US$ 35 trilhões.

Isso porque nos últimos anos os americanos aumentaram significativamente seus investimentos em bolsa, encorajados pelos lucros e pujança das techs. O mesmo aconteceu com os europeus e outros investidores estrangeiros que também aumentaram seus investimentos na bolsa americana, surfando, também, na valorização do dólar. Isso significa que qualquer queda na bolsa dos EUA reverberaria pelo resto do mundo. Gita Gopinath estima que uma queda hoje na bolsa dos EUA da mesma magnitude de 1990 ocasionaria perdas para os americanos da ordem de US$ 20 trilhões, o que equivale a 70% do PIB de 2024. Já para os estrangeiros a perda seria de US$ 15 trilhões, o que equivale a 20% do PIB do resto do mundo.

Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI comparou o atual otimismo com o período anterior ao estouro da bolha das dot.com, alertando que uma correção abrupta do mercado pode frear o crescimento global.

Historicamente o dólar atraiu investimentos estrangeiros numa espécie de “flight to safety”, refúgio das poupanças externas em ativos norte-americanos. Entretanto, ultimamente, tem existido um certo desconforto dos investidores internacionais com a trajetória do dólar, cuja tendência é de se desvalorizar tendo em vista a imposição de tarifas e a política fiscal expansionista. Daí terem aumentado os hedges contra o dólar. Tal preocupação decorre, também, da eventual perda de confiança nas instituições americanas, em especial nas pressões políticas sobre o FED. Agressões ao FED podem erodir a confiança no dólar e nos ativos americanos.

Recentemente o Banco da Inglaterra afirmou que as empresas de Inteligência artificial estão avaliadas muito acima do que de fato valem, o que pode ocasionar uma correção brusca dos mercados.

Empresários como o próprio Sam Altman, da OpenAI, e Jeff Bezos, da Amazon, não descartam que o mercado pode estar inflado com o crescimento acelerado dos investimentos em Inteligência artificial, apesar de realçarem os robustos planos de investimento de longo prazo em suas empresas.

Gita Gopinath aponta os seguintes desafios para a bolsa de valores dos EUA: (i) controle chinês sobre o fornecimento de minerais críticos; (ii) Incertezas quanto à economia global; (iii) elevado déficit fiscal limitaria uma efetiva atuação das autoridades em estímulos do tipo quantitative easing, em caso de crise no mercado de ações; (iv) Elevados riscos associados à guerra de tarifas, em especial com a China, com prejuízos ao comercio bilateral e multilateral, afetando as complexas cadeias de suprimento hoje existentes.

(v) Ameaças à independência do Banco Central podendo desestabilizar o mercado; (vi) os preços dos ativos e os fluxos de capitais foram muito concentrados nos EUA nos últimos 15 anos em função do crescimento da produtividade e dos elevados retornos. Daí a significativa concentração de riqueza nos EUA e poucos instrumentos para corrigir uma eventual queda do mercado, como a verificada no dot.com (1990).

As vulnerabilidades estruturais e o contexto macroeconômico são muito mais perigosos do que em 1990. Uma crise agora traria consequências muito mais severas.

Pedro Doria comentou em seu artigo antes citado que “como o crescimento se dá num único setor, muito estreito, baseado numa única inovação, basta uma das sete grandes sofrer uma crise que o risco de contágio é grande. Bum! Estoura a bolha”. E, se isso acontecer, o efeito sobre a riqueza nos EUA e em outras economias pode ser significativo, afetando o consumo dos investidores com maior patrimônio.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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